No estudo do processo evolutivo da espécie humana, há uma série de classificações de acordo com as suas diferentes fases, a exemplo do Homem de Java e o de Neandertal. Discrepâncias no que diz respeito ao tamanho, à curvatura da coluna vertebral, arcada dentária, dentre outros detalhes, são utilizadas para o uso adequado da nomenclatura a ser tecnicamente empregada. Todavia, sem querer invadir imprudentemente os demais ramos da ciência que se dedicam ao estudo do homem, não seria pretensioso demais cogitar uma subdivisão entre nós, conhecidos como homo sapiens. Este, por sua vez, poderia, no âmbito jurídico, ser classificado ora como visível, ora como invisível.
No meio social, os visíveis seriam aqueles que ocupam altos cargos na administração pública ou nas grandes empresas privadas, detentores de reluzente patrimônio, sucesso profissional e uma filosofia própria. Muito bem vestidos serão chamados de doutor e, quando quase despidos, ninguém ousará chamá-los pelos apelidos, sem que estejam precedidos do tratamento de senhor. Caso venham se tornar pessoas públicas, irão transmitir certa divindade, do tipo que cura todos os males com um simples toque. Provavelmente, ganharão o status de filho preferido ou de “bom partido”.
Em contrapartida, há o grupo dos invisíveis. Esses, embora também tenham tronco e membros, ninguém nota sua presença. Estão misturados na multidão e não há quem se importe como são chamados. O único dom relacionado à divindade é de estarem em todos os lugares como quem é capaz de atravessar paredes de concreto sem serem percebidos, nem mesmo por videntes e cartomantes. Essa espécie não abrange apenas os toxicômanos, bêbados dos pobres botequins, doentes nas enfermarias dos hospitais públicos, detentos largados à própria sorte e mendigos que dormem nas ruas embrulhados em um punhado de jornal (desde que não o façam em áreas nobres das grandes cidades, onde correrão o risco de serem identificados e recepcionados com querosene ou chuva artificial). Desse grupo fazem parte também as senhoras que retiram bandejas nas praças de alimentação dos shoppings, limpadores de banheiros públicos, meninos engraxates e, principalmente, os que amargam o desemprego. Esses últimos, não raramente, são invisíveis até mesmo para os seus consanguíneos e cônjuges. Não despertam nenhum interesse intelectual, emocional, muito menos sexual, porque só existem em outra dimensão, em um universo paralelo composto de cinismo e menosprezo. Além de transfixarem as divisórias, os visíveis caminham através dos seus corpos, completamente imunes aos sentidos humanos. Se alguém quiser encontrá-los, talvez consiga repaginando um álbum de família, mas nunca em um porta-retratos, onde até pessoas falecidas possuem vaga cativa. Há quem desapareça em vida, há quem apareça post-mortem. Sim, Elvis não morreu!
No mundo da invisibilidade, haverá sempre alguém tentando se tornar matéria. Os dois métodos mais utilizados são o suicídio e o crime. A autodestruição fará surgir um corpo, que enquanto não for sepultado conseguirá ser visto, velado ou até contemplado. Todavia, a six feet under, voltarão à condição anterior. O crime costuma ser um caminho eficaz para materialização dos invisíveis e, na maioria das vezes, por um tempo mais duradouro. O menino engraxate, por exemplo, quando passa a empunhar um fuzil ganha mais atenção do que um Tigre de Bengala foragido da jaula. Para o Estado, que nunca o reconheceu como pessoa, haverá o empenho em colocá-lo em sua lista de prioridades. O invisível ganhará uma foto no tradicional cartaz de Wanted Dead Or Alive, e a Justiça, pela primeira vez, terá olhos para ele, apesar de somente no que diz respeito ao Direito Penal. Encarcerado pelo sistema prisional, retornará ao estado de invisibilidade, mas talvez com a ideia difundida pelo ministro da propaganda do III Reich, Joseph Goebbels: “Melhor um dia de leão, do que cem anos de carneiro!”.
A vantagem do ser invisível que não cede às tentações da delinquência é a de não carregar o peso da culpa, tanto no aspecto legal, quanto do ponto-de-vista do pecado. Já nasceram condenados e viveram somente para o cumprimento de suas penas. Choraram e não foram ouvidos, pediram e não foram atendidos, imploraram e não foram vistos. Morrem duas vezes, na primeira enquanto respiram e na segunda quando suspiram. Deixam esse mundo para o desespero dos que ficam, pois estes perderam a chance da redenção, assim como os discípulos de Emaús, que não reconheceram o próprio Mestre.