A Lei dos Juizados Especiais Criminais e a Lei Maria da Penha

13/03/2018 às 16:33

Resumo:


  • A Lei dos Juizados Especiais Criminais revolucionou o sistema processual-penal brasileiro, buscando soluções rápidas e consensuais para conflitos de menor complexidade.

  • A Lei Maria da Penha, por sua vez, criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, estabelecendo medidas de assistência e proteção urgentes.

  • Existe um entendimento consolidado, respaldado pela jurisprudência, sobre a inaplicabilidade da Lei dos Juizados Especiais Criminais no âmbito da Lei Maria da Penha.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise objetiva da jurisprudência acerca da Lei dos Juizados Especiais Criminais e a Lei Maria da Penha.

OBJETO: Análise objetiva acerca da Lei dos Juizados Especiais Criminais e da Lei Maria da Penha.

SUMÁRIO: Os Juizados Especiais Criminais. Previsão constitucional da instituição dos Juizados Especiais Criminais. A Lei nº 9.099/95 e a justiça consensual. Constitucionalidade. As Leis nºs 10.259/2001 e 13.313/2006. Infrações de menor potencial ofensivo. A (in)aplicabilidade da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) no âmbito dos Juizados Especiais Criminais.


O artigo 98, caput, da Constituição Federal, previu que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão (inciso I) juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau.

A Lei 9.099/95 revolucionou o sistema processual-penal brasileiro e objetivava constituir os Juizados num instrumento de rápida solução dos conflitos, com entrega de pronta resposta jurídica, fincada, de forma precípua, na conciliação e na transação.

Houve verdadeira quebra no arcaísmo de mais de 50 anos dos Códigos Penal e de Processo Penal, cuja legislação encontrava-se (como se encontra) disfuncional e ultrapassada, gerando descrédito da Justiça Penal.

A aplicação imediata de pena não privativa de liberdade possibilitou o rompimento do sistema tradicional e viabilizou a aplicação de pena sem discussão da culpabilidade, antes mesmo do oferecimento da denúncia, sem que a aceitação da proposta do Ministério Público ensejasse o reconhecimento da culpabilidade penal, tampouco o da responsabilidade civil.

A suspensão condicional do processo, assim como a transação penal, evita a anotação externa do registro do fato, como se simplesmente não tivesse ocorrido.

A preocupação com a vítima é outro ponto que deve ser ressaltado, especialmente pela previsão da transação civil e da reparação de danos, inclusive na suspensão do processo, passando-se a exigir representação para crimes de lesões corporais leves e culposas.

O rito sumaríssimo e o julgamento do recuso por turma constituída por juízes de primeiro grau, além de emprestar celeridade para os casos de menor potencial ofensivo, também constituiu em fator de desburocratização e simplificação.

O maior alvo de críticas, inclusive acerca de sua constitucionalidade, foi a transação penal, prevista no artigo 76, da Lei nº 9.099/95.

Dois eram os principais fundamentos nesse sentido:

(a) a aplicação de pena sem processo e sem reconhecimento de culpa infringiria o artigo 5º, inciso LIV, da Constituição Federal (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”);

(b) afrontaria também a presunção de inocência, inserta no artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”).

Ocorre que a própria Constituição Federal expressamente autorizou a transação penal para as infrações de menor potencial ofensivo, como se observa do inciso I, do artigo 98, da Constituição Federal (“juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”).

Além disso, a aceitação da proposta representa técnica de defesa, já que deverá ser formalizada com a assistência de advogado, tratando-se de opção do autor do fato, que pode então escolher entre evitar o processo ou provar sua inocência.

Ademais, a transação penal não implica em reconhecimento da culpabilidade, não gera reincidência ou antecedentes criminais, sendo registrada apenas para evitar novo benefício no prazo de cinco anos (o autor do fato continua com a condição de inocente). Enfim, não tem efeitos penais e civis.

O conceito de infração de menor potencial ofensivo foi originariamente assentado no artigo 61, da Lei nº 9.099/95, e estava vinculado às “...contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a um ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial”. 

A Lei nº 10.259/2001, que dispôs sobre a instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, derrogou o referido artigo 61, ao passar a disciplinar, em seu artigo 2º, parágrafo único, que deviam ser consideradas infrações de menor potencial ofensivo os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos ou multa.

A Lei nº 13.313/2006, por seu turno, editada apenas para pacificar o conceito das infrações de menor potencial ofensivo, notadamente na parte relativa aos casos com procedimento especial, estabeleceu de forma definitiva que infrações penais de menor potencial ofensivo são as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, cumulada ou não com multa, independente da existência ou não de procedimento especial.

A Lei nº 11.340/2006, que ficou conhecida como Lei Maria da Penha –nome em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes, que por vinte anos lutou para ver seu então marido preso, pelo tiro de espingarda que desferiu em sua coluna, enquanto a vítima dormia, destruindo a terceira e quarta vértebras, ocasionando-lhe a paraplegia –, criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do artigo 226, § 8º, da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil, dispôs sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabeleceu medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Nesses casos as vítimas passaram a contar com legislação específica, não somente no aspecto repressivo, mas, sobretudo, preventivo e assistencial, com caráter protetivo de urgência.

