Atrás das grades: Tortura, Tratamento Degradante e a Dura Realidade da Ineficácia do Sistema Carcerário Brasileiro

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05/03/2018 às 12:30
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RESUMO:O presente trabalho versará a respeito da ineficiência do sistema carcerário brasileiro no momento político social da atualidade como ideia de uma construção histórica. Abordando temas referentes às condições presentes no mesmo, a lógica da tortura como elemento organizacional e como resultado, justificativa ou razão de ser a neutralização de classes. Verifica-se todo um modelo de expansão do sistema punitivo e a finalidade de uma neutralização na demonstração da dura realidade da ineficácia do sistema carcerário e todo o mal estabelecido para a sociedade brasileira.

Palavras Chave: Sistema Carcerário Brasileiro. Tortura. Tratamento Degradante.

ABSTRACT:This paper will deal about the inefficiency of the Brazilian prison system at the time of current social political idea as a historical building. Addressing issues relating to the conditions present in it, the logic of torture as an organization and as a result, justification or rationale for the neutralization of classes. There is an entire model system expansion punitive and purpose of a demonstration in neutralizing the harsh reality of the ineffectiveness of the prison system and all evil for Brazilian society.

Keywords: Brazilian Prison System. Torture. Degrading Treatment.


1. INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo o estudo de uma questão persistente na sociedade brasileira, muito debatida e discutida, mas que, no entanto vem cada vez mais afetando um número maior de pessoas através de uma expansão de um sistema ineficaz, utilizando a máscara da ressocialização para punir e neutralizar indivíduos que se encontram em uma realidade e ambiente extremamente inóspito e que recebem mesmo com toda a evolução em relação à dignidade da pessoa humana e suas garantias individuais, tortura e tratamento degradante por parte de um Estado que deveria exercer o mínimo de proteção e seguir os princípios que se baseia.

Ao se falar em realidade do sistema carcerário é preciso fazer uma breve retrospectiva em relação à punição, esta que acompanha todo o desenvolvimento e construção da sociedade, tendo relatos na Bíblia que datam por volta de 1.700 a.C., de cativeiros para reclusão dos escravos obtidos em guerras, onde as sanções variavam em tortura e morte que se perpetuaram na Idade Antiga, motivadas com a finalidade de neutralização de pensamentos e forças de enfrentamento da situação que existira.

Não existiam códigos ou leis para regulamentar estas sanções, basicamente a responsabilidade era por parte de reis e posteriormente dos sacerdotes encarregados de fazer a “vontade divina” que se utilizavam de diversos locais como torres, masmorras entre outros, com o intuito de uma neutralização de pessoas que não se encaixavam no padrão estabelecido da sociedade. No decorrer da história o aspecto punitivo sempre esteve presente, o Código de Hamurabi com sua Lei de Talião, até hoje lembrado, traz exatamente essa ideia de caráter vingativo com a finalidade de estabelecer normas de conduta e relacionamento.

Com o passar do tempo, com a revolução industrial e a revolução francesa se começa uma possível evolução no que diz respeito à regulamentação, onde somente por volta de 1830 que ocorre a mesma em relação a prisão e individualização de penas, a partir de então cada vez mais vem se regulamentando, estabelecendo convenções e preocupando-se com a dignidade do apenado. No entanto, o interessante é perceber que toda essa possível evolução e preocupação não vêm surgindo efeito prático na situação atual, pelo contrário, a expansão de um sistema penal como ocorre hoje em dia e a atual situação caótica, drástica e deplorável que se encontra o sistema penitenciário se faz perceber que a palavra evolução, no que diz respeito ao sistema punitivo é nada mais que mera falácia, comprovada pela situação presente que diferente não é do passado, muito embora seja bem pior.

É exatamente dessa realidade e finalidade do sistema punitivo que trata este trabalho, se debruçando na tortura persistente, no tratamento degradante através de dados do sistema carcerário brasileiro e em uma análise sobre a punição, neutralização e uma ressocialização inexistente.


2. A TORTURA COMO ELEMENTO ORGANIZACIONAL     

Ao se falar em tortura no sistema carcerário brasileiro, interessante são as palavras do psicanalista Hélio Pellegrino no que diz respeito à prática:

“ A tortura é o contrário do discurso livre. Ela só pode existir na medida que não é, nem falada, nem exposta. A tortura se alimenta do sudário de silêncio que envolve o sujeito humano destruído. ”

Este breve estudo acerca da tortura consiste exatamente em romper com o silêncio e analisar todo o seu modelo organizacional, fazendo uma prescrição dos elementos existentes, formas e estruturação de uma prática condenada e rechaçada, porém presente e silenciosa. Desse silêncio resulta a maior dificuldade, principalmente por ser o tipo de situação que não se consegue mensurar o seu alcance, essa prática se baseia e se encontra na chamada cifra negra ou oculta, dessa forma, não se tem como saber exatamente a sua proporção.

O crime de tortura é estabelecido e regulamentado em diferentes codificações e tratado por várias convenções internacionais que o nosso país é signatário, o Código Penal, a Constituição Federal e a Convenção Internacional de Combate a Tortura e Tratamento Degradante procuram banir esta prática antiga e persistente na sociedade.

