A IMPOSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA DO REQUERENTE NOS PROCESSOS OBJETIVOS
Rogério Tadeu Romano
I - O FATO
Segundo informou o Estadão, em sua edição de 10 de abril de 2018, autor de uma das ações que tentam impedir a possibilidade de cumprimento de pena após condenação em segunda instância, o PEN/Patriotas decidiu retirar o pedido de liminar protocolado na semana passada e que pode ser levado amanhã ao plenário do STF pelo ministro Marco Aurélio Mello. O partido quer evitar que a medida venha a beneficiar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado e preso pela Lava Jato.
“Somos de direita e não temos nada a ver com Lula”, disse o presidente do partido, Adilson Barroso. Ele pretende destituir o advogado Antonio Castro, o Kakay, que defende implicados na Lava Jato e entrou com a ação direta de constitucionalidade e com o pedido de liminar contra a prisão em segunda instância em nome do partido. Por força de lei, no entanto, diferentemente da liminar, a ação não pode ser retirada pela sigla. No dia 9 de abril do corrente ano, a Procuradoria-Geral da República apresentou parecer contrário à liminar do PEN.
O presidente do PEN/Patriotas, Adilson Barroso, anunciou no dia 10 de abril de 2018, segundo o site do jornal O Globo, que destituiu Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, como advogado do partido para representá-lo em Ação Declaratória de Constitucionalidade que pode mudar a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a prisão em segunda instância. De acordo com Adilson Barroso, Kakay deve ser notificado ainda nesta terça sobre a decisão.
— Fizemos isso porque o povo está pedindo. Não podemos favorecer o Lula. O nosso partido é de direita. Como não tenho o dom da futurologia, não sabia que essa ação serviria para beneficiar o PT — disse Adilson.
Sobre o pedido de liminar, ainda que o partido consiga retirar o advogado, para se prevenir dessa hipótese, entrou, no dia 6 de abril do corrente ano, com outro pedido de liminar na mesma ação, mas em nome do Instituto de Garantias Penais (IGP). O instituto é amicus curiae na ação — o que, na linguagem jurídica, significa um apoiador da causa.
II - A FISCALIZAÇÃO ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE
No caso em tela trata-se de ação que inaugura um "processo objetivo. Um "processo" que se materializa, do mesmo modo que os demais como instrumento de jurisdição(constitucional concentrada); por meio dele será solucionada uma questão constitucional. Não pode ser tomado, entretanto, como meio para composição de uma lide. É que sendo "objetivo", inexiste lide no processo inaugurado pela ação direta genérica de inconstitucionalidade. Não há, afinal, pretensão resistida.
A finalidade da ação direta de inconstitucionalidade não é propriamente a defesa de um direito subjetivo, ou seja, de um interesse juridicamente protegido lesado ou na iminência de sê-lo( o que pode ocorrer, não obstante, de modo indireto e reflexo). A ação direta de inconstitucionalidade presta-se, antes, para a defesa da Constituição, assim como a Ação Declaratória de Constitucionalidade.
Estar-se-á, pois, diante de um instrumento de fiscalização abstrata de normas, dentro de um processo objetivo na defesa da Constituição.
Assim não há falar em lide, nem partes(salvo em sentido formal), posto que não ocorrem interesses concretos em jogo.
Alertou o ministro Gilmar Ferreira Mendes(Controle de constitucionalidade: Aspectos jurídicos e políticos, São Paulo, Saraiva, 1990, pág. 251) do "que a jurisprudência dos Tribunais Constitucionais costuma chamar de processo objetivo, isto e, um processo sem sujeitos, destinado, pura e simplesmente à defesa da Constituição. Não se cogita, propriamente, de defesa dos interesses do requerente o que pressupõe a defesa de situações subjetivas. É um processo unilateral, não-contraditório, isto é, um processo sem partes no qual existe um requerente mas inexiste um requerido. Na linha de Söhn, a admissibilidade do controle de normas jurídicas está vinculada, tão-somente, a uma necessidade pública de controle.
Daí porque a provocação de um órgão externo é imprescindível inclusive como garantia contra eventual supremacia da jurisdição constitucional. Não obstante, não se reconhece aos órgãos legitimados para desencadear o processo de controle abstrato de constitucionalidade qualquer poder de disposição. Em razão disso, o ministro GIlmar Mendes(obra citada) ensinou que "o processo abstrato de normas cumpre entre nós uma dupla função, tanto quanto como instrumento de defesa da ordem objetiva, quanto como instrumento de defesa de posições subjetivas". Isso porque "a amplitude do direito de propositura faz com que até mesmo pleitos tipicamente individuais sejam submetidos ao Supremo Tribunal Federal, mediante ação direta de inconstitucionalidade( O controle incidental de normas no direito brasileiro, RT CDCCP 23:31).
