Direitos fundamentais e nova interpretação constitucional: restrições, colisões e o princípio da proporcionalidade

03/04/2018 às 22:42
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Em tempos de agitação política, é importante lembrar como são solucionadas as colisões entre direitos fundamentais no contexto de uma nova interpretação constitucional, rememorando e questionando os ensinamentos de Dworkin e Alexy, e a proporcionalidade.

RESUMO

Este trabalho busca compreender em que medida são legítimas as restrições a direitos fundamentais e como é solucionada uma colisão entre direitos fundamentais no contexto da interpretação constitucional do pós-positivismo, considerando a relevância prática destes direitos para os indivíduos em sua relação com o Estado. Por meio de pesquisa bibliográfica, procurou-se a compreensão da atual conjuntura de tais direitos, com a análise de sua evolução sob um viés histórico e filosófico, além de suas principais funções, dimensões e características. De outra ponta, verificou-se a possibilidade de intervenções nos direitos fundamentais através do entendimento de como operam estes direitos, sobretudo com a análise do que vem a ser o âmbito de proteção e os limites dos direitos fundamentais. Noutro giro, destacou-se a insuficiência do positivismo legalista para a interpretação constitucional num momento em que os princípios constitucionais ganham destaque e as normas de direitos fundamentais são vistas, para além de sua fundamentalidade formal, como tendo caráter principiológico, de acordo com as teorias que distinguem princípios e regras, formuladas por Alexy e Dworkin. Por fim, analisou-se o emprego do princípio da proporcionalidade, com destaque para o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito, também entendido como técnica de ponderação, averiguando-se como tal princípio é operado e quais as principais críticas ao emprego deste método. Concluiu-se que o emprego do princípio da proporcionalidade, embora necessário, necessita, para justificar eventual intervenção estatal ou para solucionar uma colisão entre direitos fundamentais de densa fundamentação e controle de racionalidade, a serem perseguidos com o auxílio da teoria da argumentação, de modo a não se deixar que sua utilização desague em mero subjetivismo, voluntarismo e ativismo judicial.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Restrições a direitos fundamentais. Colisão entre direitos fundamentais. Pós-positivismo. Âmbito de proteção. Limites dos direitos fundamentais. Princípios e regras. Interpretação constitucional. Princípio da proporcionalidade. Proporcionalidade em sentido estrito. Técnica de ponderação. Intervenção estatal. Controle de racionalidade. Teoria da argumentação.

 

 

SUMÁRIO

           

1 INTRODUÇÃO

2 PANORAMA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.1 ELEMENTOS NECESSÁRIOS PARA SE FALAR EM DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.2 ABSOLUTISMO E ESTADO DE DIREITO

2.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.3.1 Breve consideração sobre a evolução histórica do conceito de dignidade da pessoa humana

2.3.2 A dignidade da pessoa humana como norma jurídica e os direitos fundamentais

2.4 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.4.1 A experiência Americana

2.4.1.1 as Declarações de Direitos e a Constituição americana

2.4.1.2 Marbury vs Madison: supremacia constitucional e direitos fundamentais

2.4.2 A Experiência Francesa

2.4.2.1 as Declarações de direitos

2.5 AS GERAÇÕES DE DIREITOS

2.5.1. Os direitos fundamentais de primeira geração

2.5.2. Os direitos fundamentais de segunda geração

2.5.3. Os direitos fundamentais de terceira geração

2.6 O PROBLEMA TERMINOLÓGICO

2.7 CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.8 FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.8.1 Direitos de Status Negativus (pretensão de resistência ou de defesa)

2.8.2 Direitos de Status Positivus (sociais ou prestacionais)

2.8.3 Direitos de Status Activus (políticos ou de participação)

2.9 DIMENSÃO SUBJETIVA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.10 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.10.1 Historicidade

2.10.2 Relatividade

2.10.3 Inalienabilidade/indisponibilidade

2.10.4 Vinculação dos poderes públicos

2.10.5 Aplicabilidade imediata

3 OS LIMITES E AS COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.1 ÁREA DE REGULAMENTAÇÃO (ÂMBITO DE PROTEÇÃO OU DOMÍNIO NORMATIVO) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.2 ÁREA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.3 CONFORMAÇÕES E RESTRIÇÕES

3.3.1 Concretização dos direitos fundamentais

3.3.2 Teorias sobre as restrições a direitos fundamentais

3.3.3 Tipos de restrições: reserva legal simples e reserva legal qualificada

3.3.4 Direitos fundamentais sem reservas legais

3.3.5 Restrições constitucionais excepcionais

3.3.6 Restrições constitucionais tácitas

3.4 OS LIMITES DOS LIMITES

3.4.1 A proteção do núcleo essencial

3.4.1.1 teoria absoluta e teoria relativa sobre a proteção do núcleo essencial

3.4.1.2 teoria subjetiva e teoria objetiva sobre a proteção do núcleo essencial

3.5 COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

3.5.1 Colisão autêntica entre direitos fundamentais e colisão entre direitos fundamentais e bens jurídico-constitucionais

3.6 CONCORRÊNCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS0

4 A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.1 A INSUFICIÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS NO PÓS-POSITIVISMO

4.2 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS

4.2.1 Regras e princípios em Dworkin

4.2.2 Regras e princípios em Alexy

4.2.3 A estrutura das normas de direitos fundamentais: princípios ou regras?

4.2.4 Princípios, regras e valores

4.3 PECULIARIDADES, MÉTODOS E PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

4.3.1 Peculiaridades da interpretação constitucional e dos direitos fundamentais

4.3.2 Métodos de interpretação constitucional

4.3.3 Princípios de interpretação constitucional

4.3.3.1 princípio da supremacia da Constituição

4.3.3.2 princípio da unidade da Constituição

4.3.3.3 princípio da máxima efetividade

4.3.3.4 princípio da concordância prática

4.3.3.5 princípio da força normativa da constituição

4.3.3.6 princípio da interpretação conforme a constituição

5. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E AS INTERVENÇÕES NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

5.1 ELEMENTOS (OU SUBPRINCÍPIOS) DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

5.1.1 Adequação

5.1.2 Necessidade

5.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito

5.2 COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO

5.3 LEGITIMAÇÃO DA PONDERAÇÃO POR MEIO DA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

5.4 CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO

6 CONCLUSÃO

REFERÊNCIAS

 

INTRODUÇÃO

É por intermédio de uma Constituição, documento jurídico-político supremo de uma sociedade, que a harmonização entre Estado e indivíduo é realizada. A Constituição define e garante os direitos fundamentais, entendidos estes como posições jurídicas do indivíduo que se encontram positivadas e são exigíveis frente ao Estado.

Os direitos fundamentais funcionam como instrumentos de defesa dos indivíduos contra o Estado e garantias de promoção da dignidade da pessoa humana, também a ser promovida pelo Estado. Por esta razão, é necessária uma compreensão geral dos direitos fundamentais, considerando sua evolução, funções, dimensões e características, até encontrar um conceito satisfatório de direitos fundamentais e limitar sua terminologia.

Tais direitos, não raro, acabam por entrar em conflito. Tal situação decorre da extensa gama ideológica albergada pela Constituição, que contempla opções políticas antagônicas.

Neste contexto, é preciso compreender, tendo em vista a unidade da Constituição, como ocorre a harmonização dos direitos fundamentais contrapostos. Isto quer dizer que é preciso saber sob quais critérios uma restrição a direito fundamental é legítima. De outra ponta, importa saber como pode ser solucionado um conflito de direitos fundamentais num caso concreto, em que o exercício de um dos direitos interfere no exercício de outro. Por conta disso, examinou-se quais os limites dos direitos fundamentais e como se desenvolve o conflito entre eles.

Estando os direitos fundamentais expressos na Constituição e possuindo caráter principiológico, sua interpretação e aplicação impõe certas peculiaridades que exigem métodos e princípios de interpretação e aplicação que vão além dos clássicos. Importante demonstrar, portanto, como a insuficiência do modelo positivista e ascensão dos princípios no pós-positivismo influenciaram o modo de interpretar a Constituição e os diretos fundamentais.

A nova interpretação constitucional oferece respostas para os problemas aqui levantados, com a formulação do princípio da proporcionalidade de Robert Alexy, com destaque para o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito que, embora necessário, está longe de ser imune à críticas.

A presente pesquisa se justifica na medida em que os direitos fundamentais ganham relevância prática e são alçados ao centro das constituições modernas, de modo que o estudo de suas crises e interações contribui para a evolução do Estado democrático de Direito e da realização da dignidade da pessoa humana.

2. PANORAMA GERAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Embora haja conexão - e confusão – entre as diversas expressões acerca dos direitos fundamentais, o fato é que existem diferenças, sendo melhor a utilização do termo direitos fundamentais para designar, em suma, a posição jurídica dos indivíduos frente ao Estado, de modo a poder exigir uma ação ou omissão do poder central, prevista em documento jurídico com força suprema na esfera estatal interna. 

Dentro dessa ordem de ideias, sem ignorar a história e a relevância de documentos jurídicos e ideias anteriores às condições necessárias para se falar em direitos fundamentais, é necessário estabelecer um ponto de corte para análise de sua evolução.  

A análise a partir desse ponto terá consequências na própria definição de um conceito de direitos fundamentais, vez que as diversas terminologias utilizadas – sem rigor - para tratar do tema se referem a objetos distintos. Assim, entendendo que só se pode falar em direitos fundamentais quando presentes o Estado, o indivíduo e um documento jurídico supremo que regule a relação entre ambos, sem a pretensão de esvaziar os conteúdos históricos, políticos, filosóficos, axiológicos etc., de elementos que não estejam compreendidos neste universo sugerido, o exame histórico deve ficar  restrito ao momento do surgimento do Constitucionalismo moderno e o advento do Estado de Direito, que desaguam e se confundem com a instituição dos direitos fundamentais e moldam seu moderno conceito de direito com força formal constitucional.

Sem embargo de tal posição, reconhecendo a importância de tal ponto para a compreensão dos direitos fundamentais, também será levada em conta a noção de dignidade da pessoa humana, de caráter histórico e axiológico, porém, também, normativo.

2.1 ELEMENTOS NECESSÁRIOS PARA SE FALAR EM DIREITOS FUNDAMENTAIS.

Antes da análise de textos normativos históricos e ideias filosófico-políticas, é preciso destacar que três são os elementos necessários para se falar em direitos fundamentais: Estado, indivíduo e um texto normativo regulador da relação entre os dois primeiros. 

Por essa razão, ainda que seja certo que a humanidade, desde muito cedo, tenha reconhecido, com gradações diferentes e contradições - manutenção da escravidão, por exemplo -, valores ligados à dignidade da pessoa humana que certamente exercem influência sobre o atual estágio jurídico dos direitos fundamentais, não é possível se falar deles antes do surgimento dos três componentes acima mencionados. 

Neste aspecto, manifesta-se George Marmelstein:

Nesse contexto, pode-se dizer tranquilamente que não havia direitos fundamentais na Antiguidade, nem na Idade Média, nem durante o Absolutismo, pois a noção de Estado de Direito ainda não estava consolidada. Não era possível, naqueles períodos, exigir do governante o cumprimento das normas que ele mesmo editava. Somente há sentido em falar em direitos fundamentais quando se admite a possibilidade de limitação jurídica do poder político. Portanto, o desenvolvimento da ideia de direitos fundamentais – enquanto normas jurídicas de hierarquia constitucional destinadas à limitação jurídica do poder político - somente ocorreu por volta do século XVIII, com o surgimento do modelo político chamado Estado Democrático de Direito, resultante das chamadas revoluções liberais ou burguesas. (MARMELSTEIN, 2011, p. 34). 

Considerando o exposto acima, é válida, ainda, a transcrição das definições de Dimoulis e Martins relativamente aos requisitos necessários para o surgimento dos direitos fundamentais: 

a) Estado. Trata-se do funcionamento de um aparelho de poder centralizado que possa efetivamente controlar determinado território e impor suas decisões por meio da Administração Pública, dos tribunais, da polícia, das forças armadas e também dos aparelhos de educação e propaganda política. Sem a existência de Estado, a proclamação de direitos fundamentais carece de relevância prática. Estes não poderiam ser garantidos e cumpridos e perderiam sua função precípua, qual seja a de limitar o poder do Estado em face do indivíduo. 

b) Indivíduo. Pode parecer supérfluo dizer que a existência dos indivíduos é um requisito dos direitos fundamentais. Não existem pessoas desde o início da humanidade? Do ponto de vista da filosofia e da teoria política, a resposta aqui é negativa. Nas sociedades do passado, as pessoas eram consideradas membros de grandes ou pequenas coletividades (família, clã, aldeia, feudo, reino), sendo subordinadas a elas e privadas de direitos próprios. 

c) Texto normativo regulador da relação entre Estado e indivíduos. O papel de regulador entre os dois elementos supra descritos é desemprenhado pela constituição no sentido formal, que declara e garante determinados direitos fundamentais, permitindo ao indivíduo conhecer sua esfera de atuação livre de interferências estatais e, ao mesmo tempo, vincular o Estado a determinadas regras que impeçam cerceamentos injustificados das esferas garantidas da liberdade individual. O texto deve ter validade em todo o território nacional e encerrar supremacia, isto é, força vinculante superior àquela das demais normas jurídicas. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, pp. 22-24). 

Assim, só se pode falar em direitos fundamentais quando estes forem exigíveis pelos indivíduos frente ao Estado, que estará adstrito ao documento jurídico supremo que regula a relação entre as duas partes.  

2.2 ABSOLUTISMO E ESTADO DE DIREITO

O absolutismo, modelo político adotado por grande parte dos países ocidentais entre os séculos XV a XVIII, funda-se no pensamento de Thomas Hobbes, para quem o homem seria um ser mau e egoísta, somente podendo ser dominado pelo poder absoluto do soberano, de modo a garantir a paz interna. Tal poder conferia ao soberano a possibilidade de julgar e legislar sem, contudo, ficar sujeito à julgamentos e às próprias leis que editava. De modo semelhante pensava Maquiavel, que defendia a conquista pela guerra, aniquilação do inimigo, fraude, instituição do terror, etc. (MARMELSTEIN, 2011, pp. 35-37). 

Tal teoria política, como se vê, encerrava o poder nas mãos de um único líder, acarretando em previsíveis problemas decorrentes da centralização de um poder que desconhecia qualquer controle externo e que poderia reprimir violentamente qualquer reação contra o modelo vigente. 

Como reação a tal estado de coisas, que oprimia cruelmente os mais fracos e pobres, "O Estado contemporâneo nasce, no final do século XVIII, de um propósito claro, qual seja o de evitar o arbítrio dos governantes". (FERREIRA FILHO, 1996, p. 1). 

Este novo Estado, denominado Estado de Direito, significava que o poder político ficaria adstrito e subordinado a um direito objetivo, que exprimiria um ideal de justiça. Ademais, segundo Locke, as leis não seriam ditadas unilateralmente pelo soberano, mas pactuadas pelos membros da sociedade civil, que abririam mão de parcela de sua liberdade. Até mesmo o Príncipe estaria subordinado ao ordenamento legal. Na mesma quadra de ideias, de modo a inibir o poder desenfreado, surgiu a ideia de separação dos poderes, com Montesquieu. Por fim, a finalidade do Estado passou a ser o bem comum, conforme sustentou Jean-Jaques Rosseau. (FERREIRA FILHO, 1996, p. 2; MARMELSTEIN, 2011, p. 37-40). 

De fato, essa nova organização política assevera que a vontade do governante já não mais se confunde com a lei. A lei, aqui, é produto da soberania popular. A autoridade só estaria legitimada a governar dentro dos ditames legais estabelecidos pela sociedade, rechaçando os caprichos de líderes absolutos. 

Neste sentido, precisa é a síntese de José Afonso da Silva:

Na origem, como é sabido, o Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal; daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão dos poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face  dos demais e das pressões dos poderosos particulares; c) enunciado e garantia dos direitos individuais. (SILVA, 2013, pp. 114-115).

Os direitos fundamentais são, portanto, decorrência do Estado de Direito, consistentes em instrumentos para a limitação do poder estatal, de modo a conferir autonomia e liberdade aos indivíduos que se encontravam, antes, amplamente subordinados aos desmandos, crueldades e decisões aleatórias dos detentores do poder político. 

2.3 A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.3.1 Breve consideração sobre a evolução histórica do conceito de dignidade da pessoa  humana

A noção de dignidade da pessoa humana é anterior ao Estado, porém é inegável sua influência sobre o atual estágio do direito constitucional e sua íntima ligação com os direitos fundamentais. Tal noção, contudo, é, ainda hoje, polissêmica e carregada de um certo grau de indeterminação, sendo objeto de controvérsia o seu conteúdo, sendo tema de constante aperfeiçoamento.

Historicamente, em específico no que atine ao pensamento ocidental, é possível identificar variadas concepções desta noção. Com efeito, tanto no Antigo quanto no Novo Testamento são encontradas referências no sentido de que todo ser humano, criado à imagem e semelhança de Deus, possui valor próprio que lhe é inerente; Na antiguidade clássica, Marco Túlio Cícero desvinculou a compreensão de dignidade dos cargos e das posições sociais dos indivíduos, aduzindo que os homens deveriam respeitar e considerar os outros homes pelo simples fato de serem homens e regidos pelas mesmas leis naturais; A visão de Anicio Manlio Severino Boécio, do início da Idade Média, também influenciou a atual compreensão da dignidade da pessoa humana, ao dizer que a pessoa é uma substância individual de natureza racional; Tomás de Aquino, sem abandonar o fundamento de que a dignidade decorre do fato de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, acrescentou a capacidade de autodeterminação do homem, afirmando que ele vive em função de sua própria vontade; Na mesma linha, Giovanni Picco della Mirandola asseverou que o homem recebeu de Deus uma natureza não determinada, para que seja e obtenha o que quiser segundo seu arbítrio; Outra importante contribuição veio de Francisco de Vitoria, durante o século XVI, ao sustentar, durante a expansão colonial espanhola, que os indígenas mereciam respeito como sujeitos de direito, em decorrência do direito natural e da natureza humana. (SARLET, 2011, p. 34-38).

A ruptura com as noções de que a dignidade do homem estaria fundada em alguma qualidade natural dele ou em sua posição social ou, ainda, numa concessão divina, veio com Samuel Pufendorf. Para ele, em sua construção de pensamento secular e racional, a dignidade decorre da liberdade moral e não da natureza humana em si. A secularização do conceito de dignidade atingiu o ápice com a concepção de Immanuel Kant, para quem a autonomia da vontade era algo somente encontrável em seres racionais. Desse modo, Kant sustentou que o ser humano é um fim em si mesmo e por isso deve ser respeitado, sendo certo que a dignidade não tem preço (SARLET, 2011, p. 39-41).

2.3.2 A dignidade da pessoa humana como norma jurídica e os direitos fundamentais

Não obstante a dificuldade em descrever um conceito preciso, fato é que a dignidade da pessoa humana passou a integrar o ordenamento jurídico constitucional positivo de várias nações.

Neste sentido, leciona Carmen Lúcia:

O princípio da dignidade da pessoa humana entranhou-se no constitucionalismo contemporâneo, daí partindo e fazendo-se valer em todos os ramos do direito. A partir de sua adoção se estabeleceu uma nova forma de pensar e experimentar a relação sócio-política baseada no sistema jurídico; passou a ser princípio e fim do Direito contemporaneamente produzido e dado à observância no plano nacional e no internacional. (ANTUNES ROCHA, 2016, p.49).

Com efeito, a Constituição Federal de 1988 reconhece a dignidade da pessoa humana como fundamento de nossa República, conforme ressalta Ingo Sarlet:

Consagrando expressamente, no título dos princípios fundamentais, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado democrático (e social) de Direito (art. 1°, inc. III, da CF), o nosso Constituinte de 1988 – a exemplo do que ocorreu, entre outros países, na Alemanha -, além de ter tomado uma decisão fundamental a respeito do sentido, da finalidade e da justificação do exercício do poder estatal e do próprio Estado, reconheceu categoricamente que é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui a finalidade precípua, e não meio da atividade estatal (SARLET, 2011, p. 79-80).

Assim, embora indeterminada, a noção da dignidade da pessoa humana não pertence mais somente ao campo da política e da filosofia. É, agora, conceito jurídico-positivo. Conceito que apresenta quais os limites e obrigações da atuação estatal frente ao indivíduo, daí decorrendo sua ligação com os direitos fundamentais, pois define seu conteúdo e baliza sua interpretação.

Sobre a relação entre a dignidade da pessoa humana e os diretos fundamentais, leciona Carmen Lúcia:

Aliás, o princípio da dignidade da pessoa humana tornou-se, então, valor fundante no sistema no qual se alberga, como espinha dorsal da elaboração normativa, exatamente os direitos fundamentais do homem. Aquele princípio converteu-se, pois, no coração do patrimônio jurídico-moral da pessoa humana estampado nos direitos fundamentais escolhidos e assegurados na forma posta no sistema constitucional. (ANTUNES ROCHA, 2016, p. 54).

Para esclarecer a relação entre direitos fundamentais e dignidade da pessoa humana, válida a lição de José Afonso da Silva, para quem “a dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida”. (SILVA, 2007, p. 38).

De fato, embora nem sempre direto, o liame entre dignidade e direitos fundamentais é evidente, sendo certo que estes podem ser vistos como concretizações daquela.

Em suma, o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos fundamentais de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos), muito embora – importa repisar – nem todos os direitos fundamentais (pelo menos no que diz com os direitos expressamente positivados na  Constituição Federal de 1988) tenham um fundamento direito na dignidade da pessoa humana. (SARLET, 2011, p. 101-102).

2.4 EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

2.4.1 A experiência Americana

A independência americana em relação a Grã-Bretanha, ao lado da Revolução francesa é, sem sombra de dúvidas, um acontecimento histórico de suma importância para o desenvolvimento dos direitos fundamentais.  

A independência americana era previsível, tendo em vista o divórcio entre os valores sociais e costumes políticos praticados nas colônias e na Grã-Bretanha. Na américa, diferentemente da sociedade estamental europeia, a sociedade era formada por cidadãos livres e iguais juridicamente. A defesa das liberdades individuais e o government by consent são decorrentes dessa igualdade jurídica. 

Neste contexto, afirma Comparato:A América do Norte foi, desde o início, uma sociedade de proprietários, em que a igualdade perante a lei exercia a função de garantia fundamental da livre concorrência; ou seja, uma democracia burguesa. (COMPARATO, 2013, p. 113).”

Os fatos que levaram ao movimento de independência estão ligados a tributação elevada e interferência no mercado praticados pela Grã-Bretanha, considerados insuportáveis pelos colonos claramente inclinados ao comércio e à livre iniciativa. 

(...). Os norte-americanos, em sua grande maioria cidadãos britânicos, continuavam submetidos à legislação criada pelo Parlamento do Reino Unido. Em geral, o legislador britânico lembrava-se dos cidadãos do além-mar quando da fixação e levantamento de impostos, considerados, muitas vezes, abusivos. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 26). 

