INTRODUÇÃO
O homem é um ser sociável, ou seja, ele depende da vida em sociedade. No entanto a vida social precisa ser regulada para que todos possam viver em harmonia. Desde os tempos mais longínquos o homem vem buscando maneiras de regular essa vida em sociedade, e nesse sentido que entra o Direito.
A partir da criação da figura do Estado e do contrato social, coube aquele o exercício do jus puniendi, ou o direito de punir.
O objetivo deste trabalho é abordar de forma sucinta o que exatamente é o direito de punir e até onde vai esse direito, explorando seus limites principalmente após a promulgação da Constituição Federal de 1988, conhecida como “Constituição Cidadã” que traz em seu bojo diversas garantias e liberdades individuais.
Consequentemente o estudo faz uma reflexão sobre a realidade atual, como que o Estado está exercendo este seu direito de punir e se está dando certo, pois atualmente o que se percebe é que o Estado está perdendo sua credibilidade perante à sociedade em relação aos serviços de segurança pública.
1. CONCEITO
Jus Puniendi é o poder/dever de punir do Estado. Etimologicamente significa direito de punir, mas na prática é um poder/dever do Estado em relação aos seus cidadãos, ou seja, quando alguém viola uma norma penal é o Estado quem deve puni-la por isso.
Para Fernando Capez:
“O Estado, única entidade dotada de poder soberano, é o titular exclusivo do direito de punir (para alguns, poder-dever de punir). Mesmo no caso da ação penal exclusivamente privada, o Estado somente delega ao ofendido a legitimidade para dar início ao processo, isto é, confere-lhe o jus persequendi in judicio, conservando consigo a exclusividade do jus puniendi.”[1]
O jus puniendi pode ser classificado de duas formas: o direito objetivo ou abstrato, que são as normas penais propriamente ditas, ou seja, as normas postas. Estas são chamadas de normas de conduta negativa, ou seja, a "contrario senso", o cidadão tem o dever de não cometê-las; caso haja a infração, o Estado passa a ter um direito subjetivo ou concreto de punir aquele indivíduo que cometeu o ilícito.
2. EVOLUÇÃO HISTÓRICA
2.1 Período da Vingança
Vingança Privada (séc. XV)
A vítima que era o titular do direito de punir, vigorava a autotutela, a ideologia da lei de talião, o exercício das próprias razões. Logo, competia à própria vítima revidar a agressão sofrida (justiça com as próprias mãos).
Normalmente as vítimas eram os nobres, e estes escolhiam os juízes que iam decidir aquela lide.
Vingança Divina (final do séc. XV)
Surge a noção de Estado, ainda no regime absolutista.
A vítima do crime não era a pessoa em si, mas a sociedade.
Surge a escrita tradicional (grego e latim). Porém, quem dominava a escrita naquela época era a igreja, logo esse período foi conhecido como Juízo de Deus.
A igreja era o titular do jus puniendi e utilizam o Juízo de Deus para aferir a culpabilidade através das ordálias. O fogo era um elemento purificador. Foi neste período que houve a Santa Inquisição.
Vingança Pública (séc. XVI)
O Estado como detentor do direito de punir, na figura do Rei.
Nesse período aconteceram as maiores arbitrariedades e penas cruéis.
Segundo Luiz Regis Prado:
“É forçoso reconhecer que a legislação penal dessa época se caracterizava pela grande crueldade na execução das penas (quase sempre corporais e aflitivas), com objetivo apenas de vingança social e intimidação. Tem-se um Direito gerados de desigualdades, cheio de privilégios, heterogêneo, caótico; construído sobre um conglomerado incontrolável de ordenações, leis arcaicas, editos reais e costumes; arbitrário e excessivamente rigoroso.”[2]
2.2 Período Humanista ou Humanitário (séc. XVIII)
Também conhecido como século das luzes ou filosofia das luzes, tinha como objetivo evitar os excessos do período anterior. Surge no final do século XVII e início do século XVIII com o Iluminismo e tinha como um dos principais pilares, a substituição da emoção pela razão nos julgamentos. Essa reação humanitária teve como fundamento o contrato social de Rousseau e a pena só se justificaria se este fosse violado.
Nesse período surge a Escola Clássica e um dos maiores estudiosos sobre pena, na Itália, o Cesare Bonesana ou o Marquês de Beccaria, que publica em 1764 sua obra conhecida até hoje: Dos Delitos e das Penas.
Nas palavras de Luiz Regis Prado:
“As ideias contidas no famoso opúsculo, verdadeiro breviário de política criminal, além de causar grande repercussão, marcaram o nascimento do Direito Penal Moderno”[3]
Os principais postulados da obra de Beccaria eram:
{C}· Estrita legalidade dos crimes e das penas
{C}· Prevenção geral e utilidade como finalidade das penas
{C}· Abolição da tortura e da pena de morte
{C}· Infalibilidade na execução das penas
{C}· Clareza das leis
{C}· Proporcionalidade entre o delito e a pena imposta
{C}· Relação do crime-castigo (atual nota de culpa)
{C}· Igualdade de todos perante a lei penal
{C}· Separação das funções estatais
2.3 Período Moderno – Penas Públicas
Atualmente, o que seria o terceiro estágio da evolução da pena, as chamadas “penas públicas”, não se trata muito bem de uma evolução da pena.