Por essa razão, o ministro Celso de Mello, no julgamento da RCLQMc 397 - RJ, de 25 de novembro de 1992, lecionou que o ajuizamento de ação direta de inconstitucionalidade, perante o Supremo Tribunal Federal, faz instaurar processo objetivo, sem partes, no qual inexiste litígio refente a situações concretas ou individuais".
A provocação de um órgão externo é imprescindível, inclusive como garantia de eventual supremacia da jurisdição constitucional. Não obstante, não se reconhece aos órgãos legitimados para desencadear o processo de controle abstrato da constitucionalidade qualquer poder de disposição.
Ação declaratória de constitucionalidade tem por finalidade confirmar a constitucionalidade de uma lei federal. O objetivo da ADC é garantir que a constitucionalidade da lei não seja questionada por outras ações.
A petição inicial na ADC deve conter cópia da lei ou do ato normativo que está sendo questionado. Ela deve ser fundamentada, caso contrário pode ser impugnada de imediato pelo relator. O relator deve pedir informações às autoridades autoras da lei, como Presidente da República e Congresso Nacional, para estabelecer o contraditório. Isso acontece porque as leis nascem com presunção de constitucionalidade.
Considerando a relevância da matéria e a representatividade dos requerentes, o relator poderá ouvir outros órgãos ou entidades. Caso haja necessidade de esclarecimento da matéria, podem ser designados peritos para emitir pareceres sobre a questão ou chamadas pessoas com experiência e autoridade no assunto para opinar.
Ainda destaco com relação a ADC:
a) O Advogado-geral da União e o Procurador-Geral da República devem se manifestar nos autos. Quando houver pedido de medida cautelar, só poderá haver concessão pela maioria absoluta dos ministros que compõem o Tribunal, ou seja, por seis votos.
b) Somente em casos de excepcional urgência a cautelar poderá ser deferida sem que sejam ouvidas as autoridades de quem emanou a lei. A decisão sobre a constitucionalidade ou inconstitucionalidade da lei somente será tomada se estiverem presentes na sessão de julgamento pelo menos oito ministros. Uma vez proclamada a constitucionalidade em uma ADC, será julgada improcedente eventual Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a mesma lei.
c) Do mesmo modo, uma vez proclamada a inconstitucionalidade em ADI, será improcedente a Ação Declaratória de Constitucionalidade contra a mesma norma. Contra a decisão que declara a constitucionalidade ou inconstitucionalidade em ADC e ADI não cabe recurso de qualquer espécie, com a exceção de embargos declaratórios. Fundamentos legais Constituição Federal, artigo 102, I.
III - IMPOSSIBILIDADE DE DESISTÊNCIA
Lembou o ministro Gilmar Mendes(obra citada, pág. 251) que o Bundesverfassungsgericht decidiu, a propósito, que a desistência formulada pelo requerente não acarretava, necessariamente, a suspensão do processo. O pedido representaria, neste contexto, um simples impulso externo, um instrumento deflagrador do processo objetivo de controle. Lembou o ministro Gilmar Mendes que Söhn argumentava que há o princípio indispensável para a instauração do processo, não para o seu desenvolvimento, uma vez que o princípio do pedido foi satisfeito pela simples instauração do pedido.
Decidiu o Supremo Tribunal Federal, com base no pensamento da Corte Constitucional alemã, que, proposta a ação direta, não se admite a desistência(princípio da indisponibilidade da instância). Nada impede, todavia, que o Procurador-Geral da República ofereça parecer pela improcedência do pedido.
Aliás, a natureza jurídica do processo levou ainda o Supremo Tribunal Federal a não admitir o litisconsórcio e a intervenção assistencial de terceiro concretamente interessado. O Supremo Tribunal Federal não admite a interposição de recurso(embargos infringentes ou de declaração), pelos terceiros que se dizem prejudicados, em decisão final prolatada em ação direta de inconstitucionalidade(RTJ 109:880 e STF - RDA 158: 173).
Como decorrência da natureza do processo abstrato, descabe o ajuizamento de ação rescisória(Ação rescisória, 878 - SP(RTJ 94: 49 - 60).
