Furto e usurpação de água

19/03/2018 às 14:27

Resumo:


  • A captação clandestina de água configura o crime de furto, e a ligação irregular do encanamento sem passar pelo hidrômetro é considerada um delito permanente, não havendo qualificadora de fraude.

  • O Superior Tribunal de Justiça (STJ) rejeita a aplicação do princípio da insignificância para casos de furto de água, entendendo que a conduta tem relevância penal e que a complacência estatal diante desses atos poderia incentivar desordens sociais.

  • O crime de usurpação de água está previsto no artigo 161, § 1º, I, do Código Penal, e consiste em desviar ou represar águas alheias em proveito próprio ou de outrem, sendo um delito de ação penal privada quando a propriedade é particular e não há emprego de violência.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

1. O FURTO DE ÁGUA

O furto é a subtração de coisa alheia móvel com o fim de apoderar-se dela de modo definitivo (artigo 155 do CP).

A captação clandestina de água configura o crime de furto (RT 750/638).

A ligação irregular do encanamento, sem passar pelo hidrômetro, é situação ínsita ao próprio furto do liquido, razão pela qual não há a qualificadora de fraude, tratando-se de delito permanente em que a consumação se protrai no tempo (RT 779/589).

O Superior Tribunal de Justiça vem considerando inaplicável o principio da insignificância com relação ao furto de água.

Assim se tem:

“Cinge-se a questão em definir se é aplicável o princípio da insignificância ao delito do furto de água potável mediante ligação clandestina e em quantidade avaliada em noventa e seis reais e trinta e três centavos. A Turma, por maioria, entendeu que, quanto à incidência de tal princípio, necessários se fazem a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Com efeito, a conduta perpetrada pelo agente não pode ser considerada irrelevante para o Direito Penal. O delito em causa não se insere na concepção doutrinária e jurisprudencial de crime de bagatela. No caso do furto, não se pode confundir bem de pequeno valor com de valor insignificante. Este, necessariamente, exclui o crime diante da ausência de ofensa ao bem jurídico tutelado, aplicando-se-lhe o princípio da insignificância; aquele, eventualmente, pode caracterizar o privilégio previsto no § 2º do art. 155. do Código Penal, já prevendo a Lei Penal a possibilidade de pena mais branda, compatível com a pequena gravidade da conduta. Assim, a subtração debens cujo valor não pode ser considerado ínfimo não pode ser tido como um indiferente penal, na medida em que a falta de repressão de tais condutas representaria verdadeiro incentivo a pequenos delitos que, no conjunto, trariam desordem social. Precedentes citados do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004; do STJ: REsp 904.876-RS, DJ 3/9/2007; REsp 406.986-MG, DJ 17/12/2004, e REsp 750.626-RS, DJ 4/9/2006.

REsp 984.723-RS, Rel. Min. Og Fernandes, julgado em 11/11/2008.”

“No caso, o recorrido violou o tamponamento do registro de água realizado pela companhia de abastecimento local e passou a usufruir do serviço sem o devido pagamento. A missão do Direito Penal moderno consiste em tutelar os bens jurídicos mais relevantes. Em decorrência disso, a intervenção penal deve ter o caráter fragmentário, protegendo apenas os bens jurídicos mais importantes e em casos de lesões de maior gravidade. O princípio da insignificância considera necessária, na aferição do relevo material da tipicidade penal, a presença de uma mínima ofensividade da conduta do agente, nenhuma periculosidade social da ação, reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e inexpressividade da lesão jurídica provocada. Se parece claro que o furto de uns poucos litros de água potável não ensejaria o acionamento da máquina jurídico-penal do Estado, pela inexpressividade da lesão jurídica provocada, por outro lado, não se deve esquecer que tal conduta se mostra bastante reprovável sob o ponto de vista de sua repercussão social. Inaceitável a complacência do Estado para com aqueles que, em condições de arcar com as respectivas contraprestações, venham a usufruir irregularmente e de forma gratuita de bens e serviços públicos em detrimento da grande maioria da população. A Turma, prosseguindo o julgamento e por maioria, conheceu em parte do recurso e deu-lhe provimento. Precedente citado do STF: HC 84.412-SP, DJ 19/11/2004.

REsp 406.986-MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, julgado em 23/11/2004.”

Na esfera penal, em 2016, a Sexta Turma afastou a aplicação do princípio da insignificância em caso de furto de água na cidade de Cássia (MG). De acordo com a denúncia, após o corte do fornecimento regular de água por falta de pagamento, o réu teria rompido o lacre do hidrômetro e religado o abastecimento de forma clandestina.

Em habeas corpus, o réu defendia a aplicação do princípio da insignificância por, entre outros motivos, ter sido pequeno o valor do suposto dano (cerca de R$ 150).

O relator do pedido de habeas corpus, ministro Rogerio Schietti Cruz, destacou inicialmente que a subtração de água mediante rompimento de obstáculo e utilização de instalações clandestinas não se caracteriza, a princípio, como de baixa ofensividade penal, já que tem o potencial de impor uma série de riscos a toda a sociedade.

“As perdas de água não se apresentam apenas como um problema econômico decorrente da falta de pagamento pela água consumida, pois têm implicações mais amplas, com repercussões significativas no que concerne à saúde pública, com a possibilidade de contaminação da rede por ligações clandestinas; à necessidade de investimentos para as ações de redução ou manutenção das perdas, que não são cobertos pelo eventual pagamento da água furtada; à perda de funcionamento eficiente do sistema, entre outros”, afirmou o ministro.

Schietti lembrou também que a prática disseminada das ligações clandestinas aumenta os riscos considerados por instituições como o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial na avaliação de projetos de investimento em expansão do sistema de abastecimento e saneamento.

