Nessa breve análise, comenta-se a respeito de preceitos do Projeto de Lei - PL nº 7.448/2017, que inclui onze novos artigos à importante Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), porquanto disciplina o âmbito de aplicação das normas jurídicas.
No PL 7.448 observam-se inúmeras proposições que afrontam preceitos da Carta Magna, embora aprovado no Senado e na Câmara dos Deputados, aguardando sanção ou veto do Presidente da República.
O Projeto revela-se mais uma iniciativa com a teleologia de acrescer poderes ao já hipertrofiado Poder Executivo no País e tutelar e até imunizar os gestores públicos, majoritariamente desse Poder. Fundamenta-se o Projeto de Lei na iniludível ilação do problema de inefetividade do Poder Público residir no controle, administrativo ou judicial, que pode e deve ser aperfeiçoados. Mas, de fato, o Brasil é assolados pela histórica e notória ineficiência gerencial (Administração Pública com nepotismo, excesso cargos comissionados, ausência de efetivo planejamento, baixa remuneração para áreas essenciais como educação e saúde) e corrupção epidêmica, que graça o Estado.
Corrupção generalizada, impende anotar, em que agentes públicos e privado estão nos espaços estratégicos para se apropriarem dos limitados de recursos do povo, o que fomenta o ciclo vicioso de um Poder Público ineficiente à medida que o atendimento aos interesses privados são prioritários, relegando a prestação de serviços ofertados aos cidadãos e infraestrutura dos Entes da Federação a um plano secundário, atuando em algumas áreas para terem algum resultado tão somente para auferirem um pretexto, uma bandeira para tentar a manutenção no Poder unicamente.
Mencionam-se, a título ilustrativo, os artigos 20 e 21 a serem insertos na Lei de Introdução ao Direito mediante esse Projeto de Lei:
“... Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão.
Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.
Art. 21. A decisão que, na esfera administrativa, controladora ou judicial, decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa deverá indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas.
Parágrafo único. A decisão a que se refere o caput deverá, quando for o caso, indicar as condições para que a regularização ocorra de modo proporcional e equânime e sem prejuízo aos interesses gerais, não se podendo impor aos sujeitos atingidos ônus ou perdas que, em função das peculiaridades do caso, sejam anormais ou excessivos.”
Desse modo, essas proposições subvertem as diretrizes da República à medida que o ordenamento jurídico tutelará o interesse dos ocupantes dos órgãos e poderes do Estado em detrimento do interesse da sociedade na frágil República brasileira.
Tais disposições indevidamente regulam que a Carta Magna prescreve, inconstitucionalidade horizontal, bem como contém afronta vertical à Carta Magna, vez que dilapida princípio da Independência funcional dos Julgadores, administrativos e judiciais, do livre convencimento motivado e sistema de freios e contrapesos, tão caros a uma República, atacando-se preceitos elementares da Constituição da Federal.
Cabe aos Julgadores decidirem com independência ao aplicar o direito, desde que exponha os motivos do sentido adotado na deliberação.
Por sua vez, descabe uma lei instituir a forma e conteúdo a se desenvolver no convencimento e explicitar na fundamentação, obrigando os Julgadores a ponderar sobre efeitos da decisão e considerar alternativas aos sentidos que adotará. Afasta a possibilidade de se fundamentar em princípios, quando esses estruturam e irradiam efeitos para todo o ordenamento jurídico.
Por outro lado, não corresponde a um papel dos Julgadores avaliar opções a decidir nas políticas públicas, - atribuição precípua dos gestores -, mas sim decidir sobre legalidade e constitucionalidade das condutas, bem como leis e atos normativos (em controle incidental e concentrado a respeito de compatibilidade com a Carta Magna). Nesse espectro, forçoso se reportar à posição pacífica do Supremo Tribunal Federal:
“O Poder Judiciário, quando intervém para assegurar as franquias constitucionais e para garantir a integridade e a supremacia da Constituição, desempenha, de maneira plenamente legítima, as atribuições que lhe conferiu a própria Carta da República. O regular exercício da função jurisdicional, por isso mesmo, desde que pautado pelo respeito à Constituição, não transgride o princípio da separação de poderes.” (MS 23.452, rel. min. Celso de Mello, j. 16-9-1999, P, DJ de 12-5-2000.)
“Separação e independência dos Poderes: freios e contrapesos: parâmetros federais impostos ao Estado-membro. Os mecanismos de controle recíproco entre os Poderes, os "freios e contrapesos" admissíveis na estruturação das unidades federadas, sobre constituírem matéria constitucional local, só se legitimam na medida em que guardem estreita similaridade com os previstos na Constituição da República: precedentes. Consequente plausibilidade da alegação de ofensa do princípio fundamental por dispositivos da Lei estadual 11.075/1998/RS (inciso IX do art. 2º e arts. 33 e 34), que confiam a organismos burocráticos de segundo e terceiro graus do Poder Executivo a função de ditar parâmetros e avaliações do funcionamento da Justiça (...). (ADI 1.905 MC, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 5-11-2004.]
“Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República. Doutrina. Precedentes.” (ADI 4190 MC-REF. Relator Min. Celso de Mello. DJe 11-06-2010)
“A fiscalização legislativa da ação administrativa do Poder Executivo é um dos contrapesos da CF à separação e independência dos Poderes: cuida-se, porém, de interferência que só a Constituição da República pode legitimar. Do relevo primacial dos "pesos e contrapesos" no paradigma de divisão dos poderes, segue-se que à norma infraconstitucional – aí incluída, em relação à federal, a constituição dos Estados-membros –, não é dado criar novas interferências de um Poder na órbita de outro que não derive explícita ou implicitamente de regra ou princípio da Lei Fundamental da República.” (ADI 3.046, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 28-5-2004.)
Outro preceito a observar do referido PL em apreço se refere ao Parágrafo Primeiro do novo artigo 23. Preconiza como direito do gestor e obrigação dos Julgadores, esfera administrativa ou judicial, realizarem acordos como os que administram a res pública.
Com efeito, desnatura a força coercitiva das decisões sobre conflitos de interesse e higidez de normas, tornando letra morta prerrogativas e atribuições de um Judiciário e Órgãos de julgamento no Estado Democrático de Direito, a que se constitui frágil República brasileira, consoante expressa disposição do primeiro Artigo da Carta Política de 88.
Todavia, Julgadores numa relação jurídica tripartite, em que formado o contraditório num conflito de interesses, por meio do livre convencimento motivado, aplica o direito conforme ordem vigente e nuances do caso concreto, além da avaliação de normas em compatibilidade com a Carta Magna, em sede de controle difuso ou concentrado, a depender da natureza do Tribunal, administrativo ou judicial.
A Lei Maior, no ápice do arcabouço jurídico, atribui por preceitos de eficácia plena as competências privativas de resolver conflitos de interesses de forma independente e imparcial. Não é outro a exegese do Pretório Excelsor:
“Separação dos Poderes. Possibilidade de análise de ato do Poder Executivo pelo Poder Judiciário. (...) Cabe ao Poder Judiciário a análise da legalidade e constitucionalidade dos atos dos três Poderes constitucionais, e, em vislumbrando mácula no ato impugnado, afastar a sua aplicação.” (AI 640.272 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, DJ de 31-10-2007.)
“Tribunal de Contas da União. Tomada de contas especial. Dano ao patrimônio da Petrobras. Medida cautelar de indisponibilidade de bens dos responsáveis. Poder geral de cautela reconhecido ao TCU como decorrência de suas atribuições constitucionais.” (MS 33.092. Relator Min. Gilmar Mendes. DJE de 17-8-2015.)
“Os Tribunais de Contas ostentam posição eminente na estrutura constitucional brasileira, não se achando subordinados, por qualquer vínculo de ordem hierárquica, ao Poder Legislativo, de que não são órgãos delegatários nem organismos de mero assessoramento técnico. A competência institucional dos Tribunais de Contas não deriva, por isso mesmo, de delegação dos órgãos do Poder Legislativo, mas traduz emanação que resulta, primariamente, da própria Constituição da República.” (ADI 4.190-MC-REF. Relator Min. Celso de Mello, Plenário, DJE de 11-6-2010.)
“O art. 93, IX, da CF exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão.” (AI 791.292 QO-RG, rel. min. Gilmar Mendes, j. 23-6-2010, P, DJE de 13-8-2010, tema 339.)
“1- Os participantes de licitação têm direito à fiel observância do procedimento estabelecido na lei e podem impugná-lo administrativa ou judicialmente. Preliminar de ilegitimidade ativa rejeitada. 2- Inexistência de direito líquido e certo. O Tribunal de Contas da União tem competência para fiscalizar procedimentos de licitação, determinar suspensão cautelar (artigos 4º e 113, § 1º e 2º da Lei nº 8.666/93), examinar editais de licitação publicados e, nos termos do art. 276 do seu Regimento Interno, possui legitimidade para a expedição de medidas cautelares para prevenir lesão ao erário e garantir a efetividade de suas decisões. 3- A decisão encontra-se fundamentada nos documentos acostados aos autos da Representação e na legislação aplicável. ... “ (MS 24510. Relator: Min. Ellen Gracie. DJ 19-03-2004)
De ressaltar ainda o texto do artigo 25, que propugna a possibilidade do gestor propor ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, que fará coisa julgada e com eficácia para todos.
De clareza solar se constituir em mais uma reiterada proposição de afronta horizontal e vertical, uma vez que por disciplinar competência do Judiciário definida da Carta Política de 88. A Lei Maior preconiza, privativamente certas pessoas e entidades, a legitimidade de proposição de ação de constitucionalidade e apenas quanto a Leis e atos com natureza normativa.
Compete ao Supremo Tribunal Federal e excepcionalmente Tribunais de Justiça (Lei local, municipal ou estadual, contrariando Constituições dos Estados e DF) o poder dever de apreciar a compatibilidade em sede de controle concentrado.
Constituem prerrogativa e atribuições delineadas unicamente pela Constituição Federal à Independência funcional dos Julgadores administrativos e judiciais, livre convencimento motivado e no sistema de freios e contrapesos.