“Art. 1° Constitui crime de tortura:

I – constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando- lhe sofrimento físico ou mental:

a) Com o fim de obter informação, declaração ou confissão da vítima ou de terceira pessoa;

b) Para provocar ação ou omissão de natureza criminosa;

c) Em razão de discriminação racial ou religiosa;

II – submeter alguém, sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo.

Pena – reclusão, de 2 a 8 anos.

§ 1° Na mesma pena incorre quem submete pessoa presa ou sujeita a medida de segurança a sofrimento físico ou mental, por intermédio da prática de ato não previsto em lei ou não resultante de medida legal.

§ 2° Aquele que se omite em face dessas condutas, quando tinha o dever de evita-las ou apura-las, incorre na pena de detenção de um a quatro anos.

§ 3° Se resulta lesão corporal de natureza grave ou gravíssima, a pena é de reclusão de quatro a dez anos; se resulta morte, a reclusão é de oito a dezesseis anos.”           

Ainda no ordenamento jurídico interno a Constituição Federal também protege e trata dessa questão, o interessante é perceber logo abaixo que apesar da vedação aos tipos especificados o que ocorre no Brasil é diferente, pessoas morrem frequentemente por balas oficiais, de uma maneira disfarçada e justificada pela política pública. Os números de assassinatos por parte da Polícia, encarregados de manter a “ordem pública” são extremos, mesmo não sendo os números reais, que são ainda, escondidos e alterados e no caso da tortura, nada difere, também se estabelece da mesma forma.

“Art. 5º

XLVII - não haverá penas:

a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX;

b) de caráter perpétuo;

c) de trabalhos forçados;

d) de banimento;

e) cruéis;

XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral;”

Mesma falácia é encontrada no Código Penal em seu artigo 38 quando diz: “O preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liberdade, impondo-se a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral. ” Essa realidade divergente do código se torna mais aberrante ao se pensar que a finalidade e dever do estado de proteção e garantia de direitos é desrespeitada em diferentes aspectos, se questiona assim todos os princípios que se baseiam o mesmo e principalmente a dignidade da pessoa humana que é afrontado pela prática e pelo tratamento degradante, presente no sistema carcerário, melhor analisado adiante. Dessa forma percebe-se todo o desrespeito ao ordenamento jurídico interno, mas que também vai de encontro em relação ao âmbito internacional, levando-se em conta a Convenção Internacional para o Combate a Tortura e ao Tratamento Degradante.

Com relação à tortura o que se consegue perceber devido a todo o histórico é uma ínfima mudança em relação aos sujeitos, fatores e agentes, caracteriza-se como uma extensão da tortura antiga brasileira da qual manchou com sangue nossa história em dois momentos mais explícitos, a sociedade escravocrata e a ditadura militar, no primeiro caso, sábias palavras se tiram de MAIA, (2006, p.97), ao tratar dessa questão:

“A abolição da escravidão eliminou apenas um dos fatores de seleção dos torturáveis. Os demais, que acompanharam os negros libertos daquele cativeiro, aprisionariam suas gerações futuras, agrupando cor, classe, e cultura para serem estigmatizadas, marginalizadas, desrespeitadas, desumanizadas. ”

Essa realidade é bem latente mesmo nos dias hodiernos ao se analisar dados do sistema carcerário brasileiro e consequentemente, no mesmo estudo as situações fáticas dos casos de tortura atualmente no Brasil, o perfil do torturado denota exatamente à sua árvore genealógica. A percepção de uma igualdade em relação aos casos de torturas é simples de se notar, como quadro comparativo é interessante se debruçar com os casos ou uma prescrição da tortura na ditadura militar brasileira, ao comparar a lógica do fato se depreendem as mesmas razões imbuídas daquele período, no atual. Dessa forma, válida é a demonstração da estruturação a cerca da lógica da tortura que MAIA, (2006, p. 97), também nos traz:

“a) a tortura sempre foi instrumental, estando presente nas relações de poder, com supremacia de forças do torturador e inferioridade física, psicológica, econômica ou jurídica do torturado;

b) a tortura era praticada por se fazerem presentes oportunidades favoráveis, e ausência de vigilância sobre as condutas dos torturadores;

c) a ambiência e as situações em que agressor e vítima se encontravam eram propensas às fricções e atritos;

d) relaçõespessoaisexistentesentreagressorevítimaerampropensasàs fricções e atritos;

e) as vítimas da tortura – os “torturáveis” - nunca foram consideradas iguais aos seus carrascos, mas inferiores, menores que humanos, e merecedores do sofrimento ou castigo;

f) as vítimas eram tornadas invisíveis no processo de aplicação dos tormentos:

- ou os processos eram secretos até para a vítima;

- ou as vítimas eram mantidas em segredo;

- ou as vítimas não tinham acesso a recursos jurídicos;