Tais ocorrências desencadearam revoltas que provocaram a reunião das colônias em congressos continentais, sendo o primeiro deles o da Filadélfia, em 1774, quando Thomas Jefferson redigiu A Sumary View of the Rights of British America, que serviria como base para o projeto de Declaração da Independência de 4 de julho de 1776. (COMPARATO, 2013, p. 114-116).

2.4.1.1 as Declarações de Direitos e a Constituição americana

A Declaração de Virgínia, feita em 16 de junho de 1776, institui as ideias de soberania popular e direitos inalienáveis da pessoa humana, inspirando outras declarações históricas. 

A proclamação de abertura, asseverando que todos os seres humanos são, pela sua própria natureza, igualmente livres e independentes, dá o tom de todas as grandes declarações de direitos no futuro, como a francesa de 1789 e a Declaração Universal de 1948, aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas (COMPARATO, 2013, p. 127).  

Seu texto, no que importa aos direitos fundamentais, ainda confere ao povo o poder de mudar os governantes e até mesmo a forma de governo; afirma o princípio fundamental de igualdade perante a lei e de igualdade política; defende a instituição do júri e a liberdade de imprensa e religiosa. 

Já a Declaração de Independência dos Estados Unidos de 04 de julho de 1776 foi uma novidade absoluta, instituindo a nova legitimidade política calcada na soberania do povo. Asseverava que os governos existiam para garantir aos homens os seus direitos naturais e que, se a forma de governo fosse destrutiva, o povo poderia alterá-la ou aboli-la. O texto ainda expressa que são verdades autoevidentes o direito universal e inalienável à vida, à liberdade e a busca da felicidade. 

A Convenção de Filadélfia de 1787 estava preocupada com a organização e unidade dos estados independentes. Buscava, prioritariamente, a reorganização política dos Estados Unidos. Por esta razão, em sua primeira versão, não possuía um Bill of Rights. Entretanto, não tardou para que se introduzisse no texto constitucional americano disposições relativas aos direitos fundamentais: as dez primeiras emendas à Constituição Federal, cuja ratificação terminou em 1791. Estas emendas proclamam direitos tais como liberdade de religião, livre manifestação do pensamento, a segurança, a proteção contra acusações penais infundadas e penas arbitrárias e a propriedade individual. 

As declarações e a Constituição americana inauguram o novo modelo político, abrindo espaço para a afirmação dos direitos fundamentais, que seriam aperfeiçoados com a Revolução Francesa. 

2.4.1.2 Marbury vs Madison: supremacia constitucional e direitos fundamentais

Em 1801, o Presidente americano John Adams e o Congresso aprovaram uma lei de reorganização do judiciário federal que previa a redução dos Ministros da Suprema Corte, para impedir nova nomeação pelo Presidente que entraria e ainda criava 16 novos cargos de juiz federal, todos preenchidos por aliados de Adams, derrotado nas eleições e buscando conservar sua influência. Neste mesmo ano, nova lei autorizou o Presidente a nomear 42 juízes de paz. Ocorre que não foi possível para Marshall, Secretário de Estado e nomeado para presidente da Suprema Corte, entregar todos os atos de investidura antes do fim do governo de John Adams. James Madison, Secretário de Estado do novo Presidente Thomas Jefferson recusou-se a entregar os atos de investidura faltantes. Entre os que não receberam o ato de investidura estava William Marbury, que propôs ação judicial para ver seu direito ao cargo reconhecido. O Congresso, agora de maioria Republicana, revogou a lei de reorganização, extinguindo os cargos criados e suspendeu a sessão da Corte, deixando-a sem se reunir de dezembro de 1801 até fevereiro de 1803. (BARROSO, 2012, pp. 25-27).

O caso foi finalmente julgado e, em que pese o contexto político, a decisão proferida por John Marshall estabeleceu, num corte histórico, o controle judicial de constitucionalidade e a supremacia constitucional. 

Ao expor suas razões, Marshall enunciou os três grandes fundamentos que justificam o controle judicial de constitucionalidade. Em primeiro lugar, a supremacia da Constituição: 'Todos aqueles que elaboram constituições escritas encaram-na como a lei fundamental e suprema da nação'. Em segundo lugar, e como consequência natural da premissa estabelecida, afirmou a nulidade da lei que contrarie a Constituição: 'Um ato do Poder Legislativo contrário à Constituição é nulo'. E, por fim, o ponto mais controvertido de sua decisão, ao afirmar que é o Poder Judiciário o intérprete final da Constituição: 'É enfaticamente da competência do Poder Judiciário dizer o Direito, o sentido das leis. Se a lei estiver em oposição à Constituição a corte terá de determinar qual dessas normas conflitantes regerá a hipótese. E se a Constituição é superior a qualquer ato ordinário emanado do legislativo, a Constituição, e não o ato ordinário, deve reger o caso no qual ambos se aplicam' (BARROSO, 2012, p. 30).

Ao se afirmar a supremacia constitucional, fica estabelecida a primazia, também, dos direitos fundamentais, pois estes estão previstos no próprio texto constitucional. Assim, toda norma ordinária que atentar contra os direitos fundamentais será declarada inconstitucional. 

Isso constitui um importantíssimo passo na construção do constitucionalismo e da própria dogmática dos direitos fundamentais. Declarando-se competente para fiscalizar o respeito aos direitos fundamentais com o poder de afastar leis votadas pela maioria dos representantes do povo, o Judiciário deixou claro que o legislador ordinário não tem o poder de definir (e restringir) conforme seu arbítrio os direitos fundamentais. Pode e deve ser fiscalizado pelo judiciário, sendo suas decisões invalidadas em prol da proteção de indivíduos ou minorias. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, pp. 25-26). 

2.4.2 A experiência francesa 

O constitucionalismo europeu foi impulsionado, filosoficamente, pelas ideias iluministas.  

Na França, a classe burguesa buscava controlar e manipular a ira das camadas populares, que se viam na miséria, para lutar contra a nobreza que consideravam parasitária, detentora de privilégios não justificados. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 27). 

(...) "o grande impulso revolucionário eclodiu como uma desforra, longamente reprimida, contra a humilhação das desigualdades." (COMPARATAO, 2013, p. 151). 

Neste período, a França era um país absolutista. O rei gozava de poderes absolutos em seu governo, controlando a economia, a política e até mesmo a religião dos governados. 

 A democracia nem era cogitada; qualquer um que se opusesse ao governo era condenado à guilhotina ou era preso na Bastilha (prisão política da monarquia). 

 A sociedade era hierarquizada e dividida em estamentos. No topo da pirâmide estava situado o clero, em seguida a nobreza. A base dessa sociedade era formada pelos desempregados que, em número, aumentavam em grande proporção – estes eram classificados como o Terceiro Estado. 

Os trabalhadores tinham uma vida miserável e a burguesia almejava uma participação política maior e mais liberdade econômica, mesmo tendo uma condição de vida melhor. 

Com seu reinado em crescente endividamento, Luis XVI procurou adaptar várias formas de mudança para se livrar da situação. Entretanto suas tentativas fracassaram. Surgiram, então, tumultos de ordem popular. Diante da adversidade, o monarca decidiu convocar os “Estados Gerais” para solucionar a crise do país. 

Devido à crise começou a despontar das camadas intermediárias do Terceiro Estado, indivíduos com agitação política impregnados de ideias iluministas. 

Por toda a França, atos semelhantes se espalharam; até mesmo nas áreas rurais. 

Em pouco tempo, era notável que a Revolução – em sua fase inicial – havia triunfado. 

No mês seguinte a Assembleia Constituinte cancelou os direitos feudais e promulgou a Declaração dos Direitos do Homem. Esta declaração seria o manifesto revolucionário da nova França.  (BERGARA; GONÇALVES, 2008).

Assim, tencionando limitar o poder dos governantes, o movimento revolucionário encontrou no "terceiro estamento", composto por aqueles que não faziam parte nem da nobreza e nem do clero, o novo titular da soberania (COMPARATO, 2013, p. 153). 

A classe burguesa resolvia, assim, elegantemente, a delicada questão da transferência da soberania política. Em lugar do monarca, que deixava o palco, entrava em cena uma entidade global, dotada de conotações quase sagradas, que não podiam ser contestadas abertamente pela nobreza e o clero, sob pena de sofrerem acusação de antipatriotismo; entidade essa que, de qualquer forma, pairava acima do povo, onde predominava a força numérica dos não proprietários. (COMPARATO, 2013, p. 156). 

Tão grande era a vontade revolucionária em romper com as antigas tradições, que julgava injustas, que acabou por promover uma mudança no próprio sentido do vocábulo revolução. Antes da experiência francesa, a palavra tinha o sentido de "volta às origens" e restauração de antigos costumes. 

O grande movimento que eclodiu na França em 1789 veio operar na palavra revolução uma mudança semântica de 180°. Desde então, o termo passou a ser usado para indicar uma renovação completa das estruturas sociopolítcas, a instauração ex novo não apenas de um governo ou de um regime político, mas de toda uma sociedade, no conjunto das relações de poder que compõem suas estruturas. Os revolucionários já não são os que se revoltam para restaurar a antiga ordem política, mas os que lutam com todas as armas – inclusive e sobretudo a violência - para induzir o nascimento de uma sociedade sem precedentes históricos. (COMPARATO, 2013, p. 141). 

Dessa forma, o movimento de 1789 ficou marcado pela luta pela igualdade. Os revolucionários queriam o fim das desigualdades estamentais, a extinção das servidões feudais, o cessar dos privilégios religiosos, a proibição do tráfico de escravos e a libertação da tirania monárquica. (COMPARATO, 2013, pp. 148-150). 

2.4.2.1 as Declarações de direitos

A Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão representou o fim do Ancien Régime e foi o primeiro elemento constitucional do novo regime político. As palavras homem e cidadão foram empregadas conjuntamente porque os revolucionários se dirigiam a todos os povos, tendo o documento uma dimensão universal, correspondendo aos ideais dos revolucionários que se julgavam apóstolos de uma nova ordem. O texto, tratando de liberdades públicas, fixou que não haveria crime sem lei anterior que o definisse e nem pena que não houvesse sido fixada em lei. Ainda estipulou a garantia da propriedade privada contra expropriações abusivas e a estrita legalidade na criação e cobrança de tributos (COMPARATO, 2013, pp. 163-164). 

A Declaração de Direitos da Constituição de 1791 fez importantes acréscimos à preambular Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Reforçou o caráter antiaristocrático a antifeudal do novo regime e. pela primeira vez na história, reconheceu a existência de direitos de caráter social, criando a Assistência Pública para educar crianças abandonadas, ajudar enfermos pobres e fornecer trabalho aos pobres. Ademais, previu expressamente que o legislativo não poderia confeccionar leis que atentassem contra o exercício dos direitos naturais e civis (COMPARATO, 2013, pp. 165-166). 

A guerra externa e a queda da monarquia provocaram a convocação de nova Assembleia Constituinte. A Convenção extinguiu a monarquia e instituiu o regime republicano. A Declaração de Direitos da Constituição de 1793 limitou-se a enfatizar o conteúdo das declarações anteriores, trazendo como inovações o reconhecimento da soberania política como sendo pertencente ao povo, com a consequente abolição das diferenças de voto entre os cidadãos; a proclamação de que a ordem jurídica devia proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos governantes e a afirmação de que a insurreição contra um governo que violasse os direitos era tanto um direito como um dever (COMPARATO, 2013, pp.166-168). 

A Constituição de 1795 foi promulgada após uma série de acontecimentos – a não aplicação da Constituição de 1793, o golpe de estado e a execução de Robespierre, a insurreição popular de Paris -, visando afastar o povo do poder. Ficaram, então, suprimidos da Declaração de Direitos, os direitos fundamentais de "resistência à opressão", as liberdades de opinião, de expressão e de culto. O mesmo ocorre com os direitos sociais garantidos nas declarações anteriores. Em complemento, promoveu-se uma declaração de deveres dos cidadãos, aduzindo que as virtudes privadas são indissociáveis das virtudes cívicas (COMPARATO, 2013, pp. 168-170). 

2.5 AS GERAÇÕES DE DIREITOS.

Os direitos fundamentais manifestam-se em três gerações “que traduzem sem dúvida u processo cumulativo e qualitativo [...]” (BONAVIDES, 2011, p. 563)

2.5.1. Os direitos fundamentais de primeira geração

Os direitos fundamentais de primeira geração são aqueles que marcaram presença acentuada nas experiências americana e francesa. 

Os direitos da primeira geração são os direitos da liberdade, os primeiros a constarem do instrumento normativo constitucional, a saber, os direitos civis e políticos, que em grande parte correspondem, por um prisma histórico, àquela fase inaugural do constitucionalismo do Ocidente. (BONAVIDES, 2011, p. 563). 

Os direitos estampados nas declarações confeccionadas no âmbito da Independência Americana e da Revolução Francesa recebiam influência do pensamento liberal, acabando por colocar-se como documentos que exigiam do governante a defesa da propriedade, o efetivo cumprimento da legalidade e abstenção de causar interferências na vida privada. Além da garantia de tais liberdades, também estavam consagrados os direitos políticos como forma de permitir ao povo, através do exercício democrático, a participação nas tomadas de decisão. (MARMELSTEIN, 2011, p. 45-46). 

Os direitos da primeira geração ou direitos da liberdade têm por titular o indivíduo, são oponíveis ao Estado, traduzem-se como faculdades ou atributos da pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos de resistência ou de oposição perante o Estado (BONAVIDES, 2011, p. 563-564). 

2.5.2. Os direitos fundamentais de segunda geração

A revolução industrial ocorrida durante o século XIX proporcionou, além de grande crescimento econômico, uma série de problemas sociais, sobretudo para a classe trabalhadora que vivia em situação deplorável: sem limitação de jornada de trabalho, salário mínimo, férias ou descanso regular. O Trabalho infantil era comum. Neste contexto, o Estado não podia mais garantir a convivência entre a parte faminta, desempregada e doente da população e a burguesia. O Estado de bem-estar social nasce, então, com o propósito de promover maior igualdade social e condições básicas para uma vida digna. Surgem, primeiramente, os direitos dos trabalhadores e, além deles, outros essenciais para uma boa qualidade de vida (saúde, alimentação, moradia, educação, assistência social etc.), independentemente da condição de trabalhador. (MARMELSTEIN, 2011, p. 49-51). 

São os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades, introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado social, depois que germinam por obra da ideologia e da reflexão antiliberal do século XX. Nasceram abraçados ao princípio da igualdade, do qual não se podem separar, pois fazê-lo equivaleria a desmembrá-los da razão de ser que os ampara e estimula. (BONAVIDES, 2011, p. 564). 

A Constituição do México de 1917 foi a primeira a garantir um extenso rol de direitos sociais, muito parecida com as disposições de nossa atual Constituição. A Constituição de Weimar de 1919, promulgada em meio a instabilidade política, também foi pioneira ao declarar direitos fundamentais sociais e econômicos, muito embora os tribunais da época os considerassem como meros programas e objetivos políticos. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 29-30). 

De juridicidade questionada nesta fase, foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. Atravessaram, a seguir, uma crise de observância e execução, cujo fim parece estar perto, desde que recentes Constituições, inclusive a do Brasil, formularam o preceito da aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais. (BONAVIDES, 2011, p. 564). 

2.5.3. Os direitos fundamentais de terceira geração

Após o reconhecimento dos direitos fundamentais de segunda geração, seguiram, considerando a necessidade da solidariedade entre os seres humanos de todas as raças e nações, os direitos fundamentais de terceira geração. (FERREIRA FILHO, 1996, p. 57). 

Surgem ao fim da Segunda Guerra Mundial, impulsionado por um movimento universal em favor da internacionalização dos valores ligados à dignidade da pessoa humana, buscando o estabelecimento de um padrão ético global. (MARMELSTEIN, 2011, p. 54). 

Tais direitos, acrescendo historicamente aos de liberdade e igualdade, são dotados de alto teor de humanismo e universalidade, sendo destinados ao gênero humano como um todo. São o ápice de uma evolução de mais de 300 anos para concretização dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2011, p. 569). 

Esses novos direitos visam à proteção de todo o gênero humano e não apenas de um grupo de indivíduos. No rol desses direitos, citam-se o direito ao desenvolvimento, o direito à paz, o direito ao meio ambiente, o direito de propriedade sobre o patrimônio comum da humanidade e o direito de comunicação. (MARMELSTEIN, 2011, p. 54). 

2.6 O PROBLEMA TERMINOLÓGICO

Existem diversas expressões utilizadas para se referir aos direitos fundamentais, tal como direitos do homem, direitos humanos, direitos da pessoa humana, direitos humanos fundamentais, liberdades públicas, etc. Tal diversidade gera problemas, vez que não esclarece qual o objeto a ser estudado, dificultando sua classificação, que terá consequências práticas em relação a proteção e efetivação judicial desses direitos (MARMELSTEIN, 2011, p. 17). 

Alguns desses termos são utilizados na própria Constituição Federal que não foi consequente na terminologia. Isso é lamentável, pois aqui temos uma 'questão terminológica essencial' em dois sentidos. Primeiro, porque os vários termos adquiriram significados diferentes na história constitucional mundial, segundo, porque o emprego de um termo pela Constituição Federal pode oferecer argumentos sistemáticos a favor ou contra a tutela de certos direitos, por exemplo, sugerindo a exclusão dos direitos sociais quando há referência a 'direitos individuais' ou a 'liberdades fundamentais', pelo menos em face de um entendimento de parte da doutrina que considera os direitos sociais como espécies de direitos coletivos e, portanto, não individuais. (DIMOULIS; MARTINS, p. 47). 

A escolha pelo termo direitos fundamentais justifica-se porque corresponde, ainda que sem o rigor necessário, ao vocabulário da Constituição Federal de 1988, sendo genérico e podendo abranger os direitos individuais e coletivos, os sociais e políticos, os de liberdade e de igualdade. (DIMOULIS; MARTINS, p. 48). 

Ainda cabe ressalvar a diferença entre as expressões direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais, por serem próximas e por serem as mais famosas, sendo, contudo, relacionadas a realidades distintas. 

 Assim, compreende-se a expressão direitos do homem como valores ético-políticos não positivados na ordem jurídica interna, muito próximos da ideia de direito natural. Não são direitos, mas algo anterior a eles e a própria matéria prima dos direitos fundamentais, que seriam os direitos do homem positivados. Por outro lado, a expressão direitos humanos está relacionada aos valores positivados na esfera jurídica internacional, nos pactos e tratados de direito internacional. (MARMELSTEIN, 2011, p. 27). 

2.7 CONCEITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O conceito de direitos fundamentais pode variar, conforme aduzido na análise do problema terminológico. As diferenças dizem respeito, em síntese, a fundamentalidade formal e material dos aludidos direitos e também à sua historicidade, no sentido de que seriam cronologicamente e axiologicamente anteriores ao Estado, cabendo a este o dever de reconhecer tais posições jurídicas. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, pp. 49-53). 

Marmelstein apresenta uma definição de direitos fundamentais que leva em conta o caráter axiológico dos direitos fundamentais: 

(...) os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico (MARMELSTEIN, 2011, p. 20). 

Não se nega o elemento axiológico em temas de direitos fundamentais, mormente considerando todo o exposto sobre sua ligação com a dignidade da pessoa humana, que também é um valor, além de norma. Entretanto, a fundamentalidade de um direito decorre da formalidade com que é positivado no âmbito constitucional, e não de seu conteúdo material. A opção por considerar um direito como sendo fundamental a partir de sua valoração moral é problemática por envolver um juízo moral, sujeito à subjetivismos. Ademais, por esse modo de ver, um direito infraconstitucional, passível de mudanças por eventuais maiorias parlamentares, poderia também ser considerado fundamental. 

(...) A posição dos direitos fundamentais no sistema jurídico define-se com base na fundamentalidade formal, indicando que um direito é fundamental se e somente (condição necessária) for garantido mediante normas que tenham força jurídica própria da supremacia constitucional. Esse elemento formal é também condição suficiente da fundamentalidade: todos os direitos garantidos na Constituição são considerados fundamentais (...) Isso indica que o termo 'direito fundamental' é sinônimo do termo 'direito que possui força jurídica constitucional'. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 49). 

Também é problemática, como já se disse, a interpretação de que os direitos fundamentais são pré-estatais e decorrentes da natureza humana, devendo o Estado reconhecê-los. Isso ocorre porque nenhum direito ou obrigação pode ser deduzida da natureza humana, conforme se depreende da história da humanidade, que esteve sob os mais variados regimes sociais, políticos e econômicos, o que não seria possível se a natureza do homem fosse sempre a mesma ou se essa natureza fosse determinante para o reconhecimento dos direitos por parte do poder político. Mais do que isso, considerar um direito fundamental por fundamentos como estes pode ocasionar graves consequências, como nos mostrou o regime nazista. (DIMOULIS; MARTINS, pp. 51-53). 

Um direito só existe juridicamente a partir da sua positivação, que estabelece seu exato alcance. Sem este estabelecimento, tem-se simplesmente uma reivindicação política, que, eventualmente, pode permitir a positivação dos direitos fundamentais, mas, evidentemente, não permite reivindicar direitos em âmbito jurídico. (DIMOULIS; MARTINS, p. 53). 

Considerando toda a exposição acima, a definição formulada por Dimoulis e Martins parece oferecer o conceito mais adequado de direitos fundamentais: 

Direitos fundamentais são direitos público-subjetivos de pessoas (físicas ou jurídicas), contidos em dispositivos constitucionais e, portanto, que encerram caráter normativo supremo dentro do Estado, tendo como finalidade limitar o exercício do poder estatal em face da liberdade individual. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 49). 

2.8 FUNÇÕES DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os direitos fundamentais desempenham várias funções, sendo certo que seu objetivo é restringir a atuação estatal através do reconhecimento de direitos públicos subjetivos aos indivíduos. Essas posições jurídicas subjetivas obrigam o Estado a fazer algo ou a abster-se, surgindo daí uma regra de competência negativa. Assim, a interação entre a esfera individual e estatal deve ser compreendida para que também o seja a função dos direitos fundamentais. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 57-58).

Se denominarmos a esfera do Estado com a Letra E e a esfera de cada indivíduo (titular do direito) com a letra I, podemos distinguir três categorias ou espécies de direitos fundamentais conforme o tipo de relacionamento entre E e I. Esta tipologia permite estabelecer uma distinção conceitual entre os direitos negativos (de resistência), os direitos prestaconais (incluindo os direitos sociais) e os direitos políticos, conforme as definições dadas por Jellinek nos finais do século XIX e utilizadas pela doutrina contemporânea. (DIMOULIS; MARTINS, 2011. p. 58).