III - POSIÇÃO CONCRETA DO STF NA MATÉRIA DE DESISTÊNCIA
O princípio da indisponibilidade, que rege o processo de controle concentrado de constitucionalidade, impede a desistência da ação direta já ajuizada. O art. 169, § 1º, do RISTF-80, que veda ao PGR essa desistência, aplica-se, extensivamente, a todas as autoridades e órgãos legitimados pela Constituição de 1988 para a instauração do controle concentrado de constitucionalidade (art. 103).
[ADI 387 MC, rel. min. Celso de Mello, j. 1º-3-1991, P, DJ de 11-10-1991.]
Trago, em sua integralidade, importante pronunciamento do ministro Celso de Mello proferido em 25 de outubro de 2005:
"EMENTA: CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO. PRETENDIDA DESISTÊNCIA DA AÇÃO DIRETA DE CONSTITUCIONALIDADE. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA. PREVALÊNCIA, EM SEDE DE FISCALIZAÇÃO CONCENTRADA, DO PRINCÍPIO DA INDISPONIBILIDADE. DOUTRINA. PRECEDENTES. PEDIDO INDEFERIDO.
DECISÃO: A Confederação Nacional de Agricultura - CNA formulou pedido de desistência da presente ação direta de inconstitucionalidade (fls. 127). Esse pedido, no entanto, não pode ser deferido.
É que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reiteradamente proclamado que, em se tratando de controle normativo abstrato, não se revela lícito ao autor requerer a desistência da ação direta de inconstitucionalidade:
“O princípio da indisponibilidade, que rege o processo de controle concentrado de constitucionalidade, impede a desistência da ação direta já ajuizada.”
(RTJ 135/905, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
“Instaurado o processo de controle normativo abstrato perante o Supremo Tribunal Federal, não mais assiste ao autor qualquer poder de disposição sobre a ação direta de inconstitucionalidade. Em conseqüência, não lhe será lícito requerer a desistência de ação direta já ajuizada. Precedentes do STF.”
(ADI 1.971/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJU 02/08/99)
Esse entendimento – que tem o beneplácito do magistério doutrinário (IVES GANDRA DA SILVA MARTINS/GILMAR FERREIRA MENDES, “Controle Concentrado de Constitucionalidade”, p. 155/156, item n. 3.4.4, 2001, Saraiva; LUÍS ROBERTO BARROSO, “O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 141, item n. 4.1, 2004, Saraiva; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada”, p. 2.366/2.367, item n. 5.1, 2ª ed., 2003, Atlas; GUSTAVO BINENBOJM, “A Nova Jurisdição Constitucional Brasileira”, p. 151, 2001, Renovar; OSWALDO LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade”, p. 178, item n. 9.6.4, 1999, RT; UADI LAMMÊGO BULOS, “Constituição Federal Anotada”, p. 963, item n. 3, 5ª ed., 2003, Saraiva; LENIO LUIZ STRECK, “Jurisdição Constitucional e Hermenêutica”, p. 546, item n. 11.2.3, 2ª ed., 2004, Forense) – acha-se consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 151/3 – ADI 2.896/SC, Rel. Min. ELLEN GRACIE, DJU 20/06/2003), estando em plena consonância com o que prescreve o ordenamento positivo (Lei nº 9.868/99, art. 5º, “caput”; RISTF, art. 169, § 1º).
Não constitui demasia relembrar, neste ponto, que as controvérsias constitucionais em geral revestem-se de tamanha magnitude, que, uma vez instaurada a fiscalização normativa abstrata, torna-se inviável a extinção desse processo objetivo pela só e unilateral manifestação de vontade do autor.
O relevo jurídico, político, social ou administrativo do tema submetido ao poder de controle “in abstracto” do Supremo Tribunal Federal justifica, por si só, a impossibilidade processual de admitir-se a desistência da ação direta.
O exercício da jurisdição constitucional concentrada desta Suprema Corte, por isso mesmo, não pode ficar condicionado - e, muito menos, ser frustrado - por razões, que, invocadas pelo autor, nem sempre se identificam com a necessidade, imposta pelo interesse público, de ver excluídas, do ordenamento jurídico, as normas eivadas de inconstitucionalidade.
Daí a procedente observação de VITALINO CANAS (“Os Processos de Fiscalização da Constitucionalidade e da Legalidade pelo Tribunal Constitucional”, p. 130, item n. 35, 1986, Coimbra Editora), cujo magistério, ao analisar os princípios estruturadores que regem o processo de controle normativo abstrato, adverte:
“Nos outros processos de fiscalização abstracta da constitucionalidade e da legalidade, o processo não está ao dispor de nenhum sujeito processual, incluindo, aliás, o próprio Tribunal Constitucional que não lhe pode pôr termo por razões de inconveniência ou de inoportunidade da fiscalização (...).