- ou todos os fatores em conjunto;

g) as vítimas eram destituídas de poder, sendo presas fáceis nas mãos de seus algozes;

h) a “racionalidade” da aplicação da tortura incluía processo de desumanização da vítima e colocava-a como ameaça concreta aos valores ou fundamentos da ordem da sociedade que os algozes representavam, sendo legítimo livrar-se da ameaça que representavam; ou eram vistas como portando algo de valor para o agressor (informação, confissão etc);

i) o medo da ameaça das vítimas e a retaliação pseudo-justiceira agiam como motores para a aplicação dos suplícios;

Se retira desse quadro a sensação de não mudança e entendimento da estruturação que se estabelece na conduta, podendo considera-la insindicável; pela falta de apuração dos casos, invisível; pelo modus operandi e seus casos serem escondidos e se encontrarem em uma cifra oculta, inexistente; pela falta de informação e por fim, mas de relevante valia, impune, como consequência dos fatores anteriores. Essa lógica motivadora e estruturante ainda se mantém, na verdade, sempre foi a mesma, utilizando- se apenas de sujeitos diferentes e razões, ou melhor, justificativas diversas para ocorrência do fato, dessa forma se consegue perceber o elemento organizacional e não disfuncional de um determinado indivíduo.

Caracteriza-se como organizacional, exatamente por se notar toda uma estrutura propícia ao fato e que vem se mantendo por séculos, em todo o decorrer da história, utilizando apenas fatores e sujeitos diferentes, mas baseando-se principalmente no que diz respeito as relações de poder, esta talvez, seja a base estruturante para a presença da tortura.

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Verifica-se alguns elementos e aspectos presentes na tortura parecidos entre si, em casos diversos pelo mundo, desde a ditadura militar passando pela guerra ao terror, difundida pelos Estados Unidos e que encontra semelhança na atual realidade do sistema carcerário brasileiro.

Primeiramente a expressão tortura não é utilizada por parte do torturador e do sistema, utiliza-se sinônimos, nesse caso há uma espécie de saneamento do termo para evitar as denotações que a palavra resulta. Da mesma forma se mostra a questão da ideologia, a guerra ao inimigo, trata-se de uma questão de segurança nacional ou manter a ordem pública, são justificativas presentes e relacionadas no que diz respeito aos casos explícitos. Nesse ponto tem se uma ligação direta a suspensão da legalidade, como exemplo a expressão: “os fins justificam os meios” consagrada por Maquiavel, que por determinadas circunstancias ou situação as leis e princípios basilares seriam suspensas com o intuito maior de uma preservação da ordem.

É preciso contestar a ideia de que a tortura seja uma ideia de patologia institucional, nesse caso, o entendimento é que ela seria sistêmica, não só por alguns, protegida pelo silêncio e por ações oficiais, o que acaba criando uma cultura institucional de apoio. Ocorre assim uma divisão de trabalhos e difusão, alguns dizem que não torturam, mas confirmam que outros o fazem, uma espécie de divisão de trabalho entre agentes mais agressivos que levam para uma determinada instituição ou local e outros que silenciam mesmo sabendo da ocorrência por parte daqueles.

Vale salientar que a concorrência entre determinadas instituições e seus serviços para se sobrepor e mostrar resultados, influencia nos casos de tortura, baseando-se na prestação de resultados relativos a violência para a sociedade e as políticas públicas implantadas por parte do governo, que cada vez mais querem trazer e demonstrar para a sociedade um combate a situação atual de barbárie, terminando assim por justificar e muitas vezes receber o apoio em casos da referida conduta.

Também se faz presente a segregação e segredo das ações, como exemplo: O torturador no Brasil na época da ditadura militar dizia que gostava quando aparecia uma foto de uma pessoa sendo torturada, porque focava naquela foto, passando uma ideia de existência de tortura, mas não de uma sequência nos fatos, enquanto um caso repercutia, outros estavam escondidos. Nesse sentido, também é preciso entender que o próprio torturador muitas vezes não se dá conta de suas atitudes, por além de fazer parte da estrutura e sistema em que o mesmo se encontra, passa a ideia com o tempo de sua atitude ser confundida com sua função, alguns relatavam o uso do capuz na vítima, com a finalidade de desumanização, para acharem que estavam lidando com qualquer coisa não humano.

Por todo o exposto, verifica-se que a situação não se enquadra em uma questão disfuncional por parte de alguns indivíduos, mas sim de uma situação sistémica e organizacional, é necessário sair da ideia de natureza humana e racionalização social, dessa forma sua aplicabilidade em um combate seria muito difícil, não deve focar só nos atores, mas nos últimos e no sistema, que engloba os perpetuadores, facilitadores, simpatizantes e toda uma organização sistémica e principalmente combater a ideia de impunidade.

A tortura é só mais um elemento presente em um vasto e rico sistema de punir que assola o mundo e no caso do trabalho em questão, especificamente no Brasil, onde diversos outros problemas equiparadamente tão graves se encontram e convergem entre si na realidade de muitos que fazem parte do criticado, mas no auge da sua expansão, o sistema carcerário.

Sobre o autor
Ronaldo Paulino Filho

Mestre em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco, Especialista em Direito Constitucional, Especialista em Direito Processual Civil, Advogado, Professor de Direito e Pesquisador.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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