Nesses casos, apontou o ministro ao negar o pedido de habeas corpus, ocorre atraso no cronograma de expansão das companhias de abastecimento e de saneamento, “postergando o acesso da população mais carente à água limpa e à rede de coleta de resíduos, direitos humanos garantidos na Constituição Federal de 1988”.

Veja-se ainda o REsp 741.665/DF:

PENAL. RECURSO ESPECIAL. CRIME DE FURTO QUALIFICADO PELA FRAUDE. FURTO DE ÁGUA PRATICADO MEDIANTE LIGAÇÃO CLANDESTINA. RECURSO PROVIDO.

1. Configura o crime de furto qualificado pela fraude (art. 155, § 4º, II, do Código Penal) a conduta consistente no furto de água praticado mediante ligação clandestina que permitia que a água fornecida pela CAESB fluísse livremente, sem passar pelo medidor de consumo.

2. Recurso provido para condenar o réu como incurso nas sanções do art. 155, § 4º, II, do Código Penal, determinando que o Tribunal a quo redimensione a pena imposta.

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A fraude no sistema de água é uma penalidade classificada como furto qualificado e é qualquer prática de adulteração que prejudique o funcionamento dos equipamentos de medição, lacres e tubulações. Os principais tipos de fraude são as ligações clandestinas de água, o abastecimento irregular de água a terceiros, além da violação do corte de água e colocação de bombas. É o caso de aplicação do artigo 155, § 4º, II, do CP, caracterizado como tal de forma que não é preciso que se prove que o objeto seja inutilizado ou totalmente destruído (RT 713/368).

O valor do bem furtado não é determinante para a aplicação ou não do princípio da insignificância. O valor ínfimo do bem, autorizador do aludido princípio, não pode ser confundido com valor pequeno. O princípio da insignificância tem como suportes a mínima ofensividade da conduta do agente, a nenhuma periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada. Não se pode caracterizar o crime como de bagatela e excluir a tipicidade material da conduta do réu, quando as circunstâncias do fato revelam não só a periculosidade social da ação, com também o comportamento do agente.


2. USURPAÇÃO DE ÁGUA

O Código Penal, na proteção ao patrimônio, no artigo 161, I, protege a propriedade com relação a usurpação.

Na impossibilidade de se furtar um imóvel, que não está sujeito à remoção, nem tampouco foge totalmente à esfera de vigilância da vítima, utilizou a lei penal o termo usurpação. Por sinal, Nelson Hungria(Comentários ao código penal, 4ª edição, 1980, volume VII, pág. 89) entendia que apenas a propriedade estava protegida neste crime.

Observe-se o crime de usurpação de águas previsto no artigo 161, § 1º, I, do CP:

I - desvia ou represa, em proveito próprio ou de outrem, águas alheias;

A pena é de detenção de um a seis meses e multa. E delito sujeito a transação penal.

O objeto material do crime é a água alheia; o jurídico é o patrimônio, especialmente, o direito sobre o uso das águas.

O bem imóvel protegido é a massa liquida (águas em estado natural) fluentes ou estagnadas, perenes ou temporárias, nascentes e subterrâneas (rios, lagos, lagoas, nascentes etc). Águas alheias são “aquelas que não pertencem ao agente e também as águas comuns, isto é, aquelas sobre as quais não só agente, como terceiro tenham direito”, como ensinou Heleno Cláudio Fragoso (Lições de direito penal, volume II, 3ª edição, pág. 9).

Quando as águas são mobilizadas, ou seja, conservadas em recipientes, tornam-se objeto de furto, bem de interesse comum, e fundamental para a vida, razão pelal qual não se aplica o princípio da insignificância a tais delitos.

A conduta pode ser de desviar(mudar de leito da água fluente ou estagnada) ou represar (conter, acumular ou reter com obstáculos) as águas para que não sigam elas seu curso natural. Esse desvio pode se dar por meio de aparelhos mecânicos (bomba hidráulica por exemplo).

O elemento do tipo do delito do artigo 161, § 1º, I, do CP é o dolo específico, a vontade de desviar ou represar águas alheias.

Provocando-se na conduta inundação haverá concurso formal com o tipo previsto no artigo 154 do Código Penal.

A teor do parágrafo terceiro do artigo 161 do CP, e não há emprego de violência, sendo a propriedade particular, a ação penal é privada, mediante queixa.

Alheias, como ocorre no furto, é o elemento normativo, de valoração jurídica, pois fornece a conotação de coisa não pertencente ao agente, mas a terceiro. Não é, pois, qualquer “água”, que pode ser objeto material deste delito e, sim, a pertencente a uma pessoa determinada, dentro do que disciplinam o Código Civil(artigo 1.288 a 1.296) e ainda o artigo 8º do Decreto 24.643/34.

Trata-se de crime comum, formal(que não exige um resultado naturalístico, que consiste na efetiva diminuição do patrimônio da vítima e proveito do agente), comissivo, unissubjetivo e plurissubsistente. É delito instantâneo de efeitos permanentes ou às vezes permanente.

Afirmou Nelson Hungria que, no caso “de águas comuns ou em condomínio poderá ser sujeito ativo do crime qualquer dos proprietários das terras atravessadas ou banhadas pelas águas ou qualquer dos condôminos, desde que, com o desvio ou represamento, seja impedida a utilização pelos demais proprietários ou condôminos”.

Sujeito passivo do crime previsto no artigo 161, § 1º, I, do CP é quem pode usar, gozar ou fruir das águas (proprietário, posseiro, arrendatário etc), sendo privado, mesmo que em parte, dessa possibilidade.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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