2.8.1 Direitos de Status Negativus (pretensão de resistência ou de defesa)

Cuida-se de posição jurídica em que o indivíduo resiste a um agir estatal. Em direitos que tais, a liberdade do indivíduo é protegida contra o Estado, limitando sua possibilidade de atuação, vez que há um comando ordenando uma obrigação negativa por parte dele.

Os direitos de defesa caracterizam-se por impor ao Estado um dever de abstenção, um dever de não interferência, de não intromissão no espaço de autodeterminação do indivíduo. Esses direitos objetivam a limitação da ação do Estado. Destinam-se a evitar ingerência do Estado sobre os bens protegidos (liberdade, propriedade...) e fundamentam pretensão de reparo pelas agressões eventualmente consumadas (BRANCO; MENDES, 2011, p. 178).

Esses direitos guardam relação com aqueles proclamados nas declarações do século XVIII, correspondendo ao liberalismo clássico e tendo por finalidade evitar o arbítrio estatal. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 60)

2.8.2 Direitos de Status Positivus (sociais ou prestacionais)

Em relação aos direitos de Status Positivus temos a possibilidade de exigência, por parte do indivíduo, de que o Estado atue. Aqui o Estado interferirá na esfera do indivíduo, visando melhorar sua condição de vida mediante prestações materiais (bens e serviços) e normativas (normas que tutelam o direito fundamental). (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 60-61).

2.8.3 Direitos de Status Activus (políticos ou de participação)

São direitos que garantem a participação do indivíduo na constituição da vontade política do país.

Essa categoria de direitos oferece a possibilidade de participar na determinação da política estatal de forma ativa (o I pode interferir no E). Trata-se de direitos ativos porque possibilitam uma ‘intromissão’ do indivíduo na esfera da política decidida pelas autoridades do Estado (o I pode ‘entrar’ no E). Os direitos mais característicos são o direito a escolher os representantes políticos (sufrágio) e de participar diretamente da formação da vontade política (referendo, participação em partidos políticos). (DIMOULIS; MARTINS, p. 61).

2.9 DIMENSÃO SUBJETIVA E DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

George Marmelstein sintetiza a dupla dimensão dos direitos fundamentais:

A doutrina constitucional tem reconhecido que os direitos fundamentais possuem dupla dimensão: a subjetiva e a objetiva. De um lado, os direitos fundamentais, na sua dimensão subjetiva, funcionariam como fonte de direitos subjetivos, gerando para os seus titulares uma pretensão individual de buscar a sua realização através do Poder Judiciário. De outro lado, na sua dimensão objetiva, esses direitos funcionariam como um ‘sistema de valores’ capaz de legitimar todo o ordenamento, exigindo que toda a interpretação jurídica leve em consideração a força axiológica que deles decorre. (MARMELSTEIN, 2011, p. 318).

Isto considerado, é verificável que a dimensão subjetiva dos direitos fundamentais corresponde às posições jurídicas – já analisadas – do indivíduo frente ao Estado quando exige uma ação ou omissão.

Por seu turno, a dimensão objetiva trata dos direitos fundamentais de forma independente de seus titulares. Isto quer dizer que o controle da ação estatal pode ocorrer mesmo quando não haja intervenção e violação de direitos fundamentais de sujeitos de direito determinados. Decorre daí que os direitos fundamentais apresentam característica de normas de competência negativa, no sentido de que a liberdade outorgada ao indivíduo deriva do próprio Estado, independentemente de eventual exigência formulada em juízo. Este raciocínio, ressalte-se, é importante para o controle abstrato de constitucionalidade das normas, vez que não é necessário esperar uma violação de algum direito no plano concreto para que haja da ação estatal. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 118-119).

De outra ponta, a dimensão objetiva dos direitos fundamentais também evidencia a capacidade desses direitos de se irradiar por todo o ordenamento jurídico, funcionando como critério interpretativo e legitimador do sistema. Assim:

A dimensão objetiva resulta do significado dos direitos fundamentais como princípios básicos da ordem constitucional. Os direitos fundamentais participam da essência do Estado de Direito democrático, operando como limite do poder e como diretriz para a sua ação. As constituições democráticas assumem um sistema de valores que os direitos fundamentais revelam e positivam. Esse fenômeno faz com que os direitos fundamentais influam sobre todo o ordenamento jurídico, servindo de norte para a ação de todos os poderes constituídos. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 189).

E arrematam Dimoulis e Martins:

A doutrina nacional refere-se muitas vezes ao princípio da ‘interpretação conforme a Constituição’. Uma importante dimensão desse princípio é a ‘interpretação conforme os direitos fundamentais’ (grundrechtskonforme Auslegung). Quando o aplicador do direito está diante de várias interpretações possíveis de uma norma infraconstitucional, deve escolher aquela que melhor se coadune às prescrições dos direitos fundamentais. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 119).

Ainda em sede de dimensão objetiva, temos a decorrência do dever de tutela estatal dos direitos fundamentais, que deve proteger esses direitos contra agressões do próprio Poder Público ou de particulares.

Essa obrigação constitucional que o Estado – em todos os seus níveis de poder – deve observar é o chamado dever de proteção. Esse dever significa, basicamente, que (a) o legislador tem a obrigação de editar normas que dispensem adequada tutela aos direitos fundamentais, (b) o administrador tem a obrigação de agir materialmente para prevenir e reparar as lesões perpetradas contra tais direitos e (c) o Judiciário tem a obrigação de, na prestação jurisdicional, manter sempre a atenção voltada para a defesa dos direitos fundamentais. (MARMELSTEIN, 2011, p. 321-322).

2.10 CARACTERÍSTICAS DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Apontar características dos direitos fundamentais que sejam plenamente aceitas em todos os lugares é tarefa complexa, vez que o conteúdo e significado de tais direitos varia de Estado para Estado, considerando as diferenças culturais e históricas entre os povos.

Contudo, é possível analisar as características que são citadas com mais frequência.

2.10.1 Historicidade

Os direitos fundamentais são obras históricas da humanidade. Assim, considerando que os valores de cada época são diferentes, só se pode compreender o conteúdo dos direitos fundamentais dentro de um contexto histórico definido, que oferecerá uma visão ampla do desenvolvimento dos direitos fundamentais, não apenas sobre o nascimento e a evolução destes direitos, mas também sobre seus eventuais retrocessos e até desaparecimentos.

“Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.

(...) o que parece fundamental numa época histórica e numa determinada civilização não é fundamental em outras épocas e em outras culturas” (BOBBIO, 1992, p. 5-19).

 

 

2.10.2 Relatividade

Os direitos fundamentais são normas de caráter principiológico que não podem ser tidos como absolutos., pois, considerando que as normas de direitos fundamentais possuem o mesmo grau hierárquico constitucional, atribuir caráter absoluto à determinada norma de direito fundamental poderia esvaziar, quando da análise de um caso concreto, outra norma de direito fundamental. Assim, haveria uma contradição incontornável.

Dentro deste contexto, verifica-se que os direitos fundamentais possuem um grau de relatividade, podendo ser limitados quando houver confronto entre eles, observados os limites da razoabilidade e da proporcionalidade.

2.10.3 Inalienabilidade/indisponibilidade

Como os direitos fundamentais são reconhecidos como normas que se ligam ao postulado do princípio da dignidade da pessoa humana, não podem estar à disposição – jurídica ou materialmente – de seus titulares, pois o homem não pode se privar de sua própria dignidade.

Assim, o homem não pode se desfazer dos direitos que visam resguardar a vida biológica e as condições normais de saúde, bem como aqueles que garantem sua liberdade de autodeterminação (BRANCO; MENDES, 2011, p. 164-165)

2.10.4 Vinculação dos poderes públicos

Por serem constitucionalmente previstos, os direitos fundamentais funcionam como parâmetros de organização e de limitação dos poderes constituídos, de modo que qualquer ato advindo destes poderes deve estar em conformidade com os direitos fundamentais.

No caso do poder legislativo, verifica-se a vinculação aos direitos fundamentais, de forma positiva, quando é necessária e edição de norma infraconstitucional para concretização de determinado direito fundamental. Estando o poder legislativo obrigado a disciplinar o exercício de um direito fundamental e caso não o faça, haverá consequência. Tal omissão pode ensejar o manejo de ação direta de inconstitucionalidade ou de mandado de injunção. De outra ponta, mesmo havendo permissão constitucional para a restrição de algum direito fundamental, tal limitação deverá respeitar o núcleo essencial do direito (BRANCO; MENDES, 2011, p. 167).

Em relação ao poder executivo, é certo que a atividade administrativa deve respeitar o sistema de direitos fundamentais, sendo nulos os atos que ofendam tal sistema. Em especial, o administrador público deve interpretar as cláusulas gerais e de conceitos jurídicos indeterminados de acordo com os direitos fundamentais. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 169).

No que diz respeito ao poder judiciário, é clara a vinculação aos direitos fundamentais. A função judiciária tem a precípua missão de definir o conteúdo concreto e conferir a máxima eficácia possível aos direitos fundamentais, controlando os atos dos outros poderes, defendendo os direitos violados ou ameaçados e negando aplicação a preceitos que não respeitem os direitos fundamentais (BRANCO; MENDES, 2011, p. 172).

2.10.5 Aplicabilidade imediata

As normas que definem direitos fundamentais não podem ficar sob a dependência absoluta da intermediação do legislador ordinário para sua concretização, pois foram criadas pelo poder originário, expressão soberana do povo, estando acima dos poderes constituídos. Se assim não o fosse, o conteúdo dos direitos fundamentais poderia ser esvaziado pela omissão do legislador e teríamos um Estado de Direito formal, onde os direitos fundamentais não teriam eficácia (BRANCO; MENDES, 2011, p. 173).

Assim, ensinam Branco e Mendes, sobre a aplicabilidade imediata das normas que definem direitos fundamentais na Constituição de 1988:

“A Constituição brasileira de 1988 filiou-se a essa tendência, conforme se lê no § 1° do art. 5° do Texto, em que se diz que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”. O texto se refere aos direitos fundamentais em geral, não se restringindo apenas aos direitos individuais.

O significado essencial dessa cláusula é ressaltar que as normas que definem direitos fundamentais são normas de caráter preceptivo, e não meramente programático. Explicita-se, além disso, que os direitos fundamentais se fundam na Constituição, e não na lei – com o que se deixa claro que é a lei que deve mover-se no âmbito dos direitos fundamentais, não o contrário. Os direitos fundamentais não são meramente normas matrizes de outras normas, mas são também, e sobretudo, normas diretamente reguladoras de relações jurídicas” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 174).

3 OS LIMITES E AS COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

Estabelecida uma visão geral sobre os direitos fundamentais, cumpre agora investigar sobre os limites de tais direitos e eventuais conflitos entre eles, uma vez que “Do ponto de vista jurídico-dogmático, os direitos fundamentais tornam-se relevantes somente quando ocorre uma intervenção em seu livre exercício”. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 129).

É que a mera análise do texto expresso na Constituição e comentários acerca deste conteúdo carecem de relevância prática, que somente é adquirida quando o exercício de um direito fundamental é obstado. A mera atividade descritiva dos direitos fundamentais, desprezando a questão dos limites, conflitos e colisões entre eles, são semelhantes a atividade médica que somente estuda o funcionamento normal do corpo humano, sem se importar com que é mais importante: a patologia (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 129-130).

Dessa forma, precisa é a equação enunciada por Dimoulis e Martins, sobre o que há de mais importante no estudo dos direitos fundamentais:

Estudo dos direitos fundamentais = Estudo e tentativa de solução dos conflitos entre direitos fundamentais e outros bens jurídicos direta (bem jurídico-constitucional) ou indiretamente (reserva legal simples) protegidos pela Constituição ou conflitos de direitos fundamentais entre si (colisão de direitos fundamentais. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 132).

Nesta ordem de ideias, indispensável definir até onde um direito fundamental pode ser exercido ou restringido licitamente, de modo a compreender a existência de conflitos e situações de tensão entre tais direitos.

3.1 ÁREA DE REGULAMENTAÇÃO (ÂMBITO DE PROTEÇÃO OU DOMÍNIO NORMATIVO) DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

As normas que consagram direitos fundamentais protegem bens ou situações e relações, como a vida, o domicílio, a religião, a criação artística, etc. O âmbito de proteção de um direito fundamental é, portanto, um recorte de parcela da realidade, a qual o constituinte concebeu como merecedora de proteção e de uma garantia fundamental (CANOTILHO, 2003, p. 1262).

Sobre o assunto em tela, discorrem Dimoulis e Martins:

Cada direito fundamental objetiva regulamentar uma situação ou relação real, isto é, um conjunto de fatos que acontecem por razões físicas ou sociais. Por exemplo, o art. 5°, XII, da CF, refere-se a formas de comunicação humana, realizadas com a ajuda de meios técnicos de maior ou menor sofisticação. Trata-se aqui de uma situação social: duas pessoas desejam comunicar-se com privacidade e não tendo a possibilidade de se encontrar recorrem ao correio, ao telefone, ao telegrama, à comunicação que envolve transmissão de dados. O Constituinte estabelece que essas comunicações devem ser realizadas sem interferências alheias à vontade dos correspondentes (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 132).

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Isto considerado, verifica-se que a área de regulamentação de um direito fundamental é formada por dois elementos: a situação ou relação fática (viver, comunicar-se à distância, etc.) e a indicação de uma decisão, por parte do constituinte, sobre o que deve ocorrer nesta situação. Nos exemplos elencados, temos que a vida deve ser respeitada e que a comunicação deve ocorrer em condições de liberdade e privacidade (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 132-133).

3.2 ÁREA DE PROTEÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A determinação da área de regulamentação não é suficiente para a solução de um eventual conflito entre direitos fundamentais, pois nem toda situação prevista na área de regulamentação goza de proteção constitucional. Em síntese, área de regulamentação e área de proteção não se confundem, embora possa ocorrer equivalência entre ambas.

Assim, explicam Dimoulis e Martins:

A área de proteção é menor que a área de regulamentação toda vez que o constituinte retirou daquele recorte da realidade social sobre qual incide a norma (área de regulamentação) um comportamento ou situação não contemplados pela norma. Se isso não ocorrer, haverá equivalência entre os dois círculos que representam a área de regulamentação e a área de proteção (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 133).

E prosseguem, discorrendo sobre a restrição à área de proteção:

Caso contrário algumas condutas que estão incluídas na área de regulamentação permanecem sem proteção constitucional. Em particular, cada vez que a Constituição diz “salvo se”, “a não ser que”, “sendo vedado”, entendemos que o objetivo é restringir a área de proteção, excluindo os casos (comportamentos ou situações) descritos por estas locuções. Isso significa que a área de proteção de cada direito é resultado da subtração da área de regulamentação daqueles casos e situações que a Constituição não quis proteger (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 133).

De outra ponta, nem sempre é simples determinar se um bem, objeto ou conduta é protegido por uma norma de direito fundamental. Para tanto, é necessária uma interpretação sistemática da Constituição.

Tal sistematização e consequente determinação da área de proteção exige a análise da norma constitucional que garante o direito. Segundo Gilmar Mendes e Paulo Gonet Branco, tal análise deve levar em conta:

a) a identificação dos bens jurídicos protegidos e a amplitude dessa proteção (âmbito de proteção da norma);

b) a verificação das possíveis restrições contempladas, expressamente, na Constituição (expressa restrição constitucional) e identificação das reservas legais de índole restritiva. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 221).

3.3 CONFORMAÇÕES E RESTRIÇÕES

Embora seja certo que a ideia de restrição aos direitos fundamentais seja amplamente difundida e aceita no mundo jurídico, existem normas que, ao contrário de limitar e restringir o exercício dos direitos fundamentais, visam densificar, concretizar, completar o conteúdo das disposições constitucionais que garantem direitos fundamentais. As normas que limitam e restringem o exercício dos direitos fundamentais são conhecidas como restritivas, enquanto que as normas que buscam efetivar o conteúdo dos direitos fundamentais são chamadas de normas conformadoras (CANOTILHO, 2003, p. 1263).

Pela clareza e concisão, é válida a lição de Canotilho sobre o que são normas restritivas e normas conformadoras:

Entende-se por normas legais restritivas aquelas que limitam ou restringem posições que, prima facie, se incluem no domínio de protecção dos direitos fundamentais. As normas legais conformadoras completam, precisam, concretizam ou definem o conteúdo de protecção de um direito fundamental [...]. (CANOTLHO, 2003, p. 1263).

3.3.1 Concretização dos direitos fundamentais

Conforme exposto acima, existem normas de direitos fundamentais que conferem ao legislador ordinário uma margem de conformação para que concretize determinadas faculdades fundamentais, principalmente daquelas cujo âmbito (área) de proteção é estritamente normativo.

Sobre isto, assinalam Branco e Mendes:

Como essa categoria de direito fundamental confia ao legislador, primordialmente, o mister de definir, em essência, o próprio conteúdo do direito regulado, fala-se, nesses casos, de regulação, ou de conformação (Regelung oder Ausgestaltung) em lugar de restrição (Beschränkung)

É que as normas legais relativas a esses institutos não se destinam, precipuamente, a estabelecer restrições. Elas cumprem antes relevante e indispensável função como normas de concretização ou de conformação desses direitos. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 223)

Como alguns direitos fundamentais são genericamente previstos (por exemplo, direito à propriedade), é tarefa da lei infraconstitucional definir seu conteúdo e função, pois, não havendo tal definição, o exercício do direito fundamental restaria impossibilitado.

É importante ressaltar, que a lei que concretiza determinado direito fundamental também estabelece limites para o seu exercício. Relevante o ponto, na medida em que “deve ser sempre verificada a eventualidade de a lei concretizadora, sob o pretexto da operacionalização, estar limitando o direito de forma inconstitucional (intervenção e não simples concretização). (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 146).

3.3.2 Teorias sobre as restrições a direitos fundamentais

Duas são as teorias que versam sobre as restrições a direitos fundamentais, embora tenham sido concebidas, originalmente, em discussões sobre direito civil: Teoria interna e teoria externa.

De acordo com a teoria interna, os limites dos direitos fundamentais estão estabelecidos no próprio Texto Constitucional, não sendo função do legislador ordinário restringir, mas apenas regular. Então, ”os limites ao exercício de um direito são intrínsecos ao próprio direito [...] Assim, o direito e sua restrição não são duas coisas distintas, mas elementos imbrincados de uma coisa só [...]” (SOUZA, 2016). Fatores externos, portanto, não são considerados por esta teoria.

Para uma melhor compreensão, interessante transcrever a passagem de Silva acerca da teoria interna:

Se fosse necessário resumir a ideia central da chamada teoria interna, poder-se-ia recorrer à máxima frequentemente utilizada no direito francês, sobretudo a partir de Planiol e Ripert, segundo a qual ‘o direito cessa onde o abuso começa’. Com isso se quer dizer, a partir do enfoque da teoria interna – e daí o seu nome -, que o processo de definição dos limites de cada direito é algo interno a ele. É sobretudo nessa perspectiva que se pode falar em limites imanentes. Assim, de acordo com a teoria interna, ‘existe apenas um objeto, o direito com seus limites imanentes’. A fixação desses limites, por ser um processo interno, não é definida nem influenciada por aspectos externos, sobretudo não por colisões com outros direitos. (SILVA, 2010, p. 128).

Decorre daí que, para a teoria interna, os direitos fundamentais têm sempre estrutura normativa de regras, não podendo participar de qualquer processo de sopesamento. Ainda em sede de teoria interna, cumpre destacar que tal teoria, apesar de não aceitar a ideia de restrição a direito fundamental, não afirma a existência de direitos fundamentais absolutos. Recorrendo ao postulado de limites imanentes, assevera que os limites dos direitos fundamentais são estabelecidos pela própria Constituição (SILVA, 2010, p. 129-131).

De outra ponta, para a teoria externa, existem dois objetos distintos: o direito em si e suas restrições. Dessa divisão surge a possibilidade da aplicação da técnica de sopesamento para solução de conflitos entre direitos fundamentais e da própria regra da proporcionalidade. Isso porque as restrições não têm influência no conteúdo dos direitos, mas podem, apenas, em um caso concreto, restringir o exercício de um determinado direito fundamental, sem afetar sua validade e sua extensão prima facie (SILVA, 2010, p. 138).

Ademais, “Por outro lado, as restrições são também normas jurídicas e, para que elas tenham o condão de limitar o exercício de um direito fundamental, precisam guardar compatibilidade com a Constituição” (SOUZA, 2016).

Verifica-se, portanto, que a teoria externa guarda estreita relação com a teoria dos princípios, entendidos estes como mandados de otimização, que, prima facie, são ilimitados. Sendo certa a impossibilidade de existência de direitos absolutos, o próprio conceito de mandados de otimização já prevê que a realização de um princípio pode ser restringida por outros princípios colidentes. Tal distinção entre o direito prima facie e o direito definitivo (do caso concreto), mediante o sopesamento ou aplicação da regra da proporcionalidade, é pressuposto da teoria externa (SILVA, 2010, p. 139-140).

Noutro giro, percebe-se que as restrições podem se dar por meio de regras ou baseadas em princípios. As regras proíbem uma conduta permitida, num primeiro momento, por uma norma de direitos fundamentais ou autorizam o Estado a restringir a proteção de uma norma de direitos fundamentais. Já as restrições baseadas em princípios ocorrem, geralmente, quando o legislador ainda não se manifestou sobre uma situação de colisão. Aqui, caberá ao juiz, no caso especifico, decidir sobre a prevalência de um dos princípios colidentes (SILVA, 2010, p. 141-143).

3.3.3 Tipos de restrições: reserva legal simples e reserva legal qualificada

As disposições constitucionais garantem direitos fundamentais, porém com ressalvas, denominadas reservas legais (reserva de lei), que permite ao legislador comum restringir a área de proteção de um direito.

O constituinte defere ao legislador ordinário atribuições de significado instrumental, procedimental ou conformador/criador do direito ou, em outras situações, a atividade legislativa assume um caráter definidor do próprio direito fundamental (BRANCO; MENDES, 2011, p. 233).

Sobre os tipos de reserva legal, lecionam Dimoulis e Martins:

A reserva de lei pode ser de várias espécies. Está presente uma reserva legal simples (também denominada de plena, absoluta ou ordinária) quando a Constituição indica que o exercício do direito será feito ‘na forma da lei’ ou ‘nos termos da lei’ (exemplos art. 5.°, XV, XVIII, da CF). Tem-se uma reserva legal qualificada (também denominada de limitada ou relativa) quando a Constituição indica pelo menos um dos seguintes elementos: o tipo, a finalidade ou o meio de intervenção autorizados, dos quais o legislador poderá se valer quando de sua concretização da limitação constitucional do direito fundamental consubstanciado na reserva legal qualificada (exemplos: art. 5.°, XII, da CF). (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 146-147).