Nas palavras de Aury Lopes Jr.:
“Convém destacar que o Direito Penal nasce não como evolução, senão como negação da vingança, daí por que não há que se falar em “evolução histórica” da pena de prisão. Não se trata de continuidade, senão de descontinuidade. A pena não está justificada pelo fim de vingança, senão pelo de impedir por completo a vingança. No sentido cronológico, a pena substituiu a vingança privada, não como evolução, mas como negação, pois a história do Direito Penal e da pena é uma longa luta contra a vingança.”[4]
Portanto, antigamente existia uma reação social, desde o período da vingança divina, onde uma coletividade, através da força se vingava de um indivíduo que transgredia a convivência social e hoje existe um poder organizado que impõe uma pena a pessoa que comete um ilícito penal.
Hoje o delito é considerado uma transgressão da ordem jurídica de um Estado, e existe uma limitação desse poder estatal.
Segundo Aury Lopes Jr.:
“Aqui a pena adquire seu caráter verdadeiro, como pena pública, pois o Estado vence a atuação familiar (vingança do sangue e composição) e impõe sua autoridade, determinando que a pena seja pronunciada por um juiz imparcial, cujos poderes são juridicamente limitados.”[5]
Portanto o direito de punir surge no momento em que se suprime a vingança privada e se implantam os critérios de justiça.
3. LIMITES DO DIREITO DE PUNIR
3.1 Limitação Penal
Num primeiro, a limitação ao direito de punir está diretamente ligado ao conceito do crime e aos princípios do Direito Penal, entre eles:
{C}· Tipicidade e Princípio da Legalidade
{C}· Antijuridicidade e Excludentes de Ilicitude
{C}· Culpabilidade e Inexigibilidade de Conduta
{C}· Finalidade e Proporcionalidade da Pena
{C}· Princípio da Intervenção Mínima
3.2 Limitação Constitucional
A partir da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), dos tratados sobre Direitos Humanos e principalmente depois das garantias e liberdades individuais da Constituição de 1988 que houve uma grande limitação (afrouxamento) do direito de punir.
Conforme Aury Lopes Jr.
“Somente a partir da consciência de que a Constituição deve efetivamente constituir (logo, consciência de que ela constitui-a-ação), é que se pode compreender que o fundamento legitimante da existência do processo penal democrático se dá através da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporâneo somente se legitima à medida que se democratizar e for devidamente constituído a partir da Constituição.”[6]
A partir desse momento surge como principal limitador do direito de punir o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, postulado no artigo 1º, inciso III da atual Carta Magna.
Este é o verdadeiro divisor de águas e marco das maiores discussões sobre o Direito Penal, pois a doutrina se dividiu em duas grandes correntes: a corrente dos garantistas, que de forma correta, colocam a Constituição Federal como o norteador de todas as leis; e a corrente que acredita que o Estado deve ser mais severo para a preservação da ordem.
Nessa toada, existem doutrinadores que acreditam que alguns direitos individuais devem ceder à supremacia do interesse público assim como ocorre no Direito Administrativo.
4. TEORIA DA LEI E ORDEM E A LEI DE CRIMES HEDIONDOS
Após observar o rumo para qual caminham as sociedades complexas, caracterizadas por crescentes conflitos socioeconômicos, culturais e políticos, o sociólogo alemão Ralf Dahrendorf , cria o movimento da Lei e Ordem. Essa obra é uma teoria na qual ele indica a necessidade de uma estrutura jurídica moderna, legítima, eficiente e, acima de tudo, respeitada e acatada.
Segundo essa teoria, o movimento da Lei e Ordem considera a criminalidade um doença que precisa ser combatida, e a justiça tem o dever de separar os criminosos das pessoas “de bem” para que estas não sejam contaminadas. Assim foi declarada uma guerra a fim de eliminar o crime, a criminalidade e o criminoso.
Segundo Damásio de Jesus:
“O Movimento da Lei e da Ordem adota uma política criminal, com sustentação nos seguintes pontos: a) a pena se justifica como um castigo e uma retribuição no velho sentido, não se confundindo esta expressão com o que hoje se denomina "retribuição jurídica"; b) o chamados delitos graves hão de castigar-se com penas severas e duradouras (morte e privação de liberdade de longa duração); c) as penas privativas de liberdade impostas por crimes violentos hão de cumprir-se em estabelecimentos penitenciários de máxima segurança, submetendo-se o condenado a um excepcional regime de severidade distinto ao dos demais condenados; d) o âmbito da prisão provisória deve ampliar-se de forma que suponha uma imediata resposta ao delito; e) deve haver uma diminuição dos poderes individuais do juiz e o menor controle judicial na execução que ficará a cargo, quase exclusivamente, das autoridades penitenciárias.”[7]
Essa teoria foi aplicada em Nova Iorque no ano de 1993 pelo então prefeito Rudolph Giuliani na chamada política de “tolerância zero”, o que diminuiu sensivelmente as taxas de criminalidade da cidade.