A Lei nº 11.340/2006, em seu artigo 5º, estipulou configurar violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial (I) no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; (II) no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; (III) e em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

A mencionada legislação é categórica no sentido de que a violência doméstica e familiar contra a mulher constitui uma das formas de violação dos direitos humanos, concebendo-se em uma das formas de ação afirmativa estatal, em franca contrapartida aos compromissos assumidos em tratados e convenções internacionais.

A Lei Maria da Penha contém critérios específicos de hermenêutica, listados em seu artigo 4º, donde se extrai que é imprescindível considerar, em sua interpretação, os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar.

Pois bem.

O artigo 17, da Lei nº 11.340/2006, estabelece que “é vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa”.

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Já o seu artigo 41 é expresso em assentar que “aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”.

Tem-se que, configurado caso de violência doméstica e familiar contra a mulher, qualquer que seja o crime e sua pena, o descabimento da composição civil extintiva da punibilidade, da transação penal ou da suspensão condicional do processo.

Além disso, não se deve lavrar termo circunstanciado (em caso de prisão em flagrante, deve ser registrado em auto próprio e, se for o caso, arbitrada fiança), com a instauração de inquérito policial (com a medida paralela prevista no artigo 12, inciso III, e §§ 1º e 2º, da Lei nº 11.340/2006), e a denúncia deve ser escrita, seguindo-se na forma do procedimento estatuído no Código de Processo Penal.

A Súmula nº 536, do Colendo Superior Tribunal de Justiça, já assentou que “a suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha”.

Dentro do amplo aspecto de violência doméstica e familiar, encontram-se alguns comportamentos que configuram contravenções penais, tais como vias de fato (art. 21), perturbação do trabalho e do sossego alheio (art. 42), importunação ofensiva ao pudor (art. 61) e perturbação da tranquilidade (art. 65), as quais, por não constituírem crimes, em sua conceituação técnica, não deveriam afastar a aplicação da Lei nº 9.099/95, malgrado devesse prevalecer as vedações contidas no artigo 17, da Lei nº 11.340/2006.

Entretanto, rechaçando possível alegação do uso da analogia (in malan partem), o Excelso Supremo Tribunal Federal decidiu recentemente que, ínsita a violência nos atos de agressão perpetrados contra a mulher no ambiente doméstico e familiar, a vedação contida no artigo 44, inciso I, do Código Penal, deve ser estendida à infração prevista no artigo 21, do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (1ª Turma, HC nº 137.888/MS, Rel. Min. Rosa Weber, DJe 20.02.2018).

A Corte Suprema, em respeito ao vetor hermenêutico indicado na ADC nº 19 (Tribunal Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 28.04.2014), entendeu que se deve emprestar o maior alcance possível à legislação tendente a coibir a violência doméstica e familiar, como forma de evitar retrocessos sociais e institucionais na proteção das vítimas, avanço conquistado de modo árduo, na luta pela superação do sofrimento da mulher, muitas vezes experimentado em silêncio - no recôndito do lar, do seio familiar e da alma, agredida exatamente por aquele com quem divide o “teto” e dedica o afeto.

Restou resolvido no referido julgamento que o sistema protetivo da Lei nº 11.340/2006 – de nítido cunho constitucional e fortemente amparado em diplomas internacionais – deve ser interpretado com maior amplitude, de modo a obstaculizar a reinserção da violência contra a mulher na ambiência da legislação própria às infrações de menor potencial ofensivo, sem o que não se concretizará o comando do artigo 226, § 8º, da Constituição Federal.

A necessidade ou não de representação nas contravenções de vias de fato, especialmente para os casos envolvendo violência doméstica, sempre gerou grandes discussões doutrinárias e jurisprudenciais.

Contudo, com a decisão do Supremo Tribunal Federal, na ADI nº 4.424 e na ADC nº 4.424, julgada em 09 de fevereiro de 2012, que entendeu ser pública incondicionada a ação penal para os crimes de lesões corporais, afastando, assim, qualquer ingerência da lei dos juizados especiais no âmbito dos crimes perpetrados mediante violência doméstica (e declarando a constitucionalidade do artigo 41, da Lei nº 9.099/95), a questão encontra-se pacificada no sentido de que, também para as contravenções de vias de fato, não é exigível a prévia representação da vítima.

Em outras palavras, com a referida decisão do Supremo Tribunal Federal, que a todos vincula (art. 102, § 2º, da CF), a ação penal, nos crimes de lesões corporais leve e culposas que envolvam violência doméstica, é pública incondicionada, a não reclamar, portanto, a previa representação da vítima. Igualmente não se discutirá a constitucionalidade do artigo 41, da Lei nº 11.340/2006, que afasta a incidência da Lei nº 9.099/95 aos delitos perpetrados com violência doméstica e familiar contra a mulher, assim como tampouco se dirá que a lei é inconstitucional por afrontar o princípio da igualdade entre homens e mulheres ou por invadir o âmbito da competência estadual para legislar sobre a criação de varas especializadas ou definir a competência da justiça criminal enquanto não implantados os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher.

Enfim, atualmente está consolidado o entendimento, com amplo respaldo jurisprudencial, acerca da inaplicabilidade global da Lei dos Juizados Especiais Criminais (Lei nº 9.099/95) no âmbito da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/06).

Sobre o autor
Diogo Alexandre Restani

Assistente Jurídico. Especialista em Direito Penal, pós-graduado pela EPM

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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