Branco e Mendes exemplificam sobre a reserva legal simples:

Assim, consagra-se no art. 5º, XXVI, que a impenhorabilidade da pequena propriedade, assim definida em lei. Assegura-se também no art. 5º, XXVII, que os direitos autorais serão transmitidos aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar. A proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, bem como o direito de fiscalização do aproveitamento econômico das obras (...) são assegurados nos termos da lei (CF, art. 5º, XXVIII). Também cabe à lei assegurar aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas e aos nomes das empresas (BRANCO; MENDES, 2011, p. 233).

E prosseguem, agora tratando sobre exemplos de reserva legal qualificada:

Dessarte, prevê-se, no art. 5º, XIII, da Constituição, ser ‘livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer’ [...]

Da mesma forma, consagra-se, no art. 5º, XII, ser ‘inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal’ (BRANCO; MENDES, 2011, p. 234-235).

3.3.4 Direitos fundamentais sem reservas legais

Um direito fundamental sem reserva legal expressa ainda poderá ser limitado pelo legislador quando houver uma colisão (direito constitucional de colisão), pois não existem direitos ilimitados. A intervenção, neste caso, pode ocorrer por levar em conta os direitos de terceiros ou outros princípios de hierarquia constitucional (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 155-156; BRANCO; MENDES, 2011, p. 238-239).

3.3.5 Restrições constitucionais excepcionais

A Constituição Federal estabelece um sistema de legalidade normal e um sistema de legalidade excepcional. No primeiro caso, os direitos fundamentais têm plena vigência. No segundo, considerando eventuais instabilidades políticas e sociais, os direitos fundamentais sofrem restrições. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 157-158).

Sobre o tema, assentam Branco e Mendes:

Assim, a Constituição prevê que, na vigência do estado de defesa, poderão ser estabelecidas restrições especiais aos diretos de reunião, de sigilo de correspondência e de comunicação telegráfica e telefônica (art. 136, § 1º, I, a-c). Mais amplas ainda são as restrições previstas durante o estado de sítio, que envolvem a liberdade de locomoção, o sigilo das comunicações, a liberdade de comunicação em geral (prestação de informação, imprensa, radiodifusão e televisão), o direito de reunião, a inviolabilidade do domicílio e o direito de propriedade (CF, art. 139). (BRANCO; MENDES, 2011, p 228).

3.3.6 Restrições constitucionais tácitas

A constituição permite, tacitamente, aos poderes legislativo e judiciário a imposição de restrição aos direitos fundamentais para solucionar casos de colisão entre os direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e valores constitucionalmente protegidos.

O poder legislativo pode elaborar leis que restrinjam determinado direito fundamental, enquanto que o judiciário, em casos de colisão, poderá restringir qualquer dos direitos fundamentais em conflito, por das técnicas de concordância prática ou ponderação de valores, visando a máxima preservação dos direitos conflitantes (LIMA; NASCIMENTO JÚNIOR, 2016, p. 9)

3.4 OS LIMITES DOS LIMITES

A intervenção na área de proteção de um direito fundamental não pode ser ilimitada, pois, caso o fosse, o significado prático dos direitos fundamentais desapareceria, vez que sua concretização ficaria à disposição do legislador ordinário, subvertendo o princípio da supremacia constitucional.

Nesta senda, advertem Dimoulis e Martins:

A doutrina exprime essa constatação afirmando que a limitação dos direitos fundamentais conhece suas próprias limitações. Isso significa que é proibido proibir o exercício do direito além do necessário. Essa é a teoria dos limites dos limites (schranken-schranken) elaborada no direito constitucional alemão. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 158).

Assim, o conteúdo (núcleo) essencial de um direito fundamental funciona como limite a restrição estatal.

3.4.1 A proteção do núcleo essencial

Existem ordenamentos constitucionais que afirmam a proteção de um núcleo essencial dos direitos fundamentais, conforme se depreende do art. 19, II da Lei Fundamental alemã e na Constituição portuguesa de 1976, no art. 18º, III. Tais cláusulas buscam contornar a problemática do amplo poder conferido ao legislador comum na esfera dos direitos fundamentais submetidos a uma reserva legal. Como já foi dito, a atividade legislativa poderia esvaziar o conteúdo dos direitos fundamentais com restrições descabidas, desmesuradas e desproporcionais, caso não houvesse um limite para a intervenção na área de proteção de um direito fundamental. O núcleo essencial é definido, portanto, como este limite. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 240-241).

3.4.1.1 teoria absoluta e teoria relativa sobre a proteção do núcleo essencial

A controvérsia sobre o núcleo essencial encontra expressão em duas correntes teóricas: a absoluta e a relativa.

Para a teoria absoluta, o núcleo essencial é uma unidade substancial autônoma, que não pode ser restringida pelo legislador.

Nas palavras de Branco e Mendes:

Em outras palavras, haveria um espaço que seria suscetível de limitação por parte do legislador; outro seria insuscetível de limitação. Neste caso, além da exigência de justificação, imprescindível em qualquer hipótese, ter-se-ia um ‘limite do limite’ para a própria ação legislativa, consistente na identificação de um espaço insuscetível de regulação. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 242).

Silva sintetiza o que as teorias absolutas querem dizer:

Todas as versões das teorias que defendem a existência de um conteúdo essencial absoluto têm em comum a ideia de que, se fosse possível representar graficamente o âmbito de proteção dos direitos fundamentais, deveria existir um núcleo, cujos limites externos formariam uma barreira intransponível, independentemente da situação e dos interesses que eventualmente possam haver em sua restrição. (SILVA, 2010, p. 187).

Sobre os problemas resultantes da adoção da teoria absoluta, ressaltam Branco e Mendes:

É verdade que a teoria absoluta, ao acolher uma noção material do núcleo essencial, insuscetível de redução por parte do legislador, pode converter-se, em muitos casos, numa fórmula vazia, dada a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de se demonstrar ou caracterizar in abstracto a existência desse mínimo essencial. É certo, outrossim, que a ideia de uma proteção ao núcleo essencial do direito fundamental, de difícil identificação, pode ensejar o sacrifício do objeto que se pretende proteger. Não é preciso dizer também que a ideia de núcleo essencial sugere a existência clara de elementos centrais ou essenciais e elementos acidentais, o que não deixa de preparar significativos embaraços teóricos e práticos. (BRANCO, MENDES; 2011, p. 242-243).

Por outro lado, a teoria relativa estabelece que o conteúdo essencial somente poderá ser definido num caso concreto, com o uso da técnica de ponderação, baseada no princípio da proporcionalidade. (BRANCO; MENDES; 2011, p. 242).

Sobre a teoria relativa, leciona Silva:

O ponto central de toda teoria relativa consiste na rejeição de um conteúdo essencial como um âmbito de contornos fixos e definíveis a priori para cada direito fundamental. Segundo os adeptos de um conteúdo essencial relativo, a definição do que é essencial e, portanto, a ser protegido, depende das condições fáticas e das colisões entre diversos direitos e interesses no caso concreto. Isso significa, sobretudo, que o conteúdo essencial de um direito não é sempre o mesmo e poderá variar de situação para situação, dependendo dos direitos envolvidos em cada caso. (SILVA, 2010, p. 196).

Conforme evidenciado, a teoria relativa está ligada à proporcionalidade, sendo a garantia do conteúdo essencial uma consequência da aplicação da regra da proporcionalidade. (SILVA, 2010, p. 197).

3.4.1.2 teoria subjetiva e teoria objetiva sobre a proteção do núcleo essencial

Outro ponto controvertido sobre a proteção do núcleo essencial trata de qual o sentido mais adequado para sua intepretação. Para a teoria subjetiva, o que se proíbe é a supressão de um direito subjetivo determinado, enquanto que para a teoria objetiva, o fim é resguardar a intangibilidade objetiva de uma garantia constitucional (BRANCO; MENDES, 2011, p. 243).

As teorias acima referidas, entretanto, não são excludentes, como afirmam Branco e Mendes:

Se se afirma o caráter pluridimensional dos direitos fundamentais e se reconhece que o direito fundamental tanto pode ser visto sob o aspecto objetivo como subjetivo, então tem-se de admitir que as variantes de interpretação do referido princípio não se haverão de fazer, necessariamente, num esquema de exclusão (ou- ou; entweder-oder), mas num raciocínio de ampliação (tanto-quanto; sowohl-als auch). (BRANCO; MENDES, 2011, p. 243).

3.5 COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

As colisões entre direitos fundamentais decorrem do caráter plural das constituições democráticas, que abarcam e promovem valores das mais variadas partes da sociedade. Dentro deste contexto, os direitos fundamentais podem apontar para direções diametralmente opostas, resultando em conflitos de direitos fundamentais.

Sobre este caráter relativo dos direitos fundamentais e as tensões decorrentes desta característica, ensina Marmelstein:

As normas constitucionais são potencialmente contraditórias, já que refletem uma diversidade ideológica típica de qualquer Estado Democrático de Direito. Não é de se estranhar, dessa forma, que elas frequentemente, no momento aplicativo, entrem em ‘rota de colisão’. (MARMELSTEIN, 2011, p. 401).

Ademais, os direitos fundamentais possuem caráter principiológico. Os princípios definem obrigações que devem ser cumpridas em diferentes níveis, não sendo absolutos, razão pela qual o grau de aplicabilidade de um direito fundamental depende do caso concreto, em que a norma de direito fundamental será otimizada e a vontade constitucional será efetivada. Ocorre que a otimização de determinada norma de direito fundamental pode conflitar com outra norma de direito fundamental.

Nas precisas palavras de Marlmestein:

O que ocorre é que, muitas vezes, o dever de respeitar, proteger e promover determinado direito pode resultar em eventual violação a aoutro direito. Assim, por exemplo, a obrigação que o Estado possui de adotar medidas para proteger o meio ambiente pode resultar em uma possível afronta ao dever de respeitar o direito de propriedade. O dever de promover a solidariedade é potencialmente capaz de invadir a zona de respeito à livre iniciativa. O dever de respeitar a liberdade de expressão pode gerar uma ameaça ao dever de proteger os direitos de personalidade e assim por diante. (MARMELSTEIN, 2011, p. 404).

3.5.1 Colisão autêntica entre direitos fundamentais e colisão entre direitos fundamentais e bens jurídico-constitucionais

As colisões entre direitos fundamentais ocorrem quando o exercício de um direito fundamental entra em conflito com outro direito fundamental ou com outros bens jurídico-constitucionais. A solução destes conflitos pode se dar por meio de uma interpretação sistemática da Constituição ou por intermédio do critério da proporcionalidade. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 161-162).

Importante destacar que existe “autêntica colisão apenas quando um direito individual afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito individual” (BRANCO; MENDES; 2011, p. 266).

Sobre a colisão autêntica, ensina Canotilho:

De um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular. Aqui não estamos perante um cruzamento ou acumulação de direitos (como na concorrência de direitos), mas perante um ‘choque’, um autêntico conflito de direitos. (CANOTILHO, 2003, p. 1270).

Para além da diferenciação em relação a concorrência de direitos fundamentais, a definição do que é uma colisão autêntica importa para identificação de conflitos aparentes, nos quais não há intervenção no âmbito de proteção de determinado direito fundamental.

Neste sentido, observam Branco e Mendes:

Assim, muitas questões tratadas como relações conflituosas de direitos individuais configuram conflitos aparentes, uma vez que as práticas controvertidas desbordam da proteção oferecida pelo direito fundamental em que se pretende buscar abrigo. A precisa identificação do âmbito de proteção do direito indica se determinada conduta se acha protegida ou não. (BRANCO; MENDES, 2011, p. 266).

Em nossa ordem constitucional, exemplifica-se eventual colisão entre direitos fundamentais quando contrapostas as normas previstas no art. 5º, IX, da Constituição Federal, que garante a liberdade artística, intelectual, científica ou de comunicação e a norma estampada no art. 5º, X, da Constituição, que versa sobre o direito à intimidade, à vida privada, à honra e à imagem das pessoas.

Noutro giro, como já destacado, além do conflito direito entre titulares dos direitos fundamentais, também pode ocorrer um conflito entre um direito fundamental e um bem jurídico-constitucional (interesse geral constitucionalmente tutelado).

Neste sentido, explicam Dimoulis e Martins:

Tais interesses gerais e/ou estatais podem ser lastreados na Constituição e também podem se desdobrar em direitos fundamentais que justifiquem o aludido cerceamento. A segurança pública é um conceito coletivo (Sammelbegriff) que incluiu direitos fundamentais (segurança, vida, propriedade etc.) de cada pessoa. A tributação se justifica porque permite o funcionamento dos aparelhos estatais que possibilitam o exercício dos direitos fundamentais e a redistribuição do produto nacional (implementando direitos sociais). Disso resulta que a limitação de um direito se justifica pela necessidade de preservar outros direitos, pelo menos de forma indireta. (DIMOULIS; MARTINS, 2011. p. 131).

Ainda sobre o tema, Canotilho expressa:

Podem existir conflitos entre direitos fundamentais e bens jurídicos da comunidade. Não se trata de qualquer ‘valor’, ‘interesse’, ‘exigência’, ‘imperativo’ da comunidade, mas sim de um bem jurídico. Exige-se, pois, um objecto (material ou imaterial) valioso (bem) considerado como digno de protecção, jurídica e constitucionalmente garantido. Nesta perspectiva, quando se fala em bens como ‘saúde pública’, ‘patrimônio cultural’, ‘defesa nacional’, ‘integridade territorial’, ‘família’, alude-se a bens jurídicos constitucionalmente ‘recebidos’ e não a quaisquer outros bens localizados numa pré-positiva ‘ordem de valores’. Os bens jurídicos de valor comunitário não são todos e quaisquer bens que o legislador declara como bens da comunidade, mas apenas aqueles a que foi constitucionalmente conferido o carácter de ‘bens da comunidade’. (CANOTILHO, 2003, p. 1271).

3.6 CONCORRÊNCIA DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O fenômeno da concorrência difere do da colisão, pois se trata de situação na qual a conduta de um titular de determinado direito fundamental pode ser considerada como pertencente ao âmbito de proteção de mais de um direito fundamental.

Nas palavras de Canotilho:

A concorrência de direitos fundamentais existe quando um comportamento do mesmo titular preenche os “pressupostos de facto” (“Tatbestände”) de vários direitos fundamentais. Por outras palavras, que colhemos em trabalho recente: existe concorrência de direitos fundamentais quando “a mesma pretensão subjectiva ou o mesmo comportamento individual, apresentando-se enquanto procedimentos de vida unitários, são simultaneamente subsumíveis em duas ou mais normas de direitos fundamentais, na medida em que, na sua totalidade ou em algum dos seus segmentos, preencham, indiferentemente, os pressupostos das respectivas previsões normativas”. (CANOTILHO, 2003, p. 1268).

Ainda segundo Canotilho, duas são as formas de concorrência entre direitos: a de cruzamento de direitos fundamentais e a de acumulação de direitos

Uma das formas de concorrência de direitos é, precisamente, aquela resulta do cruzamento de direitos fundamentais: o mesmo comportamento de um titular é incluído no âmbito de protecção de vários direitos, liberdades e garantias. O conteúdo destes direitos tem, em certa medida e em certos sectores limitados, uma “cobertura” normativa igual. (CANOTILHO, 2003, p. 1268).

E prossegue:

Outro modo de concorrência de direitos verifica-se com a acumulação de direitos: aqui não é um comportamento que pode ser subsumido no âmbito de vários direitos que se entrecruzam entre si; um determinado “bem jurídico” leva à acumulação, na mesma pessoa, de vários direitos fundamentais. (CANOTILHO, 2003, p. 1268-1269).       

Na concorrência entre direitos fundamentais, o problema se consubstancia em saber qual das normas de direitos fundamentais deverá incidir e qual a restrição decorrente.

Quando houver autêntica (ideal) concorrência entre direitos fundamentais, o exame da constitucionalidade de eventual restrição deve levar em conta a intervenção em face de todos os direitos fundamentais concorrentes. De outra ponta, caso a concorrência seja meramente aparente (não ideal), a questão será resolvida com a regra da prevalência da lei específica em face da geral. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 163).

Canotilho afirma que “Existe concorrência inautêntica ‘ou parcial’ quando uma das várias normas consagradoras de direitos fundamentais é uma norma especial em relação às outras”. (CANOTILHO, 2003, p. 1269).

Conforme evidenciado, havendo concorrência aparente entre direitos fundamentais, a solução será obtida considerando a especialidade da norma de direitos fundamentais, que pode ser lógica ou normativa.

Neste sentido, pontificam Dimoulis e Martins:

No caso da especialidade lógica, a norma específica contém todos os elementos típicos da norma genérica e pelo menos mais um. Um exemplo seria a relação de especifidade entre o direito fundamental à inviolabilidade do domicílio (art. 5º, XI, da CF), o direito à intimidade (art. 5º, X, da CF) e o direito geral de liberdade (art. 5º, caput, da CF). O primeiro reúne todos os elementos típicos dos seguintes com o elemento da privacidade “espacial”, i.e., aquela que se dá no âmbito do ambiente residencial. Por isso, o direito fundamental geral de liberdade (art. 5º, caput, da CF) somente será parâmetro quando os direitos mais específicos não forem aplicáveis ao caso. Ele oferece, portanto, uma proteção subsidiária.

A especialidade normativa está presente quando os elementos típicos das duas normas aparentemente concorrentes se interseccionam somente em parte, sendo que uma das duas normas tem uma proximidade material maior ao caso em pauta. (DIMOULIS; MARTINS, 2011, p. 163).

 

4 A NOVA INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

4.1 A INSUFICIÊNCIA DO POSITIVISMO JURÍDICO E A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS NO PÓS-POSITIVISMO

O positivismo considera que o único conhecimento válido seria objetivo e adviria da ciência, por meio de um método descritivo, apartado de opiniões, preferências e preconceitos pessoais, inclusive no que diz respeito às ciências sociais.

Nas palavras de Bobbio:

O positivismo jurídico nasce do esforço de transformar o estudo do direito numa verdadeira e adequada ciência que tivesse as mesmas características das ciências físico-matemáticas, naturais e sociais. Ora, a característica fundamental da ciência consiste em sua avaloratividade, isto é, na distinção entre juízos de fato e juízos de valor e na rigorosa exclusão destes últimos do campo científico: a ciência consiste somente em juízos de fato. O motivo dessa distinção e dessa exclusão reside na natureza diversa desses dois tipos de juízo: o juízo de fato representa uma tomada de conhecimento da realidade, visto que a formulação de tal juízo tem apenas a finalidade de informar, de comunicar a um outra a minha constatação; o juízo de valor representa, ao contrário, uma tomada de posição frente à realidade, visto que sua formulação possui a finalidade não de informar, mas de influir sobre o outro, isto é, de fazer com que o outro realize uma escolha igual à minha e, eventualmente, siga certas prescrições minhas. (BOBBIO, 1995, p. 135).

O positivo jurídico, num sentido amplo, afirma que “o direito é um conjunto de normas formuladas e postas em vigor por seres humanos” (DIMOULIS, 2017). Assim, a validade das normas jurídicas depende dos indivíduos que as criam para existirem e serem vinculantes, havendo clara conexão entre o poder político e o direito. Sendo uma teoria monista, o positivismo jurídico em sentido amplo não admite a existência de um direito natural ao lado do direito criado por legisladores humanos.

De outra ponta, o positivismo jurídico em sentido estrito é definido como uma contraposição ao moralismo jurídico:

Enquanto o moralismo jurídico adota a tese unionista (o direito não pode ser separado da moral), o positivismo no sentido estrito considera que há plena separação entre direito e moral, adotando uma visão separatista.

[...] O positivismo jurídico no sentido estrito considera, primeiro, que o estudo e a compreensão do direito não incluem sua avaliação moral e, segundo, que o reconhecimento da validade de um sistema jurídico (ou de uma norma) não depende da sua conformidade a critérios sobre o justo e o correto. Não interessa o valor e sim a validade do direito. Não interessa a substância; interessa a forma (DIMOULIS, 2017).

A visão positivista não é eloquente ao tratar de problemas de interpretação jurídica, sendo certo que seus estudiosos se concentram, prioritariamente, no debate sobre as condições de validade das normas e dos sistemas jurídicos. Tal postura decorre da preocupação dos positivistas em não serem acusados de subjetivismos ou moralismos, preferindo evitar opiniões sobre os deveres dos intérpretes (DIMOULIS, 2017).

A ênfase positivista em problemas formais afastou o direito da moral e dos valores como a justiça, conforme explica Barroso:

O positivismo jurídico foi a importação do positivismo filosófico para o mundo do Direito, na pretensão de criar-se uma ciência jurídica, com características análogas às ciências exatas e naturais. A busca de objetividade científica, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, apartou o Direito da moral e dos valores transcendentes. Direito é norma, ato emanado do Estado com caráter imperativo e força coativa. A ciência do Direito, como todas as demais, deve fundar-se em juízos de fato, que visam ao conhecimento da realidade, e não em juízos de valor, que representam uma tomada de posição diante da realidade. Não é no âmbito do Direito que se deve travar a discussão acerca de questões como legitimidade e justiça (BARROSO, 2009, p. 324-325).

Neste contexto, as principais características do positivismo jurídico são a aproximação quase plena entre Direito e norma; a estatalidade do Dirieto; a completude do ordenamento jurídico e o formalismo, que estabelece que a validade da norma decorre do procedimento adotado para sua criação, sendo independente de seu conteúdo material (BARROSO, 2009, p. 325).

Evidenciando que o positivismo jurídico não encontra espaço para tratar dos problemas relativos a justiça e aos valores no direito, estando mais preocupado com questões formais, escreveu Hans Kelsen, expoente da teoria:

Segundo o Direito dos Estados totalitários, o governo tem o poder para encerrar em campos de concentração, forçar a quaisquer trabalhos e até matar os indivíduos de opinião, religião ou raça indesejável. Podemos condenar com a maior veemência tais medidas, mas o que não podemos é considera-las como situando-se fora da ordem jurídica desses Estados (KELSEN, 2009, p. 44).

Kelsen buscava, com seu normativismo, purificar o direito para fazer dele ciência, sustentando que apenas o estudo da norma positivada interessava à ciência jurídica. Neste sentido, abre sua Teoria pura do direito:

A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo [...]

Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como é o Direito? Mas já não lhe importa a questão de saber como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito.

Quando a si própria designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Esse é o seu princípio metodológico fundamental (KELSEN, 2009, p.1)

Em outra passagem, discorrendo sobre direito, moral e o papel da ciência jurídica, afirma que:

A necessidade de distinguir o Direito da Moral e a ciência jurídica da Ética significa que, do ponto de vista de um conhecimento científico do Direito positivo, a legitimação deste por uma ordem moral distinta da ordem jurídica é irrelevante, pois a ciência jurídica não tem de aprovar ou desaprovar o seu objeto, mas apenas tem de o conhecer e descrever. Embora as normas jurídicas, como prescrições de dever-ser, constituam valores, a tarefa da ciência jurídica não é de forma alguma uma valoração ou apreciação do seu objeto, mas uma descrição do mesmo alheia a valores (wertfreie). O jurista científico não se identifica com qualquer valor, nem mesmo com o valor jurídico por ele descrito (KELSEN, 2009, p. 77)

E conclui que “Com efeito, a ciência jurídica não tem de legitimar o Direito, não tem por forma alguma de justificar – quer através de uma Moral absoluta, quer através de uma Moral relativa – a ordem normativa que lhe compete – tão-somente – conhecer e descrever” (KELSEN, 2009, p. 78).