Nesse modelo de segurança pública, o Estado é tão rigoroso com a aplicação de pena nos graves delitos, como nos delitos menores, por exemplo, não pagar o transporte público, a prostituição, os pequenos furtos, jogar lixo no chão, comprar cds piratas, etc. O sistema de tolerância zero tem como meta principal incutir o hábito do respeito à legalidade, o que produziria a médio prazo uma redução nos índices de microcriminalidade, bem como uma diminuição dos delitos de maior importância, como estupros e homicídios.
Aqui no Brasil, após o aumento dos crimes , hoje chamados hediondos, em meados de 1989, após um clamor social o governo editou a Lei dos Crimes Hediondos – Lei 8.072/90.
É inegável que esta lei foi baseada na Teoria da Lei e Ordem, e tinha como objetivo, amparado pelo artigo 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, repreender de forma mais severa os fatos apavorantes que estavam (e estão) acontecendo em nossa sociedade.
No entanto, em 23 de fevereiro de 2006, o STF, motivado pelo princípio da individualização da pena, considerou inconstitucional o parágrafo 1º do artigo 2º da Lei, que proibia a progressão do regime de cumprimento de pena.
Atualmente, o STF considera também inconstitucional a imposição do regime inicial fechado pelo mesmo motivo. Portanto, o juiz deve observar os parágrafos 2º e 3º do artigo 33 do Código Penal para decidir o regime inicial no caso concreto.
5. TEORIA DA ANOMIA
Émile Durkheim, sociólogo francês, utilizou esse termo em sua obra O Suicídio que foi publicada em 1897.
Etimologicamente, anomia significa ausência de leis.
O mundo viveu um período de anomia natural quando não existia a figura do Estado, onde prevalecia o período da vingança privada (lei de talião, autotutela, exercício das próprias razões).
Na criminologia, anomia significa uma crise, uma situação de anormalidade ou um vácuo legislativo decorrente de uma instabilidade institucional.
Durkheim empregou este termo para mostrar que algo na sociedade não funciona de forma harmônica.
Para ele, o crime é definido como um fenômeno normal e previsível em toda a sociedade, pois uma sociedade sem crime é sociedade pouco desenvolvida. No entanto, o crime é considerado normal quando o Estado consegue controlar.
Porém, a criminalidade gera uma crise a partir do momento que ocorrer a “inversão do poder”, ou seja, o Estado está perdendo seu poder para um “Estado paralelo”.
Podemos observar isso como consequência da impunidade observada nos dias atuais e suas consequências.
Um exemplo de anomia foi vivido em São Paulo, em 2006, quando houve os ataques do PCC, pois a sociedade preferiu acreditar nos boatos da facção criminosa ao invés do representante do Estado.
Algumas consequências do estado de Anomia:
{C}· Saques em mercados
{C}· Justiça com as próprias mãos
{C}· Linchamento de criminosos (vingança privada)
{C}· Prender menores em postes (vingança privada)
{C}· Silêncio nas favelas (poder paralelo)
É como se toda criação legislativa, todo esforço do Estado em regular a vida em sociedade estivesse falhado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo teve como objetivo demonstrar a evolução do direito de punir desde os tempos da Idade Média até os dias atuais.
O que se conclui a partir do que foi exposto é que as garantias trazidas pela Constituição de 1988 servem para proteger o cidadão e para dar segurança jurídica ao Estado Democrático de Direito que vivemos e sem sombra de dúvidas eles devem ser respeitados.
No entanto as limitações ao direito de punir devem ser repensadas. Nenhum direito é absoluto, principalmente quando se pensa no melhor para coletividade. Ora, se o Direito veio para regular a vida em sociedade, este deve ser o maior objetivo, mesmo que alguns direitos devam ser relativizados em detrimento do bem maior, que é a coletividade.
Atualmente as garantias trouxeram um afrouxamento às leis penais e a sensação que a sociedade tem é de impunidade. Todos os dias se vê uma total inversão de valores, onde a criminalidade está se prosperando em detrimento do Estado, assim como Émile Durkhein previu na sua Teoria da Anomia.
Se o Estado não reagir, infelizmente a sociedade chegará num futuro próximo ao caos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
JESUS, Damásio E. de. Lei dos Juizados Especiais Anotada. São Paulo: Saraiva, 1996.
LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
[1] CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 45.
[2] PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 45.
[3]{C} Ibid. p. 47.
[4] LOPES Jr., Aury. Direito Processual Penal. 9. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 88.
[5]{C} Ibid. p.89.
[6]{C} Op. Cit. p. 95.
[7] JESUS, Damásio E. de. Lei dos Juizados Especiais Anotada. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 2.