(...) O Tribunal deve prosseguir e emitir a decisão que considerar melhor para tutelar o interesse da constitucionalidade (...).
A proibição de desistência (...) adapta-se na perfeição ao seu carácter objectivo.” (grifei)
Esse mesmo autor português, após citar doutrinadores alemães (HANS LECHNER e HARTMUT SOHN), acentua que a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão orienta-se em igual sentido: “Perante a ausência de um preceito que resolvesse inequivocamente a questão se poderia haver desistência nos processos de fiscalização abstracta, o TC federal alemão perfilhou a opinião negativa. Na sua decisão de 30/7/1952 (BVverfGE, nº 1, págs. 396 e segs., especialmente pág. 414) firmou a jurisprudência de que, a partir do momento em que o requerente deu início ao processo, ele deixa de ter qualquer poder de disposição sobre o seu prosseguimento, o qual deve ser decidido unicamente na perspectiva do interesse público” (“op. loc. cit.”).
Não custa rememorar, finalmente, neste ponto, na linha do magistério jurisprudencial desta Corte (ADI 1.500/ES, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – ADI 2.049-QO/RJ, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA – ADI 2.188-QO/RJ, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA), que nem mesmo se revela possível, ao autor da ação direta, considerado o princípio da indisponibilidade, desistir do simples pedido de medida cautelar:
“O princípio da indisponibilidade, que rege o processo de controle normativo abstrato, impede - por razões exclusivamente fundadas no interesse público - que o autor da ação direta de inconstitucionalidade venha a desistir do pedido de medida cautelar por ele eventualmente formulado.”
(RTJ 178/554-555, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno)
Sendo assim, tendo presentes as razões expostas, indefiro o pedido de desistência desta ação direta de inconstitucionalidade formulado pela Confederação Nacional da Agricultura (fls. 127).
2. Determino, de outro lado, que a autora esclareça se as normas objeto da presente ação direta encontram-se em vigor ou se teriam sofrido alteração substancial em seu conteúdo material. Para tanto, assino-lhe o prazo de quinze (15) dias.
Publique-se.
Brasília, 25 de outubro de 2005."
IV - O PAPEL DO AMICUS CURIAE
No caso em tela fez-se menção a figura do amicus curiae.
Para Mirela C. Aguiar(Amicus Curiae, 2005, pág. 12) a tese mais aceita é de que o instituto derivaria do direito inglês.
O amicus curiae é um terceiro que intervém no processo de tomada de decisão judicial, frequentemente em defesa dos interesses de grupos por ele representados, oferecendo informações acerca da questão jurídica controvertida bem como novas alternativas interpretativas. O instrumento é utilizado, essencialmente, por entidades associativas, que oferecem memoriais com três tipos de informação: argumentações jurídicas já presentes no processo; elementos técnicos não legais ou dados sobre fatos; prognoses e indícios acerca das preferências políticas do grupo de interesses que representam. Nâo cabe ao amicus curiae requerer liminar.
O STF possui postura aberta e flexível à participação do amicus curiae, permitindo o ingresso dos terceiros já antes mesmo da previsão expressa contida nas Leis n.9.868/99(ADI e ADC) e n. 9.882/89(ADPF). Dentre os principais motivos para o indeferimento do pedido de ingresso do amicus curiae destaca-se a extemporaneidade do pedido(uma vez encerrada a fase de instrução do processo). Contudo, não são poucos os casos nos quais o amicus curiae ingressou tardiamente, até mesmo após o início do julgamento, o que denota a flexibilidade do Tribunal com relação à atuação do terceiro interessado. É admitida a sustentação oral do amicus, não sendo reconhecida a sua legitimidade recursal.
No modelo incidental de controle da constitucionalidade, o amicus curiae atua, de forma preponderante, nos recursos extraordinários com repercussão geral ou cujas decisões teriam repercussão, direta ou indireta nos interesses dos grupos por ele representados.
No STF, o amicus curiae ingressa no processo para apoiar um dos lados da disputa. Aliás deve se reconhecer o caráter parcial do amicus curiae.
Sendo assim o amicus curiae deverá obter a autorização das partes para submeter o seu memorial perante a Corte, contudo, mesmo se as partes não concordem, a corte pode autorizar a entrega do memorial, o que usualmente acontece.