Os críticos do positivismo asseveram que tal teoria sustentaria a aplicação mecânica da lei e a legitimação incondicional do direito e, portanto:

[...] constitui-se em uma teoria reducionista do direito, baseada em uma concepção excessivamente neutra ou inteiramente destituída de valores, que compreende o direito como mero objeto lógico de apreciação e, consequentemente, serviria como meio de justificar qualquer norma jurídica, independente de seu conteúdo. Assim, ao efetuar uma distinção entre direito e justiça, entre dever-ser e valor, o positivismo constituir-se-ia em um perfeito argumento político, cujo escopo poderia ser até mesmo provar a irresponsabilidade ética de qualquer governante, ainda que este impusesse, a seus súditos, os castigos mais cruéis e desumanos. Uma concepção meramente formal do direito – isto é, inteiramente destituída de elementos teóricos aptos a apreciar o conteúdo das normas jurídicas – argumenta-se, teria por consequência o reconhecimento, igualmente formal, de que mesmo o mais atroz dos castigos, poderia ser qualificado como “jurídico”, se sancionado de acordo com os procedimentos já legalmente previstos (ORRUTEA FILHO, 2014, p. 1-2)

Experiências históricas das mais bárbaras demonstraram a procedência destas críticas, evidenciando que os ideias de objetividade e neutralidade eram irrealizáveis e que o legalismo acrítico resultaria em autoritarismo disfarçado.

Nesta senda, afirma Barroso:

Sem embargo da resistência filosófica de outros movimentos influentes nas primeiras décadas do século XX, a decadência do positivismo é emblematicamente associada à derrota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movimentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico indiferente a valores éticos e da lei como uma estrutura meramente formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha aceitação no pensamento esclarecido (BARROSO, 2009, p. 326-327).

Por óbvio, o positivismo jurídico possui inegáveis méritos, mas, conforme demonstrado, é insuficiente, pois incapaz de levar em conta a realidade, a história, os valores atuais da sociedade e a dialética que move o direito (ORRUETA FILHO, 2014, p. 42-43).

Daí o surgimento do pós-positivismo, assim sintetizado por Barroso:

O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica constitucional, e a teoria dos direitos fundamentais, edificada sobre o fundamento da dignidade humana. A valorização dos princípios, sua incorporação, explícita ou implícita, pelos textos constitucionais e o reconhecimento pela ordem jurídica de sua normatividade fazem parte desse ambiente de aproximação entre Direito e Ética (BARROSO, 2009, p. 351-352).

O positivismo jurídico, que pregava a aproximação entre norma e direito e sua separação da ética, foi superado pelo constitucionalismo moderno, que promoveu uma volta aos valores e a reaproximação entre direito e ética, através da materialização de princípios previstos na Constituição, como a liberdade e igualdade; a separação dos poderes e o Estado democrático de direito; a dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça (BARROSO, 2009, p. 328).

Importa destacar, contudo, que não se trata de uma negação, pura e simplesmente, do positivismo, mas, sim, de sua superação, levando em conta suas relevantes contribuições, como bem pontua Borgo e Pinto:

Assim, na condição de movimento de reação ao modelo positivista, o pós-positivismo apresenta-se como alternativa viável de superação do formalismo daquela forma de conceber o Direito sem, contudo, negá-lo. Ao contrário, o pós-positivismo reconhece e otimiza as contribuições positivistas.

Entretanto, não despreza as suas raízes sociais, humanísticas e axiológicas, que foram a tônica do positivismo jurídico. Retira, pois, a frieza e o formalismo da lei deixada - não intencionalmente - pelos positivistas, como forma permitir a concretização do Direito como instrumento viabilizador de Justiça. (BORGO, M. C. N. P. e., 2009, p. 288).

Os princípios, então, passaram a ter um papel central na nova interpretação constitucional, contudo “tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata” (BARROSO, 2009, p. 352).

Assim, a “juridicidade dos princípios passa por três distintas fases: a jusnaturalista, a positivista e a pós-positivista” (BONAVIDES, 2011, p. 259).

Na fase jusnaturalista, os princípios possuíam normatividade nula, sendo vistos como princípios de justiça derivados da lei e de Deus. Já na segunda fase, a juspositivista, os princípios passam a integrar as legislações codificadas como fontes normativas subsidiárias, informando e sustentando o direito positivo, porém, na ordem constitucional, serviam apenas como pautas programáticas, sendo juridicamente irrelevantes (BONAVIDES, 2011, p. 258-264).

Emerson Garcia define o que seriam os princípios para o jusnaturalismo:

Em sua acepção clássica, de alicerce jusnaturalista, os princípios seriam proposições supremas, de natureza universal e necessária, próprios da razão humana e cuja observância seria independente do poder de coerção que a companha a produção legislativa. Para o direito natural, os princípios seriam extraídos da natureza humana, sendo informados por elementos da razão, da consciência e pela interação do homem com o ambiente (GARCIA, 2008, p. 177).

E prossegue, desta feita sobre a visão positivista dos princípios:

Para os positivistas, que encontram na Teoria Pura de Kelsen a sua pedra fundamental, os princípios, em essência, são proposições básicas, verdadeiros alicerces do sistema jurídico, sendo utilizados para limitar e direcionar a sua aplicação: seriam instrumentos de interpretação e de integração. Podem ser explícitos ou implícitos, conforme estejam expressamente previstos no direito positivo ou sejam dele extraídos com a utilização de um processo hermenêutico, permitindo sejam densificados e aplicados pelo intéprete (GARCIA, 2008, p. 177-178).

Finalmente, com o advento do pós-positivismo e constitucionalismo moderno, os princípios passam a ser tratados como direito, conforme elucida Paulo Bonavides:

A terceira fase, enfim, é a do pós-positivismo, que corresponde aos grandes momentos constituintes das últimas décadas do século XX. As novas Constituições promulgadas acentuam a hegemonia axiológica dos princípios, convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais (BONAVIDES, 2011, p. 264).

Com efeito, a existência e o reconhecimento dos princípios não são novidades, pois permeiam textos religiosos, filosóficos e jusnaturalistas há tempos. A novidade está no reconhecimento da normatividade de tais princípios a nível constitucional.

Assim, assinala Barroso que, atualmente:

Os princípios constitucionais, explícitos ou não, passam a ser a síntese dos valores abrigados no ordenamento jurídico. Eles espelham a ideologia da sociedade, seus postulados básicos, seus fins. Os princípios dão unidade e harmonia ao sistema, integrando suas diferentes partes e atenuando tensões normativas. De parte isso, servem de guia para o intérprete, cuja atuação deve pautar-se pela identificação do princípio maior que rege o tema apreciado, descendo do mais genérico ao mais específico, até chegar à formulação da regra concreta que vai reger a espécie. Estes os papéis desempenhados pelos princípios: a) condensar valores; b) dar unidade ao sistema; c) condicionar a atividade do intérprete. (BARROSO, 2009, p. 329).

4.2 DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS

Um sistema jurídico constitucional e democrático pode assumir duas concepções diferentes: fechada e aberta. Na fechada, um “modelo de regras” garante a segurança jurídica e situa discussões morais e políticas fora do direito. Na concepção aberta, por outro lado, temos uma forte penetração de valores no sistema e aos princípios confere-se normatividade (GARCIA, 2008, p. 177).

Como já evidenciado, a concepção do legalismo formal advinda do positivismo clássico é insuficiente para a resolução dos conflitos de normas atuais. Nesta quadra, os princípios assumem relevo, sendo expressões da norma, e não simples complementos de regras

Neste contexto, as normas constitucionais são classificadas entre regras e princípios. As duas, frise-se novamente, são espécies de normas, uma vez que determinam, permitem ou vedam algo.

A necessidade de diferenciar regras e princípios nos leva ao critério da generalidade ou abstração, segundo o qual os princípios seriam normas de teor mais aberto do que as regras. No mesmo passo, também o grau de determinabilidade serviria como parâmetro de distinção, uma vez que os princípios necessitam de intervenções legislativas, judiciais ou executivas para serem concretizados, enquanto que as regras podem ser aplicadas imediatamente (BRANCO; MENDES, 2011, p.83).

Noutro giro, a diferenciação poderia ocorrer levando em conta o grau de importância da norma para o ordenamento jurídico. Ademais, os princípios, diferentemente das regras, são multifuncionais e desempenham uma função argumentativa que informa outros princípios e regras (BRANCO; MENDES, 2011, p. 84).

A distinção entre as duas espécies normativas também pode ser analisada levando em conta a postura do operador do direito, como afirma Emerson Garcia:

ativa em relação aos princípios, exigindo uma intensa atividade na individualização do seu conteúdo, normalmente passiva quanto às regras, em que o modelo de subsunção é prevalecente ou a atividade valorativa, quando realizada, o é em menor intensidade (GARCIA, 2008, p. 180).

A doutrina pode ser dividida, basicamente, em duas concepções: a concepção fraca de princípios e a concepção forte de princípios, assim explicadas por Emerson Garcia:

A concepção fraca de princípios está vinculada a uma visão positivista do direito, não vislumbrando uma distinção substancial em relação às regras, mas, unicamente, uma maior generalidade, vagueza semântica e abstração, o que conduz os princípios à condição de normas fundamentais do sistema e lhes confere um grande valor hermenêutico, sem aptidão, contudo, para oferecer uma unidade de solução no caso concreto (GARCIA, 2008, p. 180).

E prossegue, sobre a concepção forte de princípios, calcada nas teorias de Dworkin e Alexy:

A concepção forte de princípios identifica distinções sob os aspectos lógico e qualitativo, o que individualiza os princípios como normas jurídicas que se diferenciam das regras em razão de sua composição estrutural e na forma de solução dos conflitos. A imperatividade da ordem jurídica não se esgotaria na previsão explícita de regras, estendendo-se aos valores consubstanciados nos princípios (GARCIA, 2008, p. 181).

4.2.1 Regras e princípios em Dworkin

A teoria de Dworkin critica o positivismo jurídico afirmando que o direito não é composto exclusivamente por regras, mas também é integrado por princípios. A crítica visa distinguir regras de princípios, sem, contudo, afirmar uma contraposição entre as duas espécies normativas (GARCIA, 2008, p. 181).

A finalidade do estudo de Dworkin foi fazer um ataque geral ao Positivismo (general attack on Positivism), sobretudo no que se refere ao modo aberto de argumentação permitido pela aplicação do que ele viria a definir como princípios (principles). Para ele as regras são aplicadas ao modo tudou ou nada (all-or-nothing), no sentido de que, se a hipótese de incidência de uma regra é preenchida, ou é a regra válida e a consequência normativa deve ser aceita, ou ela não é considerada válida. No caso de colisão de regras, uma delas deve ser considerada inválida. Os princípios, ao contrário, não determinam absolutamente a decisão, mas somente contêm fundamentos, os quais devem ser conjugados com outros fundamentos provenientes de outros princípios. Daí a afirmação de que os princípios, ao contrário das regras, possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), demonstrável na hipótese de colisão entre os princípios, caso em que o princípio com peso relativo maior se sobrepõe ao outro, sem que este perca sua validade (ÁVILA, 2005, p. 28).

Nas palavras do próprio Dworkin:

A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão (DWORKIN, 2002, p. 39).

Assim, a dimensão de peso dos princípios, segundo Dworkin, seria o principal traço distintivo entre princípios e regras, como leciona Paulo Bonavides:

A dimensão de peso, ou importância ou valor (obviamente, valor numa acepção particular ou especial) só os princípios a possuem, as regras não, sendo este, talvez, o mais seguro critério com que distinguir tais normas. A escolha ou hierarquia dos princípios é a de sua relevância (BONAVIDES, 2011, p. 282).

Nesta ordem de ideias, assevera Dworkin:

Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm - a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam (por exemplo, a política de proteção aos compradores de automóveis se opõe aos princípios de liberdade de contrato), aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia (DWORKIN, 2002, p. 42).

Para Dworkin, princípios e regras “distinguem-se quanto ao caráter de direção que estabelecem e à solução dos conflitos” (GARCIA, 2008, p. 182).

Na teoria de Dworkin, os princípios aproximam o direito dos valores sociais e suas consequências jurídicas não ocorrem com o simples preenchimento de determinadas condições, de forma automática.

Neste sentido, observa Emerson Garcia:

Os princípios não são necessariamente aplicáveis com a só presença dos pressupostos considerados suficientes à incidência do seu potencial normativo. Ainda que correlatos a determinado direito, esse mesmo direito pode desconsiderar a aplicação, privilegiando, em dada situação concreta, princípios que apontam para uma direção oposta (GARCIA, 2008, p. 182).

E prossegue, destacando que a situação das regras difere da dos princípios:

As regras, por sua vez, são aplicáveis à maneira do tudo ou nada (all or nothing fashion): presentes os pressupostos de fato por ela referidos, ou a regra é válida e a resposta que fornece deve ser aceita, ou não é, em nada contribuindo para a decisão (GARCIA, 2008, p. 182-183).

Diante do exposto, conclui-se que, para Dworkin, quando houver conflito entre regras, que não possuem dimensão de peso, “a solução deverá se pautar pelos critérios clássicos de solução de antinomias (hierárquico, da especialidade e cronológico). ” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 84).

Desta forma, afirma Dworkin:

Se duas regras entram em conflito, uma delas não pode ser válida. A decisão de saber qual delas é válida e qual deve ser abandonada ou reformulada, deve ser tomada recorrendo-se a considerações que estão além das próprias regras. Um sistema jurídico pode regular esses conflitos através de outras regras, que dão precedência à regra promulgada pela autoridade de grau superior, à regra promulgada mais recentemente, à regra mais específica ou outra coisa desse gênero. Um sistema jurídico também pode preferir a regra que é sustentada pelos princípios mais importantes (DWORKIN, 2002. p. 43).

De outra parte, na teoria de Dworkin, as colisões entre princípios serão solucionadas de outra forma, conforme ensina Emerson Garcia:

Os princípios possuem uma dimensão de peso (dimension of weight), referencial de análise que contribuirá para a solução de colisões, permitindo a identificação daquele que irá preponderar. Assim, verificando-se que vários princípios incidem sobre determinada situação concreta, deverá o responsável pela solução do conflito valorar o peso relativo de cada um deles, identificando os princípios cuja utilização, total ou parcial, será admitida ou afastada: os princípios se assemelham a “vetores”, expressando “forças” que exigem seja calculada uma “resultante”. O princípio preterido preserva a sua força normativa, mas deixa de incidir na situação concreta, o que permite afirmar que a solução da colisão atua como incidente da aplicação da norma (GARCIA, 2008, p. 183).

4.2.2 Regras e princípios em Alexy

A teoria de Alexy pontua que regras e princípios são normas, ambos servindo de fundamento para juízos concretos de dever. A diferença entre princípios e regras é, portanto, a diferença entre duas espécies de normas (BONAVIDES; 2011, p. 277).

Emerson Garcia explica tal diferenciação:

Enquanto as regras impõem determinado padrão de conduta, os princípios são normas jurídicas impositivas de uma otimização, ordenando que algo seja realizado na melhor medida possível, podendo ser cumpridos em diferentes graus, sendo este um elemento de diferenciação em relação à teoria de Dworkin. A medida do seu cumprimento, por sua vez, dependerá tanto das possibilidades reais como também das possibilidades jurídicas subjacentes ao caso. As regras, por sua vez, ostentariam um caráter disjuntivo, sendo aplicáveis ou não (GARCIA, 2008, p. 187).

Humberto Ávila também leciona sobre a teoria dos princípios de Alexy, dizendo que:

Para ele os princípios jurídicos consistem apenas em uma espécie de normas jurídicas por meio da qual são estabelecidos deveres de otimização aplicáveis em vários graus, segundo as possibilidades normativas e fáticas. Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional Alemão, Alexy demonstra a relação de tensão ocorrente no caso de colisão entre os princípios: nesse caso, a solução não se resolve com a determinação imediata da prevalência de um princípio sobre outro, mas é estabelecida em função da ponderação entre os princípios colidentes, em função da qual um deles, em determinadas circunstâncias concretas, receba a prevalência. Os princípios, portanto, possuem apenas uma dimensão de peso e não determinam as consequências normativas de forma direta, ao contrário das regras. É só a aplicação dos princípios diante dos casos concretos que os concretiza mediante regras de colisão. Por isso, a aplicação de um princípio deve ser vista sempre com uma cláusula de reserva, a ser assim definida: “Se no caso concreto um outro princípio não obtiver maior peso”. É dizer o mesmo: a ponderação dos princípios conflitantes mediante a criação de regras de prevalência, o que faz com que os princípios, desse modo, sejam também aplicados ao modo tudo ou nada (al-les-oder-Nichts). Essa espécie de tensão e o modo como ela é resolvida é o que distingue os princípios das regras: enquanto no conflito entre regras é preciso verificar se a regra está dentro ou fora de determinada ordem jurídica (problema do dentro ou fora), o conflito entre princípios já se situa no interior desta mesma ordem (teorema da colisão) (ÁVILA, 2005, p. 29).

Diante disso, conclui-se que, para Alexy, a diferença entre princípios e regras é qualitativa. Os princípios, como mandados de otimização, devem ser aplicados e satisfeitos no maior grau possível, enquanto que as normas determinam algo. “Desse modo, enquanto um princípio pode ser cumprido em maior ou menor escala, as regras somente podem ser cumpridas ou não” (BRANCO; MENDES, 2011, p.85-86).

Nas palavras de Alexy:

O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas.

Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é urna distinção qualitativa, e não urna distinção de grau. Toda norma é ou urna regra ou um princípio. (ALEXY, 2011, p. 90-91).

Os princípios, entendidos como mandados de otimização, variam seu grau de aplicação de acordo com as condições normativas (princípios e regras que se contrapõem) e fáticas (o conteúdo de um princípio só pode ser definido no caso concreto) (ÁVILA, 2005, p. 29).

Nesta quadra de ideias, fica clara a distinção entre conflitos de regras e conflitos de princípios, que ensejam diferentes métodos de resolução, ainda que se aceite que as colisões, em ambos os casos, tenham como semelhança o fato de que a aplicação de normas variadas ao caso específico gere consequências contraditórias entre si. É que a colisão de regras será resolvida no plano da validade, “tomando-se uma das regras como cláusula de exceção da outra ou declarando-se que uma delas não é válida” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 86).

“Um conflito entre regras somente pode ser solucionado se se introduz, em uma das regras, uma cláusula de exceção que elimine o conflito, ou se pelo menos uma das regras for declarada inválida” (ALEXY, 2011, p. 92).

Podemos exemplificar a resolução de um conflito entre regras pela inserção de uma cláusula de exceção com a seguinte situação: a proibição de deixar a sala de aula antes que o sinal toque e o dever de deixar a sala se soar o alarme de incêndio. Tais regras podem implicar em juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si (o sinal não toca, mas o alarme dispara). Nesse caso, para solucionar o conflito, insere-se uma cláusula de exceção na primeira regra (a exceção da proibição de sair da sala é excetuada pelo disparo do alarme de incêndio (ALEXY, 2011, p. 92).

Quando tal solução não for possível, uma das normas deve ser extirpada do mundo jurídico por ser inválida, pois a validade jurídica não é graduável.

Se uma regra é válida e aplicável a um caso concreto, isso significa que também sua consequência jurídica é válida. Não importa a forma como sejam fundamentados, não é possível que dois juízos concretos de dever-ser contraditórios entre si sejam válidos. Em um determinado caso, se se constata a aplicabilidade de duas regras com consequências jurídicas concretas contraditórias entre si, e essa contradição não pode ser eliminada por meio da introdução de uma cláusula de exceção, então, pelo menos uma das regras dever ser declarada inválida (ALEXY, 2011, p. 92).

De outra ponta, em relação aos princípios:

As colisões entre princípios devem ser solucionadas de forma completamente diversa. Se dois princípios colidem - o que ocorre, por exemplo, quando algo é proibido de acordo com um princípio e, de acordo com o outro, permitido -, um dos princípios terá que ceder (ALEXY, 2011, p. 93).

Já quando os princípios se contrapõe em um caso concreto, há que se apurar o peso (nisso consistindo a ponderação) que apresentam nesse mesmo caso, tendo presente que, se apreciados em abstrato, nenhum desses princípios em choque ostenta primazia definitiva sobre o outro, nada impede, assim, que, em caso diverso, com outras características, o princípio antes preterido venha a prevalecer (BRANCO; MENDES, 2011, p. 86).

A ponderação realizada no caso concreto não implica em declaração de nulidade do princípio preterido, nem a inserção de uma cláusula de exceção, pois, conforme ilustrado, situações distintas podem apresentar a questão da prevalência de um princípio de forma contrária, em face do caso específico a ser resolvido (BONAVIDES; 2011, p. 279-280).

Segundo Alexy:

Isso não significa, contudo, nem que o princípio cedente deva ser declarado inválido, nem que nele deverá ser introduzida uma cláusula de exceção. Na verdade, o que ocorre é que um dos princípios tem precedência em face do outro sob determinadas condições. Sob outras condições a questão da precedência pode ser resolvida de forma oposta. Isso é o que se quer dizer quando se afirma que, nos casos concretos os princípios têm pesos diferentes e que os princípios com o maior peso têm precedência. Conflitos entre regras ocorrem na dimensão da validade, enquanto as colisões entre princípios - visto que só princípios válidos podem colidir - ocorrem, para além dessa dimensão, na dimensão do peso (ALEXY, 2011, p. 93).

No mesmo sentido, leciona Emerson Garcia:

A colisão não será solucionada com a declaração de nulidade do princípio do princípio preterido ou com a utilização de uma cláusula de exceção, afastando sua incidência por critérios de especialidade. O que se verifica, em verdade, é a momentânea exclusão, no caso concreto, da incidência, total ou parcial, de um princípio, que permanecerá hígido para aplicação futura. Somente em situações excepcionais é que poderá falar na invalidade dos princípios (Ungültigkeit von Prinzipien), o que se dará em decorrência de sua total incompatibilidade com a ordem jurídica, não em virtude dos circunstancialismos do caso concreto (v.g.:é o que se daria, no direito alemão, com a invocação do princípio da discriminação racial, de todo incompatível com esse sistema) (GARCIA, 2008, p. 187).

De todo o exposto, extrai-se que os princípios possuem pesos diferentes, que só podem ser aferidos num caso concreto. Para cada caso de colisão entre princípios, um princípio apresenta determinado peso.

Decorre daí a lei da colisão teorizada por Alexy, para quem:

A solução para essa colisão consiste no estabelecimento de uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Levando-se em consideração o caso concreto, o estabelecimento de relações de precedências condicionadas consiste na fixação de condições sob as quais u m princípio tem precedência em face do outro. Sob outras condições, é possível que a questão da precedência seja resolvida de forma contrária (ALEXY, 2011, p. 96).

André Rufino do Vale esclarece e ilustra o que vem a ser a lei da colisão na teoria de Alexy:

Explicando de outra forma, isso quer dizer que a satisfação das condições de prioridade de um princípio leva consigo a aplicação da consequência jurídica por ele estabelecida. Assim, se dadas certas circunstâncias C, o princípio P1 prevalece sobre o princípio P2, e se o princípio P1 estabelece a consequência jurídica R, então vale a regra que contém C (circunstâncias do caso) como suporte fático e R como consequência jurídica estabelecida pelo princípio prevalecente. Simplificando, pode-se dizer que dado C, aplica-se R.

A lei da colisão representa um dos fundamentos da teoria dos princípios de Alexy. Ela reflete o caráter dos princípios como mandatos de otimização e demonstra que entre os princípios de um sistema jurídico não existem relações de precedência incondicionada ou relações absolutas ou abstratas de precedência, mas apenas relações de precedência condicionada. A tarefa de otimização, nesse sentido, consiste em estabelecer ditas relações de maneira correta (VALE, 2006, p. 85-86).

 

4.2.3 A estrutura das normas de direitos fundamentais: princípios ou regras?

Num modelo puro de princípios, as normas de direitos fundamentais são comumente reconhecidas como princípios, tendo em vista sua carga axiológica, sua posição hierárquica no sistema jurídico e de seu caráter conflituoso, que enseja a necessidade do método da ponderação para a solução do caso concreto. (VALE, 2006, p. 142).

“As objeções contra um tal modelo puro de princípios são óbvias. A principal delas sustenta que esse modelo não levaria a sério a Constituição escrita.” (ALEXY, 2011, p. 122).

Neste sentido, sustenta Canotilho:

O modelo ou sistema baseado exclusivamente em princípios (Alexy: Prinzipien-Modell des Rechtssystems) levar-nos-ia a consequências também inaceitáveis. A indeterminação, a inexistência de regras precisas, a coexistência de princípios conflitantes, a dependência do “possível” fáctico e jurídico, só poderiam conduzir a um sistema falho de segurança jurídica e tendencialmente incapaz de reduzir a complexidade do próprio sistema (CANOTILHO, 2003, p. 1162).

Este modelo substitui a vinculação ao texto constitucional pelo sopesamento, razão pela qual se diz que “Do ponto de vista da vinculação ao texto constitucional, da segurança jurídica e da previsibilidade, um modelo puro de regras é, sem dúvida, a alternativa mais atraente.” (ALEXY, 2011, p. 123).

O modelo puro de regras renega a necessidade de ponderação, afirmando que o sopesamento é inseguro. Contudo, também não está isento de críticas, como bem pontua André Rufino:

As objeções ao modelo de regras são óbvias, pois, apesar de sua vantagem em proporcionar maior previsibilidade quanto ao conteúdo normativo vinculante dos direitos fundamentais, ele se mostra incapaz de compreender certas funções que as normas de direitos fundamentais desempenham na sistematização do ordenamento e no raciocínio jurídico. Esse modelo insiste na aplicação técnica e silogística das normas de direitos fundamentais utilizando-se para tanto dos vetustos métodos da hermenêutica jurídica, desconhecendo que, na maioria dos casos, a ponderação é inevitável (VALE, 2006, p. 143).

No mesmo passo, declara Canotilho:

Um modelo ou sistema constituído exclusivamente por regras conduzir-nos-ia a um sistema jurídico de limitada racionalidade prática. Exigiria uma disciplina legislativa exaustiva e completa – legalislmo – do mundo e da vida, fixando, em termos definitivos, as premissas e os resultados das regras jurídicas. Conseguir-se-ia um “sistema de segurança”, mas não haveria qualquer espaço livre para complementação e desenvolvimento de um sistema, como o constitucional, que é necessariamente um sistema aberto. Por outro lado, um legalismo estrito de regras não permitiria a introdução dos conflitos, das concordâncias, do balanceamento de valores e interesses, de uma sociedade pluralista e aberta. Corresponderia a uma organização política monodimensional (Zagrebelsky). (CANOTILHO, 2003, p. 1162).

Diante da insuficiência dos modelos puros, Alexy sugere uma forma mista ou combinada, “que surge da ligação entre um nível de princípios e um nível de regras” (ALEXY, 2011, p. 135). André Rufino explica tal raciocínio da seguinte forma:

Esse modelo “combinado” compreende que as normas de direitos fundamentais muitas vezes contêm determinações em relação com os princípios que jogam em sentido contrário e que, por isso, afastam qualquer ponderação prévia; ao mesmo tempo, aceita que em outros casos essas determinações podem resultar incompletas, de forma que a ponderação é necessária. Assim, como bem pontua Alexy, o modelo regras/princípios leva a sério as determinações contidas nas normas de direitos fundamentais e, portanto, o texto da Constituição; ao mesmo tempo, considera a necessidade da ponderação. Nesse sentido, reconhece que as normas de direitos fundamentais podem ter a estrutura de regras ou de princípios. Uma mesma disposição de direito fundamental contém esses dois tipos de normas e, dessa forma, possui um caráter duplo (VALE, 2006, p. 144).

 

 

4.2.4 Princípios, regras e valores

As regras e princípios, sendo normas, operam no plano deontológico, do dever-ser; enquanto que os valores, que indicam aquilo que pode ser considerado melhor num determinado lugar e momento, estão situados no plano axiológico (GARCIA, 2008, p. 193).

Robert Alexy assim diferencia princípios e valores:

A diferença entre princípios e valores é reduzida, assim, a um ponto. Aquilo que, no modelo de valores, é prima facie o melhor é, no modelo de princípios, prima facie devido; e aquilo que é, no modelo de valores, definitivamente o melhor é, no modelo de princípios, definitivamente devido. Princípios e valores diferenciam-se, portanto, somente em virtude de seu caráter deontológico, no primeiro caso, e axiológico, no segundo (ALEXY, 2011, p. 153).

No mesmo passo, averba André Rufino:

O consenso a respeito dessa diferença básica entre princípios e valores, que de certa forma representa a clássica distinção entre o “correto” e o “bom”, baseia-se no fato de que formular uma norma é um ato distinto de formular um valor. Parece claro que não é a mesma coisa dizer que “não se deve discriminar” e dizer que “a discriminação não é boa”. Da mesma forma, não tem o mesmo sentido afirmar que “devemos tratar a todos de forma igual” e dizer que “tratar a todos de forma igual é bom”. Enfim, uma coisa é dizer que “algo é devido” e outra inteiramente distinta é afirmar que “algo é valioso” (VALE, 2006, p. 166).

Embora sejam ontologicamente diferentes, as normas e os princípios interagem constantemente. Valores, princípios e regras mantêm uma relação ascendente de concretização, conforme afirma Emerson Garcia:

Os princípios situam-se num plano intermédio entre os valores e as regras: excedem os primeiros por estarem suficientemente determinados, contendo uma indicação sobre suas consequências jurídicas, e são superados pelas segundas por apresentarem uma densidade normativa inferior, isto por não delinearem com a precisão exigida as situações de ordem fático-jurídica que possibilitarão a sua incidência ou as respectivas consequências jurídicas (GARCIA, 2008, p. 195).

4.3 PECULIARIDADES, MÉTODOS E PRINCÍPIOS DE INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL

A ascensão dos princípios exigiu uma reformulação da maneira como se interpreta o direito. O método da subsunção, embora ainda fundamental, tem limites. O esquema “premissa maior + premissa menor = consequência jurídica”, já não é suficiente (BARROSO, 2009, p. 358-359).

Tal reviravolta, contudo, só veio a ocorrer depois dos anos 50, momento em que se passou a falar da interpretação da Constituição, o que também vale para a hermenêutica dos direitos fundamentais, pois são temas correlatos, conforme leciona Paulo Bonavides:

Toda interpretação dos direitos fundamentais vincula-se, de necessário, a uma teoria dos direitos fundamentais; esta, por sua vez, a uma teoria da Constituição, e ambas – a teoria dos direitos fundamentais e a teoria da Constituição – a uma indeclinável concepção do Estado, da Constituição e da cidadania, consubstanciando uma ideologia, sem a qual aquelas doutrinas, sem seu sentido político, jurídico e social mais profundo, ficariam de todo ininteligíveis. De tal concepção brota a contextura teórica que  faz  a legitimidade da Constituição e dos direitos fundamentais, traduzida numa tábua de valores, os valores da ordem democrática do Estado de Direito onde jaz a eficácia das regras constitucionais e repousa a estabilidade de princípios do ordenamento jurídico, regido por uma teoria material da Constituição(BONAVIDES, 2011, p. 596).

A interpretação baseada na mera análise de textos legais e a equiparação da Constituição à lei – A Constituição é mais que lei, é direito -, como queria o positivismo legalista, operando com silogismo e dedutivismo, retirava a normatividade das normas constitucionais e, consequentemente, dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2011, p. 597).

Daqui se infere o seguinte: aquele dedutivismo formalista excluía da Ciência do Direito e da tarefa hermenêutica a consideração de princípios e valores, sem cuidar que estes formam o tecido material e o substrato estrutural já da Constituição, já dos direitos fundamentais. Afastados da interpretação, sem eles não há, em rigor, concretização, por não haver “pré-compreensão” (voverständnis), e, não havendo “pré-compreensão”, quase todo o Direito Público tende a ficar abalado em seus alicerces, fundamentos e legitimidade. Tudo isso à mingua de conteúdos reais, por obra de formalismo que, apartado do universo real, tolhe, na operação cognitiva, executada por um intérprete prisioneiro da racionalidade lógica, o alcance da presença e ação do elemento indutivo, este fator tão importante na captação dos sentidos normativos (BONAVIDES, 2011, p. 597).

A nova hermenêutica, superando estes problemas, reconhece que a interpretação constitucional e, por consequência, dos direitos fundamentais e da resolução dos problemas que envolvem os temas que lhe são afetos, exige que o intérprete utilize ferramentas que se adequem às peculiaridades do texto da Carta Magna, havendo de superar a interpretação clássica, insuficiente para tal tarefa.

4.3.1 Peculiaridades da interpretação constitucional e dos direitos fundamentais

A posição singular das normas constitucionais justifica a necessidade de outros métodos de interpretação, pois o texto constitucional inaugura uma nova ordem jurídica (BASTOS, 2002, p. 107).

Além disso, “Outro ponto que surge é o emprego de um linguajar sintético e também, como corolário, a adoção, em grande escala, de princípios, ao invés de regras propriamente ditas (BASTOS, 2002, p. 108).

Ainda neste passo, importante lembrar que, em sede de interpretação constitucional, também deve ser levada em conta um ente especial: a Corte Suprema, guardiã da Constituição, que legitima a existência de uma jurisdição constitucional (BASTOS, 2002, p. 108).

Assim, a individualidade da interpretação constitucional é patente e, no que que toca ao tema dos direitos fundamentais:

Por fim, pode-se falar, inclusive, de subteorias, dentro da “hermenêutica fundamental”, por exemplo, quando se trata da interpretação dos direitos fundamentais, que emprega regras, em determinadas ocasiões, distintas ou particularizadas em relação às demais regras utilizadas para interpretar o restante da Constituição (BASTOS, 2002, p. 109).

Em continuação, a interpretação constitucional se diferencia por ser a Constituição o fundamento de validade de toda a ordem jurídica, servindo como parâmetro para descobrir o sentido de normas ordinárias.

A supremacia constitucional é um claro indicativo de que o processo de concretização das normas constitucionais, incluindo a atividade interpretativa, apresenta funções e métodos próprios, conferindo-lhe algumas características de inegável singularidade (GARCIA, 2008, p. 61).

Ainda neste sentido, é certo que as normas constitucionais apresentam um caráter aberto que necessita de constante atualização, sendo que o conteúdo de tais normas não é precisamente delimitado.

Aqui a interpretação cumpre uma função muito além da de mero pressuposto de aplicação de um texto jurídico, para transformar-se em elemento de constante renovação da ordem jurídica, de forma a atender, dentro de certos limites oriundos da forma pela qual a norma está posta, às mudanças operadas na sociedade, mudanças tanto no sentido do desenvolvimento quanto no de existência de novas ideologias (BASTOS, 2002, p. 111).

Os termos empregados pela Constituição e a abundância de princípios no texto constitucional redundam em enunciados imprecisos, que necessitam de outro tipo de interpretação.

Ademais, três marcantes elementos hermenêuticos têm função acentuada no âmbito da interpretação constitucional: evolutividade, politicidade e extrema sensibilidade axiológica.

Sobre o tema, discorre Emerson Garcia:

A evolutividade sofre influência dos contornos acentuadamente abertos das disposições constitucionais, o que lhes assegura grande mobilidade e um grande poder de adaptação aos circunstancialismos presentes no momento de sua aplicação. A politicidade está associada ao fato de a ordem constitucional regular as principais “portas de entrada” da política na esfera do direito, que são a organização dos órgãos de soberania e o processo de elaboração normativa. Quanto ao fator axiológico, é possível afirmar que as Constituições modernas, sectárias do pluralismo político e que buscam harmonizar uma multiplicidade de padrões ideológicos, ao que se soma a estrutura demasiado aberta de suas disposições, são o campo propício à proliferação de valores, de indiscutível relevância na concretização do seu conteúdo (GARCIA,2008, p. 61-62).

Dentro deste contexto, a interpretação clássica não se mostra como sendo a mais adequada para a interpretação das normas constitucionais.

 Assim observa Paulo Bonavides:

Os métodos tradicionais, a saber, gramatical, lógico, sistemático e histórico, são de certo modo rebeldes a valores, neutros em sua aplicação, e por isso mesmo impotentes e inadequados para interpretar direitos fundamentais. Estes se impregnam de peculiaridades que lhes conferem um caráter específico, demandado técnicas ou meios interpretativos distintos, cuja construção e emprego gerou a Nova Hermenêutica (BONAVIDES, 2011, p. 607).

A singularidade das normas constitucionais exigiu o desenvolvimento de critérios específicos voltados à interpretação constitucional, dos quais podem ser citados: supremacia da constituição, unidade, concordância prática, presunção de constitucionalidade dos atos e normas infraconstitucionais, interpretação conforme a Constituição e o critério da proporcionalidade (GARCIA, 2008, p. 63-64).

4.3.2 Métodos de interpretação constitucional

As peculiaridades envolvidas na interpretação constitucional, cuja solução nem sempre se encontra imediatamente em alguma norma constitucional, motivam a proposta de métodos para tal tarefa.

De início, aparece o método hermenêutico clássico, segundo o qual a interação entre os fatores hermenêuticos resultará numa interpretação constitucional adstrita ao texto, privilegiando sua normatividade, vez que serve como ponto de partida e limite para o intérprete (CANOTILHO, 2003, p. 1211).

“O método clássico preconiza que a Constituição seja interpretada com os mesmos recursos interpretativos das demais leis, segundo as fórmulas desenvolvidas por Savigny: a interpretação sistemática, histórica, lógica e gramatical” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 104).

Outro método de interpretação é o tópico-problemático, que:

toma a Constituição como um conjunto aberto de regras e princípios, dos quais o aplicador deve escolher aquele que seja mais adequado para a promoção de uma solução justa ao caso concreto que analisa. O foco, para o método, é o problema, servindo as normas constitucionais de catálogo de múltiplos e variados princípios, onde se busca argumento para o debate adequado de uma questão prática (BRANCO; MENDES, 2011, p. 104).

O método hermenêutico-concretizador, por sua vez, considera que interpretar a Constituição é uma compreensão de sentido, na qual o intérprete concretiza a norma em uma situação concreta. Tal método difere do tópico-problemático na medida em que, ao contrário deste último, pressupõe a primazia da Constituição em face do problema concreto (CANOTILHO, 2003, p. 1212).

Sobre este método, discorrem Branco e Mendes:

A tarefa hermenêutica se faz a partir de um problema e com vistas a equacioná-lo, estando, porém, o aplicador vinculado ao texto constitucional. Para obter o sentido da norma, o intérprete parte da sua pré-compreensão do significado enunciado, atuando sob a influência das suas circunstâncias históricas concretas, mas sem perder de vista o problema prático que demanda sua atenção. O intérprete estabelece uma mediação entre o texto e a situação em que ele se aplica (BRANCO; MENDES, 2011, p. 105).

Já para o método científico-espiritual, a interpretação constitucional deve levar em conta valores subjacentes à Constituição. Aqui, busca-se compreender o sentido e a realidade de uma lei constitucional, que terá uma integração espiritual com os valores da comunidade (CANOTILHO, 2003, p. 1212-1213).

Neste sentido, Branco e Mendes:

Enxerga-se a Constituição como um sistema cultural e de valores de um povo, cabendo à intepretação aproximar-se desses valores subjacentes à Constituição. Esses valores, contudo, estão sujeitos a flutuações, tornando a interpretação da Constituição fundamentalmente elástica e flexível, fazendo com que a força de decisões fundamentais submeta-se às vicissitudes da realidade cambiante (BRANCO; MENDES, 2011, p. 104-105).

Por fim, há o método jurídico-estruturante, no qual texto e norma não se confundem e tem a estrutura composta, também, pela realidade social, que é relevante para a interpretação de seu significado (BRANCO; MENDES, 2011, p. 105).

Na síntese de Canotilho:

Os postulados básicos da metódica normativo-estruturante são os seguintes: (1) a metódica jurídica tem como tarefa investigar as várias funções de realização do direito constitucional (legislação, administração, jurisdição; (2) e para captar a transformação das normas e concretizar numa “decisão prática” (a metódica pretende-se ligada à resolução de problemas práticos; (3) a metódica deve preocupar-se com a estrutura da norma e do texto normativo, com o sentido de normatividade e de processo de concretização, com a conexão da concretização normativa e com as funções jurídico-práticas; (4) elemento decisivo para a compreensão da estrutura normativa é uma teoria hermenêutica da norma jurídica que arranca da não identidade entre norma e texto normativo; (5) o texto de um preceito jurídico positivo é apenas a parte descoberta do iceberg normativo (F. Muller), correspondendo em geral ao programa normativo (ordem ou comando jurídico na doutrina tradicional); (6) mas a norma não compreende apenas o texto, antes abrange um “domínio normativo”, isto é, um “pedaço de realidade social” que o programa normativo só parcialmente contempla; (7) consequentemente, a concretização normativa deve considerar e trabalhar com dois tipos de elementos de concretização: um formado pelos elementos resultantes da interpretação do texto da norma (=elemento literal da doutrina clássica); outro, o elemento de concretização resultante da investigação do referente normativo (domínio ou região normativa) (CANOTILHO, 2003, p. 1213).

4.3.3 Princípios de interpretação constitucional

Ainda dentro do contexto da interpretação constitucional, assinala Barroso que:

[...] as normas constitucionais apresentam determinadas especifidades que as singularizam, dentre as quais é possível destacar: a) a superioridade jurídica, b) a natureza da linguagem, c) o conteúdo específico, d) o caráter político. Em razão disso, desenvolveram-se ou sistematizaram-se categorias doutrinárias próprias, identificadas como princípios específicos ou princípios instrumentais de interpretação constitucional (BARROSO, 2009, p. 371).

Tais princípios são importantes para a interpretação dos direitos fundamentais, pois “Entre a interpretação da Constituição e a interpretação  dos  direitos fundamentais  há apertados vínculos, servindo os princípios que regem aquela ao esclarecimento do significado das normas pertinentes a esses direitos” (BONAVIDES, 2011, p. 609).

Assim, importante analisar, ainda que sucintamente, os principais princípios de interpretação constitucional.

4.3.3.1 princípio da supremacia da Constituição

“Do ponto de vista jurídico, o principal traço distintivo da Constituição é sua supremacia, sua posição hierárquica superior às das demais normas do sistema” (BARROSO, 2009, p. 372).

As leis, atos normativos e ator jurídicos devem estar em consonância com a Constituição ou serão inválidos. Neste sentido, asseverando que a Constituição é o parâmetro de interpretação do sistema jurídico, adverte Bastos:

O postulado de supremacia da Constituição repele todo o tipo de interpretação que venha de baixo, é dizer, repele toda a tentativa de interpretar a Constituição a partir da lei. O que cumpre sempre ser feito é sempre o contrário, vale dizer, procede-se à interpretação do ordenamento jurídico a partir da Constituição (BASTOS, 2002, p. 172).

A Constituição define o modo de criação das normas e seus limites materiais, sendo sua supremacia garantida pelos mecanismos de controle de constitucionalidade e é do princípio da supremacia da Constituição que decorre a possibilidade de se afastar uma lei inconstitucional (BARROSO, 2009, p. 372).

Estando os direitos fundamentais previstos na Constituição, a decorrência lógica é atribuir a tais direitos o grau de supremacia na ordem jurídica, sem, contudo, lhes atribuir caráter absoluto.

4.3.3.2 princípio da unidade da Constituição

Segundo este princípio, a Constituição é um todo unitário e suas normas não devem ser consideradas fora do sistema em que se integram, de modo a evitar contradições entre elas (BRANCO; MENDES, 2011, p. 106-107).

“Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham” (BARROSO, 2009, p. 374).

Dessa forma, “[...] o princípio da unidade obriga o intérprete a considerar a constituição na sua globalidade e a procurar harmonizar os espaços de tensão entre as normas constitucionais a concretizar [...]” (CANOTILHO, 2003, p. 1223).

Sobre a unidade constitucional, precisa é a lição de Emerson Garcia, para quem:

As disposições constitucionais não podem ser concebidas como partículas isoladas e indiferentes ao seu entorno: por possuírem idêntica natureza e ocuparem o mesmo plano hierárquico (sob a ótica jurídica, não axiológica), devem manter uma relação de harmonia e pacífica coexistência. A unidade constitucional explora as potencialidades da interpretação sistemática, permitindo sejam contornadas as múltiplas tensões dialéticas que se verificam na Constituição, fruto do seu caráter fundante e da estrutura essencialmente aberta de suas disposições (GARCIA, 2008, p. 76).

Da unidade decorre a necessidade da técnica da ponderação, advinda do princípio da proporcionalidade, que é tema estritamente relacionado a direitos fundamentais.

4.3.3.3 princípio da máxima efetividade

A efetividade exige a maior aproximação possível entre o dever ser normativo e o ser da realidade social. É a atuação prática da norma no mundo dos fatos. Segundo o princípio da efetividade, a interpretação constitucional dever ser voltada, precipuamente, a realização da vontade constitucional (BARROSO, 2009, p. 375).

Discorrendo sobre o princípio da máxima efetividade e da sua relação com os direitos fundamentais, anota Canotilho que:

[...] a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvids deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais) (CANOTILHO, 2003, p. 1224).

4.3.3.4 princípio da concordância prática

O princípio da concordância prática possui estreita ligação com o da unidade constitucional. Tal princípio “impõe a coordenação e combinação dos bens jurídicos em conflito de forma a evitar o sacrifício (total) de uns em relação aos outros” (CANOTILHO, 2003, p. 1225).

“O princípio da concordância prática tem apelo, nos casos de conflito entre normas constitucionais, quando os programas normativos de duas normas de igual valor se entrechocam” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 109).

Trata-se de princípio que, considerando que as normas constitucionais estão no mesmo nível hierárquico, busca balizar a incidência destas quando, simultaneamente, suas forças normativas são projetadas num mesmo determinado caso específico. A interpretação, neste sentido, deve buscar a harmonização e o equilíbrio entre as normas, vez que nenhuma delas poderá ser descartada do sistema por incompatibilidade (GARCIA, 2008, p. 79).

É necessário, assim, que sejam encontrados mecanismos que permitam a simultânea aplicação de ambas, ainda que com parcial restrição do seu âmbito de incidência, amoldando o seu potencial normativo às circunstâncias do caso concreto, ou, em casos extremos, a não aplicação de uma delas (GARCIA, 2008, p. 79-80)

No mesmo passo, asseveram Branco e Mendes:

O critério recomenda que o alcance das normas seja comprimido até que se encontre o ponto de ajuste de cada qual segundo a importância que possuem no caso concreto. Se é esperado do intérprete que extraia o máximo efeito de uma norma constitucional, esse exercício pode vir a provocar choque com idêntica pretensão de outras normas constitucionais. Devem, então, ser conciliadas as pretensões de efetividade dessas normas, mediante o estabelecimento de limites ajustados aos casos concretos em que são chamados a incidir (BRANCO; MENDES, 2011, p. 109).

Por ser oportuno, relevante transcrever o ensinamento de Canotilho acerca do princípio em tela e os direitos fundamentais:

O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens (CANOTILHO, 2003, p. 1225).

4.3.3.5 princípio da força normativa da constituição

O princípio da força normativa da constituição é assim formulado por Canotilho:

Segundo o princípio da força normativa da constituição na solução de problemas jurídico-constitucionais deve dar-se prevalência aos pontos de vista que, tendo em conta os pressupostos da constituição (normativa), contribuem para uma eficácia óptima de lei fundamental. Consequentemente, deve dar-se primazia às soluções hermenêuticas que, compreendendo a historicidade das estruturas constitucionais, possibilitam a “actualização” normativa, garantindo, do mesmo pé, a sua eficácia e permanência (CANOTILHO, 2003, p. 1226).

4.3.3.6 princípio da interpretação conforme a constituição

A interpretação conforme a constituição é tanto um princípio interpretativo quanto uma técnica de controle de constitucionalidade. No primeiro caso, o intérprete deve, havendo mais de uma interpretação possível, escolher a que melhor se compatibilizar com o texto constitucional. Na segunda vertente, a interpretação conforme a constituição serve para excluir uma determinada interpretação da norma (BARROSO, 2009, p. 373).

Assim, “[...] no caso de normas polissémicas ou plurissignificativas deve dar-se preferência à interpretação que lhe dê um sentido em conformidade com a constituição [...]” (CANOTILHO, 2003, p. 1226).

Nesta ordem de ideias, leciona Emerson Garcia:

Corolário natural da supremacia das normas constitucionais, a “interpretação conforme a Constituição” indica que todo e qualquer preceito jurídico deve ser interpretado de modo a identificar o sentido compatível com a Constituição, excluindo, em consequência, aquele que não o seja. O Tribunal, ao separar a interpretação conforme a Constituição daquela que considera inconstitucional, preserva a disposição, mas limita ou estende o alcance da norma, neutralizando as violações constitucionais. O texto impugnado “não é inconstitucional só enquanto” ou “na medida em que” atribua à disposição o significado indicado pelo Tribunal (GARCIA, 2008, p. 82).

A interpretação conforme a constituição, contudo, “Não pode forçar o significado aceitável das palavras no texto nem pode desnaturar o sentido objetivo que inequivocamente o legislador perseguiu” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 111).

Para a exata compreensão do princípio da interpretação conforme a Constituição, válidas as palavras de Canotilho, para quem:

[...] (i) a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe uma espaço de decisão (= espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela; (ii) no caso de se chegar a um resultado interpretativo de uma norma jurídica em inequívoca contradição com a lei constitucional, impõe-se a rejeição, por inconstitucionalidade, dessa norma (= competência de rejeição ou não aplicação de normas inconstitucionais pelos juízes), proibindo-se a sua correcção pelos tribunais (=proibição de correcção de norma jurídica em contradição inequívoca com a constituição); (iii) a interpretação das leis em conformidade com a constituição deve afastar-se quando, em lugar do resultado querido pelo legislador, se obtém uma regulação nova e distinta, em contradição com o sentido literal ou sentido objectivo claramente recognoscível da lei ou em manifesta dissintonia com os objectivos pretendidos pelo legislador (CANOTILHO, 2003, p. 1227).

Por fim, a interpretação conforme a constituição, de maneira substancial, pode ser entendida como interpretação conforme os direitos fundamentais, pois tais direitos constituem o principal setor das constituições e tem caráter principiológico, além de inegável carga axiológica (PARDO, 1998, p. 173-183).

5. O PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE E AS INTERVENÇÕES E COLISÕES ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS

De início, é preciso compreender que o princípio da proporcionalidade guarda intensa relação com a nova interpretação constitucional, que supera o princípio da legalidade e chega ao da constitucionalidade, fazendo com que o Texto Magno, garantidor da liberdade e promotor da dignidade da pessoa humana, seja visto como primordial dentro da ordem jurídica. Neste sentido, assevera Paulo Bonavides:

Chegamos, por conseguinte, ao advento de um novo Estado de Direito, à plenitude da constitucionalidade material. Sem o princípio da proporcionalidade, aquela constitucionalidade ficaria privada do instrumento mais poderoso de garantia dos direitos fundamentais contra possíveis eventuais excessos perpetrados com o preenchimento do espaço aberto pela Constituição ao legislador para atuar formulativamente no domínio das reservas de lei (BONAVIDES, 2011, p. 425).

Em acepção lata, “o princípio da proporcionalidade é a regra fundamental a que devem obedecer tanto os que exercem quanto os que padecem o poder” (BONAVIDES, 2011, p. 393).

Numa visão mais estreita, “o princípio se caracteriza pelo fato de presumir a existência de relação adequada entre um ou vários fins determinados e os meios com que são levados a cabo” (BONAVIDES, 2011, p. 393).

“O princípio da proporcionalidade exerce função primordial na teoria constitucional contemporânea. É de aplicação necessária nas hipóteses de colisão e restrição de direitos fundamentais” (CLÈVE; FREIRE, 2002, p. 36).

Tal princípio surgiu como ferramenta de limitação do poder executivo em face de liberdades individuais, sendo considerado um princípio geral do direito. Também conhecido como princípio da proibição de excesso, foi tomado, ao depois, como princípio constitucional (CANOTILHO, 2003, p. 266-267).

Do mesmo modo, antes de integrar o domínio do direito constitucional, sua importância foi notada no âmbito do Direito Penal, onde ficou estabelecido que as penas deveriam ser proporcionais à gravidade dos crimes. Ainda no campo administrativo, visando estabelecer limites as restrições na liberdade dos administrados “o critério da proporcionalidade impõe a obrigação de que o Poder Público utilize os meios adequados e interdita o uso de meios desproporcionais” (GARCIA, 2008, p. 348).

Neste sentido, Paulo Bonavides explica a relação entre o princípio da proporcionalidade e os direitos fundamentais no âmbito constitucional:

A vinculação do princípio da proporcionalidade ao Direito Constitucional ocorre por via dos direitos fundamentais. É aí que ele ganha extrema importância e aufere um prestígio e difusão tão larga quanto outros princípios cardeais e afins, nomeadamente o princípio da igualdade (BONAVIDES, 2011, p. 395).

Transportado ao âmbito constitucional, divergem os autores sobre seu fundamento. Apontam que pode ser derivado do princípio do Estado de direito ou de sua íntima conexão com os direitos fundamentais (CANOTILHO, 203, p. 266), ou, ainda “cuidar-se-ia de um postulado jurídico com raiz no direito suprapositivo” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 248).

Além disso, o princípio da proporcionalidade pode ser concebido como fundamento do novo Estado de Direito, nascido após a segunda guerra mundial, que superou a ideia de Estado de Direito calcada somente na legalidade e “que deslocou para o respeito dos direitos fundamentais o centro de gravidade da ordem jurídica” (BONAVIDES, 2011, p. 398).

De toda forma, o critério da proporcionalidade visa a apuração de eventual excesso do poder legislativo.

“Cuida-se de aferir a compatibilidade da lei com os fins constitucionalmente previstos ou de constatar a observância do princípio da proporcionalidade (Verhältnismässigkeitsprinzip), isto é, de se proceder à censura sobre a adequação (Geeingnetheit) e a necessidade (Erforderlichkeit) do ato legislativo (BRANCO; MENDES, 2011, p. 246).

Considerando o exposto, verifica-se que o princípio da proporcionalidade surge da necessidade de limitação da atividade legislativa, do espaço de conformação dos órgãos encarregados de criar as leis. A reserva de lei passa a ser reserva de lei proporcional, coibindo-se os excessos do legislador (GARCIA, 2008, p. 349).

Assim é que “a aferição da constitucionalidade da lei em face do princípio da proporcionalidade ou da proibição de excesso contempla os próprios limites do poder de conformação outorgado ao legislador” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 255).

No mesmo passo, a conversão do princípio da reserva legal no princípio da reserva legal qualificada “pressupõe não só a legitimidade dos meios utilizados e dos fins perseguidos pelo legislador, mas também a adequação desses meios para a consecução dos objetivos pretendidos (Geeignetheit) e a necessidade de sua utilização (Notwendgkeit oder Erforderlichkeit)” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 256-257).

Conforme já apontado, a ideia de princípio da proporcionalidade é conexa à instituição dos direitos fundamentais, sendo instrumento que limita a intervenção estatal na seara destes direitos, conforme leciona Emerson Garcia:

O critério da proporcionalidade pode ser visto como um verdadeiro elemento de contenção da intervenção estatal, o que bem demonstra que o seu desenvolvimento e utilização estão umbilicalmente ligados à temática dos direitos fundamentais. O reconhecimento desses direitos promoveu nítida reengenharia no Estado de Direito, resultando da necessidade de (1) compatibilizá-los, já que sua conflitualidade não precisa ser realçada, e (2) acomodá-los com interesses inerentes à coletividade. Com isso, a restrição de direitos e a imposição de obrigações não deveriam transpor os limites do necessário, não sendo dado ao legislador avançar de forma desmedida em sua atividade regulatória (GARCIA, 2008, p. 350).

Na mesma senda, adverte Paulo Bonavides:

Ora, o princípio da proporcionalidade – e esta é talvez a primeira de suar virtudes enquanto princípio que limita os cerceamentos aos direitos fundamentais – transforma, enfim, o legislador num funcionário da Constituição, e estreita assim o espaço de intervenção ao órgão especificamente incumbido de fazer as leis (BONAVIDES, 2011, p. 424).

O princípio da proporcionalidade, portanto, funciona como barreira ao arbítrio. Não carece de explicitação no texto da constituição, pois é da própria essência do Estado de Direito. Serve para proteger a liberdade e é um princípio geral constitucional e é até mesmo considerado como princípio geral de direito (BONAVIDES, 2011, p. 400-401).

Tal princípio permite que o constitucionalismo entre na realidade social, em contraposição a ideia de que a eficácia e normatividade da constituição decorra de um formalismo exacerbado (BONAVIDES, 2011, p. 424).

5.1 ELEMENTOS (OU SUBPRINCÍPIOS) DO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE

“[...] pode-se dizer que determinado ato normativo estará em harmonia com o critério de proporcionalidade em sendo observados os seus três elementos constitutivos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito” (GARCIA, 2008, p. 351).

Na mesma ordem de ideias, o princípio da proporcionalidade:

Se aplica apenas em situações em que há uma relação de causalidade entre dois elementos empiricamente discerníveis, um meio e um fim, de tal sorte que se possa proceder aos três exames fundamentais: o da adequação (o meio promove o fim?), o da necessidade (dentre os meios disponíveis e igualmente adequados para promover o fim, não há outro meio menos restritivo do(s) direito(s) fundamentais afetados?) e o da proporcionalidade em sentido estrito (as vantagens trazidas pela promoção do fim correspondem às desvantagens provocadas pela adoção dos meios?) (ÁVILA, 2005, p. 112-113).

Cumpre, portanto, analisar cada um destes elementos separadamente.

5.1.1 Adequação

O elemento da adequação exige que a intervenção seja apta a atingir os objetivos pretendidos (BRANCO; MENDES, 2011, p. 257).

Portanto, “Aplicar a regra da proporcionalidade, nesses casos, significa iniciar com uma primeira indagação: A medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo perseguido?” (SILVA, 2010, p. 170).

A relação de adequação entre o fim visado e o meio utilizado é necessária, sendo vedado o arbítrio. Contudo, este não é “o momento oportuno para a valoração da eficácia do meio escolhido ou o grau de restrição aos direitos do cidadão, o que será objeto de aferição específica sob a ótica da necessidade” (GARCIA, 2008, p. 351).

Explicando o subprincípio da adequação, elucida Canotilho:

O princípio da conformidade ou adequação impõe que a medida adoptada para a realização do interesse público deve ser apropriada à prossecução do fim ou fins a ele subjacentes. Consequentemente, a exigência de conformidade pressupõe a investigação e a prova de que o acto do poder público é apto para e conforme os fins justificativos da sua adopção (Zielkonformität, Zwecktauglichkeit) (CANOTILHO, 2003, p. 269-270).

Contudo, “O que significa um meio ser adequado à realização de um fim? Como deve ser analisada a relação de adequação? Qual deve ser a intensidade de controle das decisões adotadas pelo Poder Público?” (ÁVILA, 2005, p. 116).

Para saber o que significa um meio adequado à realização de um fim, é preciso analisar aspectos – quantitativo (intensidade), qualitativo (qualidade) e probabilístico (certeza) - das relações existentes entre os vários meios disponíveis e os fins almejados.

Em termos quantitativos um meio pode promover menos, igualmente ou mais o fim do que outro meio. Em termos qualitativos, um meio pode promover pior, igualmente ou melhor o fim do que outro meio. E, em termos probabilísticos, um meio pode promover com menos, igual ou mais certeza o fim do que outro meio (ÁVILA, 2005, p. 117).

A Administração e o legislador, contudo, não necessitam escolher o meio mais intenso, melhor e mais seguro para atingir o fim. Razões como a impossibilidade de se saber qual o meio que preenche tais requisitos e a separação dos poderes fazem inferir que o meio a ser escolhido somente precisa promover minimamente o fim (ÁVILA, 2005, p. 117-118).

Para responder como deve ser analisada a relação de adequação, é necessária a análise de três dimensões: abstração/concretude, generalidade/particularidade, antecedência/posteridade. Na primeira dimensão, a medida adotada será abstratamente adequada se o fim for possivelmente realizável e será concretamente adequada caso sua adoção promova, efetivamente, o fim no caso concreto; Já na segunda dimensão, a medida será adequada se o fim for realizado na maioria dos casos com sua adoção e será particularmente adequada se todos os casos individuais tiverem o fim realizado; Por fim, na terceira dimensão, será considerada adequada a medida se, quando de sua adoção, houver boa avaliação e projeção para a consecução do fim e será também adequada se, no momento da decisão, depois da adoção da medida, o julgador verificar que a medida promove o fim (ÁVILA, 2005, p. 118-119).

Por fim, é preciso analisar os níveis de controle (fraco e forte) para responder qual deve ser a intensidade de controle decisões adotadas pela Administração.

Num modelo forte de controle qualquer demonstração de que o meio não promove a realização do fim é suficiente para declarar a invalidade da atuação administrativa. Num modelo fraco apenas uma demonstração objetiva, evidente e fundamentada pode conduzir à declaração de invalidade da atuação administrativa concernente à escolha de um meio para atingir um fim (ÁVILA, 2005, p. 120).

O modelo fraco é o mais plausível, considerando a separação dos poderes. Com efeito, somente a demonstração cabal e manifesta da inadequação entre meio e fim pode redundar na invalidade da medida (ÁVILA, 2005, p. 121).

5.1.2 Necessidade

O elemento da necessidade “significa que nenhum meio menos gravoso para o indivíduo revelar-se-ia igualmente eficaz na consecução dos objetivos pretendidos” (BRANCO; MENDES, 2011, p. 257).

Neste sentido, pontua Emerson Garcia:

A norma será necessária quando não exceder os limites indispensáveis à consecução do objetivo almejado, devendo-se preferir o meio menos lesivo aos direitos fundamentais. Em havendo possibilidade de escolha outro meio, com idêntica eficácia, passível de impor menores limitações ao direito do cidadão, a norma não será necessária e, consequentemente, será desproporcional (GARCIA, 2008, p. 351).

Na mesma quadra, esclarece Canotilho:

O princípio da exigibilidade, também conhecido como “princípio da necessidade” ou “da menor ingerência possível”, coloca a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível. Assim, exigir-se-ia sempre a prova de que, para a obtenção de determinados fins, não era possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão (CANOTILHO, 2003, p. 270).

O exame da necessidade implica, portanto, num teste comparativo entre atos estatais alternativos que visam alcançar determinado fim, sendo que considerado necessário aquele que importe em menor restrição a um determinado direito fundamental (SILVA, 2010, p. 171).

Além disso, o exame da necessidade pressupõe o exame da igualdade de adequação dos meios e o exame do meio menos restritivo. São necessários para saber se os meios alternativos promovem igualmente o fim e qual deles é o menos restritivo em relação aos direitos fundamentais (ÁVILA, 2005, p. 122).

O exame da igualdade de adequação dos meios é problemático, pois:

Uns promovem o fim mais rapidamente, outros mais vagarosamente; uns com menos dispêndios, outros com mais gastos; uns são mais certos, outros mais incertos; uns são mais simples, outros mais complexos; uns são mais fáceis, outros mais difíceis, e, assim, sucessivamente. Além disso, a distinção entre os meios será em alguns casos evidente; em outros, obscura. Por último, mas não por fim: alguns meios promovem mais o fim em exame, e também os outros com eles relacionados, enquanto outros meios promoverão em menor intensidade o fim em exame, mas com mais intensidade outros cuja promoção também é determinada pelo ordenamento jurídico (ÁVILA, 2005, p. 122).

Também há dificuldade, da mesma forma, no exame do meio menos restritivo, pois “Como escolher entre um meio que restringe pouco um direito fundamental, mas, em contrapartida, promove pouco o fim, e um meio que promove bastante o fim, mas, em compensação, causa muita restrição a um direito fundamental? (ÁVILA, 2005, p. 124).

5.1.3 Proporcionalidade em sentido estrito

Ainda que uma ação estatal seja adequada para o fomento do fim desejado e necessária, no meio de outras, por restringir no menor grau possível um direito fundamental e ainda ser eficiente, ainda é necessário mais um exame para saber se é constitucionalmente justificável. Se apenas os dois primeiros exames bastassem, teria de ser considerada proporcional (e constitucional) uma medida que promovesse com muita eficiência um direito fundamental e, ao mesmo tempo, restringisse severamente outros direitos. Daí a necessidade do exame da proporcionalidade em sentido estrito (SILVA, 2010, p. 174).

Canotilho define o que vem a ser o princípio da proporcionalidade em sentido estrito da seguinte forma:

Quando se chegar à conclusão da necessidade e adequação da medida coactiva do poder público para alcançar determinado fim, mesmo neste caso deve perguntar-se se o resultado obtido com a intervenção é proporcional à “carga coactiva” da mesma. Está aqui em causa o princípio da proporcionalidade em sentido estrito, entendido como princípio da “justa medida”. Meios e fim são colocados em equação mediante juízo de ponderação, com o objetivo de se avaliar se o meio utilizado é ou não desproporcionado em relação ao fim. Trata-se, pois, de uma questão de “medida” ou “desmedida” para se alcançar um fim: pesar as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim (CANOTILHO, 2003, p. 270).

Neste passo, indaga-se “as vantagens causadas pela promoção do fim são proporcionais às desvantagens causadas pela adoção do meio? A valia da promoção do fim corresponde à desvalia da restrição causada?” (ÁVILA, 2005, p. 124).

5.2 COLISÃO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS E PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO

Em sua teoria dos direitos fundamentais, Robert Alexy aponta que há estreita relação entre a teoria dos princípios e a máxima da proporcionalidade:

a natureza dos princípios implica a máxima da proporcional idade, e essa implica aquela. Afirmar que a natureza dos princípios implica a máxima da proporcionalidade significa que a proporcional idade, com suas três máximas parciais da adequação, da necessidade (mandamento do meio menos gravoso) e da proporcionalidade em sentido estrito (mandamento do sopesamento propriamente dito), decorre logicamente da natureza dos princípios, ou seja, que a proporcionalidade é deduzível dessa natureza (ALEXY, 2011, p. 116-117).

E prossegue, explicando como o caráter principiológico dos direitos fundamentais exige, no caso de colisão entre eles, a técnica de sopesamento:

Quando uma norma de direito fundamental com caráter de princípio colide com um princípio antagônico, a possibilidade jurídica para a realização dessa norma depende do princípio antagônico. Para se chegar a uma decisão é necessário um sopesamento nos termos da lei de coli são. Visto que a aplicação de princípios válidos - caso sejam aplicáveis - é obrigatória, e visto que para essa aplicação, nos casos de colisão, é necessário um sopesamento, o caráter principiológico das normas de direito fundamental implica a necessidade de um sopesamento quando elas colidem com princípios antagônicos. Isso significa, por sua vez, que a máxima da proporcionalidade em sentido estrito é deduzível do caráter principiológico das normas de direitos fundamentais (ALEXY, 2011, p. 117-118).

Como já apontado, os princípios são mandados de otimização que exigem a realização mais ampla possível em face das possibilidades jurídicas e fáticas. A máxima da proporcionalidade em sentido estrito expressa que essa otimização, quando da ocorrência de colisão entre princípios, deve ocorrer através do sopesamento (ALEXY, 2011, p. 593-594).

Canotilho elenca razões que justificam a necessidade da ponderação no direito constitucional, entre elas o caráter principiológico das normas de direitos fundamentais:

(1) inexistência de uma ordenação abstracta de bens constitucionais o que torna indispensável uma operação de balanceamento desses bens de modo a obter uma norma de decisão situativa, isto é, uma norma de decisão adoptada ás circunstâncias do caso; (2) formatação principial de muitas das normas de direito constitucional (sobretudo das normas consagradoras de direitos fundamentais) o que implica, em caso de colisão, tarefas de “concordância”, “balanceamento”, “pesagem”, “ponderação” típicas dos modos de solução de conflitos entre princípios (que não se reconduzem, como já se frisou, a alternativas radicais de “tudo ou nada”); (3) fractura da unidade de valores de uma comunidade que obriga a leituras várias dos conflitos de bens, impondo uma cuidadosa análise dos bens em presença e uma fundamentação rigorosa do balanceamento efectuado para a solução dos conflitos (CANOTILHO, 2003, p. 1237)

Dessa forma, enquanto normas de caráter principiológico, os direitos fundamentais colidentes devem ser sopesados para que o conflito seja resolvido. O sopesamento comporta três passos:

No primeiro é avaliado o grau de não-satisfação ou afetação de um dos princípios. Depois, em um segundo passo, avalia-se a importância da satisfação do princípio colidente. Por fim, em um terceiro passo, deve ser avaliado se a importância da satisfação do princípio colidente justifica a afetação ou a não-satisfação do outro princípio (ALEXY, 2011, p. 594).

O sopesamento será realizado tendo em vista as circunstâncias do caso concreto. Assim, cada norma terá sua importância individualizada levando em conta tais circunstâncias, e, desse modo, “permitindo uma percepção tão imparcial quanto possível das razões que se mostram contrapostas, favoráveis e contrárias a uma dada linha argumentativa” (GARCIA, 2008, p. 374).

A ponderação busca identificar qual dos princípios possui maior relevância (peso) no caso concreto. Não significa, necessariamente, o afastamento total de um dos princípios colidentes, sendo possível a harmonização e aplicação de todos ao caso concreto, através da imposição de limitações recíprocas. Tal harmonização, considerando a unidade da constituição, é sempre recomendável, só devendo ser afastada quando absolutamente inviável (GARCIA, 2008, p. 375).

De todo exposto, extrai-se que “a ponderação ou balanceamento compreende método hábil a proporcionar solução ajustadora à colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens constitucionalmente protegidos (CLÈVE, FREIRE, 2002, p. 38).

Entretanto, a técnica da ponderação não importa em abertura para uma justiça casuística ou de sentimentos, sendo necessária uma topografia do conflito e uma justificativa da solução através da ponderação.

Em termos tendenciais, designa-se por topografia de conflitos a descrição das modalidades segundo as quais a norma que regula determinado direito ou interesse incide, num caso específico, no âmbito (área, esfera) de direitos ou bens conflituantes. A análise da topografia do conflito exige, assim, que se esclareçam dois pontos: (1) se e em que medida a área ou esfera de um direito (âmbito normativo) se sobrepõe à esfera de um outro direito também normativamente protegido; (2) qual o espaço que “resta” aos dois bens conflituantes para além da zona de sobreposição (CANOTILHO, 2003, p. 1239).

Partindo da topografia do conflito, é possível descobrir, através do teste da razoabilidade, “o conteúdo valorativo de interesses pretensamente invocados como dignos de proteção (CLÈVE; FREIRE; 2002, p. 39).

A ponderação será necessária quando dois ou mais direitos previstos em normas jurídicas não possam, em razão de circunstâncias do caso concreto, ser otimizados. Além disso, também não podem existir regras abstratas de prevalência, conforme ensina Canotilho:

Excluem-se, por conseguinte, relações de preferência prima facie, pois nenhum bem é, prima face, quer excluído porque se afigura excessivamente débil, quer privilegiado porque, prima facie, se afigura com valor “reforçado” ou até absoluto. Isto implica a verificação e ordenação, em cada caso ou grupos de casos específicos, de esquemas de prevalência parciais ou relativos, porque, nuns casos, a prevalência pode pender para um lado e, noutros, para outro a do segundo as ponderações ou balanceamentos efectuados ad hoc (CANOTILHO, 2003, p. 1240).

“Desta forma, o método da ponderação de bens consiste em técnica capaz de propiciar, em um campo de tensão principiológica, a escolha do princípio que possui maior peso ou valor (CLÈVE; FREIRE, 2002, p. 39).

A dimensão de ponderabilidade das normas principiológicas justifica a solução através do método da ponderação. Decorre daí uma hierarquia axiológica móvel entre os princípios colidentes, pois estabelece o peso dos princípios de acordo com cada caso concreto, sendo certo que a prevalência pode ser invertida num caso diferente (CANOTILHO, 2003, p. 1241).

Cumpre assinalar que a ponderação exige o cumprimento de três etapas, como afirma Barcellos:

Na primeira delas, caberá ao intérprete identificar todos os enunciados normativos que aparentemente se encontram em conflito ou tensão e agrupá-los em função da solução normativa que sugerem para o caso concreto. A segunda etapa ocupa-se de apurar os aspectos de fato relevantes e sua repercussão sobre as diferentes soluções indicadas pelos grupos formados na etapa anterior. A terceira fase é o momento de decisão: qual das soluções deverá prevalecer? E por quê? Qual a intensidade da restrição a ser imposta às soluções preteridas, tendo em conta, tanto quanto possível, a produção da concordância prática de todos os elementos normativos em jogo? (BARCELLOS, 2005, p. 92).

No mesmo sentido, sobre a etapa decisória, ensina Barroso:

Nessa fase dedicada à decisão, os diferentes grupos de normas e a repercussão dos fatos do caso concreto estarão sendo examinados de forma conjunta, de modo a apurar os pesos que devem ser atribuídos aos diversos elementos em disputa e, portanto, o grupo de normas que deve preponderar no caso. Em seguida, é preciso ainda decidir quão intensamente esse grupo de normas – e a solução por ele indicada – deve prevalecer em detrimento dos demais, isto é: sendo possível graduar a intensidade da solução escolhida, cabe ainda decidir qual deve ser o grau apropriado em que a solução deve ser aplicada (BARROSO, 2009, p. 361).

5.3 LEGITIMAÇÃO DA PONDERAÇÃO POR MEIO DA TEORIA DA ARGUMENTAÇÃO

Conforme demonstrado, a técnica da ponderação se destina a resolver casos difíceis em que a subsunção não é suficiente.

Ocorre que, como se sabe, a jurisdição é inafastável, não podendo o juiz deixar de prestar a tutela jurisdicional, por mais complexo que seja o caso. Neste sentido, ensina Humberto Theodoro Júnior:

(d) O princípio da indeclinabilidade: o órgão constitucionalmente investido no poder de jurisdição tem a obrigação de prestar a tutela jurisdicional e não a simples faculdade. Não pode recursar-se a ela, quando legitimamente provocado. Trata-se do dever legal de responder a invocação da tutela jurisdicional assegurada pela Constituição (THEODORO JÚNIOR, 2015, p. 115).

Considerando a discricionariedade decisória envolvida em casos desta estirpe, cujas normas possuem textura demasiadamente aberta, é preciso encontrar “um procedimento racional e controlável, que possibilitasse, desse modo, certeza e previsibilidade jurídicas, e não a simples decisão pela decisão” (PADILHA, 2006, p. 87).

Escorada nas lições de Dworkin, Norma Sueli Padilha afirma que o juiz deve sempre buscar uma resposta correta, ainda que a retidão da resposta seja controvertida. Se houverem proposições jurídicas igualmente boas, a dúvida será sobre qual a melhor solução, mas não sobre a existência de uma resposta correta (PADILHA, 2006, p. 90-91).

A decisão será considerada racional quando apresentar argumentação que faça com que seja aceita.

O critério legitimador da decisão será o consenso que advém do acordo sobre os valores nela incorporados, ou seja, a decisão deve convencer pela convicção, nela firmada, de que a escolha se baseou em critérios racionais, para decidir pelo argumento mais forte e pertinente, mais razoável e equitativo (PADILHA, 2006, p. 107).

Assim, para realizar o controle das decisões operadas mediante a técnica da ponderação, é preciso examinar a argumentação desenvolvida, de modo a verificar a correção e racionalidade dos argumentos e raciocínios empregados (BARROSO, 2008, p. 364).

No mesmo passo, salienta Barcellos que “a necessidade de racionalidade e justificação torna-se ainda mais acentuada quando se trate de decisão que emprega a técnica da ponderação” (BARCELLOS, 2005, p. 41).

Isso deve ser feito porque “a ponderação de bens ou valores será constantemente influenciada pelas concepções subjetivas inerentes ao agente responsável por sua realização” (GARCIA, 2008, p. 379-380).

O resultado da ponderação precisa ser acompanhado de uma motivação idônea que permita sua análise objetiva. “A motivação deve expor de forma lógica e objetiva os fundamentos que nortearam a individualização do peso de cada um dos bens e valores colidentes, conferindo a necessária transparência à decisão tomada” (GARCIA, 2008, p. 380).

O juiz não é uma máquina e, quando estiver lidando com um caso concreto deste tipo, deve analisar todos os ângulos da situação, de modo que respeito o formalismo advindo da lei, garantindo a segurança jurídica, mas que também esteja atento ao que sua decisão desencadeará na prática, buscando a equidade e a justiça, justificando sua decisão mediante um procedimento racional (PADILHA, 2006, p. 89).

Nessa concepção, em que a intervenção do decididor não é mecânica nem arbitrária, devendo ser capaz de apreciar a importância dos valores em jogo, pesando os argumentos pró e contra, para chegar a uma decisão bem motivada, que leve em conta, de forma equilibrada, as exigências da equidade e da segurança jurídica, o juiz deverá recorrer a todos os recursos de argumentação que lhe forneçam os meios e os instrumentos intelectuais indispensáveis ao cumprimento de sua tarefa (PADILHA, 2006, p. 89).

Para verificar se uma interpretação é correta ou, ao menos, racional e se é melhor do que outras, Barroso elenca três parâmetros de controle de argumentação (BARROSO, 2009, p. 365-367)

Num primeiro ponto, deve a argumentação jurídica apresentar base normativa que lhe sustente, não bastando o sentido de justiça pessoal, a lógica ou a moral, de modo que, de início, um conflito deve ser resolvido privilegiando a solução que apresente como base o maior número de normas jurídicas.

Um segundo parâmetro trata da possibilidade de universalização os critérios adotados para decisão, de acordo com o imperativo da isonomia.

O último critério aponta que a utilização dos princípios instrumentais e materiais da constituição são capazes de orientar a argumentação jurídica desenvolvida pelo intérprete.

No mesmo passo, Dimoulis e Martins averbam o que seria uma fundamentação adequada:

– A utilização de todas as normas jurídicas que incidem sobre o tema e não somente dos dispositivos (em particular dos “princípios”) que apoiam a opinião do julgador.

– A referência à doutrina e à jurisprudência, nacional e estrangeira, sobre o tema sem parcialidade, isto é, sem mencionar ou valorizar tão somente as opiniões em consonância com a opinião de cada magistrado. Somente tal exposição imparcial e completa permite um diálogo crítico, indicando quais são os melhores argumentos (e por quais razões).

– O aproveitamento de dados empíricos que permitam fundamentar alegações e prognósticos (DIMOULIS; MARTINS, 2015, p. 229).

Ainda sobre a necessidade de racionalidade da decisão que utiliza a técnica de ponderação, afirma Barcellos:

[...] a vinculação da decisão judicial ao sistema jurídico em vigor é um primeiro elemento de racionalidade; ao demonstrar essa vinculação de forma consistente, a decisão judicial se beneficia da presumida racionalidade do sistema jurídico e, sobretudo, da contida em seu elemento central: a Constituição (BARCELLOS, 2005, p. 44).

Prosseguindo, assevera que “A justificação, por sua vez, está associada à necessidade de explicitar as razões pelas quais uma decisão foi tomada dentre outras que seriam possíveis” (BARCELLOS, 2005, p. 45).

E arremata:

Em suma: em um Estado de direito, republicano e democrático, as decisões judiciais devem vincular-se ao sistema jurídico da forma mais racional e consistente possível, e o processo de escolhas que conduz a essa vinculação deve ser explicitamente demonstrado. Aprimorar a consistência metodológica da técnica da ponderação e construir parâmetros jurídicos capazes de orientar seu emprego são esforços dogmáticos que podem contribuir, em primeiro lugar, para que a vinculação ao sistema das decisões que empregam essa técnica seja juridicamente mais consistente e mais racional. Em segundo lugar, e aqui apenas de forma indireta, a ordenação objetiva e clara das etapas a serem percorridas pelo intérprete no uso da ponderação poderá facilitar a demonstração pública do processo decisório no momento da motivação (BARCELLOS, 2005, p. 48).

5.4 CRÍTICAS AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE EM SENTIDO ESTRITO

Como bem observa Barroso, “A metáfora da ponderação, associada ao próprio símbolo da justiça, não é imune a críticas, sujeita-se ao mau uso e não é remédio para todas as situações” (BARROSO, 2008, p. 363).

E prossegue:

[...] a ponderação, embora preveja a atribuição de pesos diversos a fatores relevantes  deuma determinada situação, não fornece referências materiais ou axiológicas para a valoração a ser feita. No seu limite máximo, presta-se ao papel de oferecer um rótulo para voluntarismos e soluções ad hoc, tanto as bem-inspiradas como as nem tanto (BARROSO, 2009, p. 363).

Barcellos agrupa as principais críticas à ponderação aduzindo que a ponderação seria inconsistente do ponto de vista metodológico, pois as noções de sopesamento e balanceamento são vagas e inexiste parâmetros racionais para a ponderação; que a ponderação permite alto subjetivismo e gera arbitrariedade e voluntarismo; que a ponderação contraria o Estado de direito e permite insegurança jurídica; que a ponderação desencadeia a violação da separação dos poderes, pois as vantagens e desvantagens são avaliadas novamente por órgãos ilegítimos; que a ponderação aniquila a normatividade das disposições constitucionais e ameaça os direitos fundamentais, que os juízes, ao ponderar, manifestará convicções comuns à maioria da população, deixando os direitos fundamentais desprotegidos dos humores de maiorias eventuais (BARCELLOS, 2005, p. 50-53).

E concluiu pela relativa procedência das críticas:

É preciso reconhecer que a crítica resumida acima é em boa parte procedente. Não há como negar, considerando o estado atual da dogmática sobre o assunto, que, de fato, a ponderação é metodologicamente inconsistente, enseja excessiva subjetividade e não dispõe de mecanismos que previnam o arbítrio (BARCELLOS, 2005, p. 53).

Com efeito, a utilização do princípio da proporcionalidade faz surgir o problema do equilíbrio entre os poderes legislativo e judiciário. “Daí que resulta o temor da instauração de um eventual ‘Estado de juízes’” (BONAVIDES, 2011, p. 420).

Lênio Streck pontua que “Há milhares de decisões (e exemplos doutrinários) fazendo menção à ponderação, que, ao fim e ao cabo, é transformada em álibi teórico para o exercício dos mais variados modos de discricionarismos e axiologismos” (STRECK, 2011, p. 23).

E prossegue criticando o problema da discricionariedade na ponderação:

o problema principal da ponderação é a sua filiação ao esquema sujeito-objeto e a sua dependência da discricionariedade, ratio final. Desse modo, se a discricionariedade é o elemento que sustenta o positivismo jurídico nos “casos difíceis” e nas vaguezas e ambiguidades da linguagem dos textos jurídicos, não parece que a ponderação seja “o” mecanismo que livre (ou arranque) o direito dos braços do positivismo. Pode até arrancá-lo dos braços do positivismo primitivo; mas o atira nos braços de outra forma de positivismo – axiologista, normativista ou pragmaticista. Veja-se: a teoria da argumentação – de onde surgiu a ponderação – não conseguiu fugir do velho problema engendrado pelo subjetivismo, a discricionariedade [...] (STRECK, 2011, p. 24).

De outra ponta, Dimoulis e Martins criticam a ponderação de valores (teoria axiológica dos direitos fundamentais), a qual tenta estabelecer uma escala de valores constitucionais apta a funcionar como parâmetro para a proporcionalidade em sentido estrito. Criticam tal posição porque:

[...] tal ordem de valores não pode existir. Primeiro, porque as Constituições que conhecemos, não estabelecem uma classificação de direitos fundamentais, indicando qual prevaleceriam em relação aos demais em caso de colisão. Os bens jurídicos constitucionais conflitantes não foram hierarquicamente sistematizados pelo constituinte, possuindo todos a mesma dignidade normativo-constitucional. Sua hierarquização concreta só pode ser política, a cargo do legislador e não do magistrado.

Segundo, porque a tarefa de hierarquização não pode ser desempenhada pela doutrina jurídica. Além de eventuais preferências subjetivas, é impossível justificar por que determinado direito fundamental corresponderia a “valores” superiores (DIMOULIS; MARTINS, 2015, p. 220).

Em seguida, criticam a ponderação principiológica proposta por Alexy, advertindo que “falta uma medida objetiva, cientificamente comprovada para a ponderação, por mais rebuscados que pareçam os modelos apresentados por Alexy e seus seguidores (DIMOULIS; MARTINS, 2015, p. 221).

Pontuam, em relação ao modelo de Alexy, o subjetivismo inerente à técnica de ponderação e afirmam que:

[...] a proporcionalidade stricto sensu tem o condão de ferir tanto o princípio da separação de funções estatais quanto o princípio democrático: ponderar em sentido estrito significa tomar decisões políticas e não jurídicas. E ignorar que, acima das relações empíricas entre intervenção e propósito estatal, está a ponderação stricto sensu do legislador. Tal ponderação cabe somente ao legislador, em se considerando sua legitimação democrática e constitucional organizacional (DIMOULIS; MARTINS, 2015, p. 222).

E vão além, dizendo que a proporcionalidade em sentido estrito é:

[...] uma construção irracional, dada a impossibilidade jurídica de quantificar e comparar os direitos fundamentais, decidindo qual possui maior “peso” ou importância no caso concreto. Como acreditar que um juiz possa comparar de forma confiável a “valia” de um direito e a “desvalia” do outro ou que tenha a capacidade de avaliar se um direito possui “peso suficiente”? E como admitir o manuseio da proporcionalidade no sentido estrito como “mandamento de uma ponderação mais justa” (DIMOULIS; MARTINS, 2015, p. 222-223).

O próprio Alexy afirma que a teoria dos princípios possui problemas no que toca ao controle de racionalidade, porém destaca que um resultado racional é possível em certos casos, o que respalda a técnica da ponderação

[...] o sopesamento não é um procedimento que conduza, em todo e qualquer caso, a um resultado único e inequívoco. [...] embora o sopesamento nem sempre determine um resultado de forma racional, isso é em alguns casos possível, e o conjunto desses casos é interessante o suficiente para justificar o sopesamento como método (ALEXY, 2011, p. 594)

De outra parte, as críticas ao princípio da proporcionalidade em sentido estrito também seriam aplicáveis à interpretação jurídica como um todo e, a despeito dos problemas levantados, a ponderação é necessária e sua utilização é inexorável, devendo a técnica ser aprimorada (BARCELLOS, 2005, p. 53-55).

No mesmo sentido, aponta Paulo Bonavides, dizendo que as críticas são:

[...] todas impotentes para embargar a difusão, o uso, bem como o prestígio do novo princípio, sobretudo no campo do direito constitucional, em matéria de contenção dos poderes do Estado, já na via executiva, já na legislação propriamente dita, tocante, em primeiro lugar, à legitimidade de limites que possam ser traçados ao exercício dos direitos fundamentais (BONAVIDES, 2011, p. 428).

CONCLUSÃO

No presente trabalho verificou-se que as restrições e colisões entre direitos fundamentais decorrem da própria lógica de um sistema jurídico aberto, cujo texto constitucional funciona como elemento polarizador de ideologias de sociedades pluralistas. Ademais, por estarem no mesmo grau de hierarquia, não há prevalência abstrata entre eles, decorrendo daí a necessidade de sua harmonização, mesmo que sigam em direções opostas.

Demonstrou-se a importância de tratar os direitos fundamentais como tendo fundamentalidade formal, ou seja, que sua fundamentalidade decorre tão somente do fato de estarem previstos no texto constitucional, sendo dispensáveis considerações axiológicas para justificar sua posição hierárquica superior na ordem jurídica, embora não se tenha desprezado tais noções.

Compreendeu-se que, embora não existam direitos fundamentais absolutos e que a restrição seja uma ideia amplamente aceita, esta intervenção no âmbito de proteção de um direito fundamental somente é legítima na medida em que resguarda seu núcleo essencial, não sendo dado ao legislador comum a opção de aniquilar, na prática, a possibilidade do exercício de um direito.

De outro ponta, restou evidente que a interpretação clássica do direito não é suficiente para analisar e resolver os problemas decorrentes desta abertura constitucional e polarização ideológica, sendo necessária a superação do positivismo legalista e a introdução de uma visão principiológica na interpretação constitucional, com métodos e princípios próprios, que surge no pós-positivismo e auxilia na compreensão racional e na resolução de problemas que envolvem os direitos fundamentais, que também possuem caráter principiológico.

Na mesma toada, ficou claro que, para os problemas levantados na pesquisa, o principal fator de compreensão/interpretação/aplicação aos direitos fundamentais se encontra no princípio da proporcionalidade, que exige a adequação e necessidade dos meios e uma ponderação em sentido estrito – esta última considerada como técnica de ponderação e de suma importância para a resolução de conflitos entre direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e bens jurídicos-constitucionais.

Não obstante, mostrou-se notório que o princípio da proporcionalidade apresenta diversos problemas que podem ensejar a quebra da separação dos poderes e fomentar o subjetivismo dos julgadores, decorrendo daí intenso ativismo judicial, pois o controle de racionalidade e justificação nos casos em que se utiliza o critério da proporcionalidade não é, de forma alguma, exato.

Os problemas decorrentes das restrições e conflitos entre direitos fundamentais possuem soluções complexas, para as quais ainda se faz necessário o aperfeiçoamento da decisão judicial, de modo a controlar a discricionariedade do juiz e garantir o exercício dos direitos fundamentais, sem descurar do equilíbrio entre os poderes e o cumprimento de suas funções legítimas.

A conclusão, portanto, aponta para um problema maior: sob que circunstâncias o Direito, como um todo, deve ser obedecido? O que legitima, racionalmente, os atos normativos e as decisões judiciais? Por que, em última instância, o indivíduo deve obedecer aos limites impostos pelo Estado? São questões profundas que, embora relacionadas ao tema desta pesquisa, situam-se em outro campo de estudo. De toda forma, a conclusão a que se chega vai no sentido de que estas perguntas, dentre outras, devem ser exaustivamente formuladas, reformuladas e respondidas, de modo que o resultado de tal empresa oferecerá o substrato para soluções cada vez mais racionais e justificadas para a problemática das restrições e colisões entre os direitos fundamentais.

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Sobre o autor
Jean Henrique da Silva Bento

Recém formado e aprovado no Exame de Ordem, tenho como principais focos de estudo o Direito Constitucional, o Direito Penal e o Direito Processual Penal. Estagiei na Prefeitura de meu município e no Ministério Público do Estado de São Paulo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Trabalho de conclusão de curso apresentado como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito no Centro Universitário Salesiano de São Paulo.

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