Até quando o PL dispõe sobre acordo do Poder Público, natureza de termo de ajuste de conduta, preconiza que o acordo excluirá a responsabilidade pessoal do agente público por vício do compromisso à exceção em casos de enriquecimento ou crime.
Por conseguinte, institui atribuições novamente de modo indevido ao Judiciário, matéria regulada pela Constituição Federal, bem como afronta a independência desse Poder, vez que determina previamente a imunidade ao gestor, também ofendendo prerrogativas e atribuições privativas dos Julgadores.
Nesse sentido, impende se reportar à jurisprudência uníssona do STF a respeito da impossibilidade de restringir atividades de julgamento, também aplicáveis aos Tribunais de Contas por foca do artigo 73º, §3º, combinado com 75 da Lei Maior:
“Surgem constitucionais as previsões, contidas nos arts. 7º, parágrafo único, e 23 da LC 64/1990, sobre a atuação do juiz no que é autorizado a formar convicção atendendo a fatos e circunstâncias constantes do processo, ainda que não arguidos pelas partes, e a considerar fatos públicos e notórios, indícios e presunções, mesmo que não indicados ou alegados pelos envolvidos no conflito de interesses.” (ADI 1.082, Rel. Min. Marco Aurélio, j. 22-5-2014, P, DJE de 30-10-2014.)
“Compete ao Judiciário, no conflito de interesses, fazer valer a vontade concreta da lei (...). Para isso, há de interpretar a lei ou a Constituição, sem que isso implique ofensa ao princípio da independência e harmonia dos Poderes.” (AI 410.096 AgR, rel. min. Roberto Barroso, DJE de 6-5-2015.)
Verifica-se ainda a impensável ofensa à Independência funcional dos Julgadores administrativos e judiciais, livre convencimento motiva e sistema de freios e contrapesos, entre outros, também no texto do Artigo 28 do PL: exclui responsabilidade culposa “lato sensu”, criando imunidade aos gestores. Fomentará, acaso aprovado, a impunidade sistêmica e histórica à medida que muito difícil a comprovação de dolo (Órgãos de controle ainda mais por não disporem de competência para determinar quebras de sigilos, busca e apreensão, entre outras) e de difícil prática o erro grosseiro, novo conceito estatuído pelo PL 7.748.
Há consolidado entendimento que o regime republicando, conforme texto magoa, artigo 70, Parágrafo Único, preconiza o dever do gestor comprovar a aplicação regular dos valores do povo. Isso porque gere recursos da coletividade. Do contrário, caberá reparar o prejuízo se configurada uma atuação culposa que prejudicou o Erário. Vide mais essa proposição ao arrepio da Carta Magna:
Não obstante os acintes à Carta Magna, ainda cria tutela para gestores infratores ao prever, Artigo 28, § 2º, que a defesa administrativa e judicial será arcada pelo Poder Público. Veja-se que para tais gastos nem se há sem provisão de recursos, o que contrária não só a economicidade, como também a gestão fiscal equilibrada das contas públicas, vez que gestor têm o poder dever de atuarem de acordo com a ordem legal. Do contrário, devem arcar com o ônus, e não os cidadãos, de apresentarem defesa.
“Não é possível, efetivamente, entender que as decisões das Cortes de Contas, no exercício de sua competência constitucional, não possuam teor de coercibilidade. Possibilidade de impor sanções, assim como a lei disciplinar. Certo está que, na hipótese de abuso no exercício dessas atribuições por agentes da fiscalização dos tribunais de contas, ou de desvio de poder, os sujeitos passivos das sanções impostas possuem os meios que a ordem jurídica contém para o controle de legalidade dos atos de quem quer que exerça parcela de autoridade ou poder, garantidos, a tanto, ampla defesa e o devido processo legal.” (RE 190.985. Relator Min. Néri da Silveira, Plenário. DJ de 24-8-2001)
“1. De acordo com a jurisprudência do STF, "o Tribunal de Contas da União, embora não tenha poder para anular ou sustar contratos administrativos, tem competência, conforme o art. 71, IX, para determinar à autoridade administrativa que promova a anulação do contrato e, se for o caso, da licitação de que se originou" (MS 23.550, redator do acórdão o Ministro Sepúlveda Pertence, Plenário, DJ de 31/10/01). Assim, perfeitamente legal a atuação da Corte de Contas ao assinar prazo ao Ministério dos Transportes para garantir o exato cumprimento da lei. 2. Contrato de concessão anulado em decorrência de vícios insanáveis praticados no procedimento licitatório. Atos que não podem ser convalidados pela Administração Federal. Não pode subsistir sub-rogação se o contrato do qual derivou é inexistente. ...” (MS 26.000. Relator Min. Dias Toffoli. DJe 14-11-2012)
Portanto, o PL 7.448/2017 eivado de graves ofensas diretas ao regime republicano, separação de poderes, freios e contrapesos, independência do Judiciário e Órgãos de controle, entre outras máculas. Não visou a firmar novas balizas interpretativas para a aplicação d o direito, mas sim restringir a forma e sentido que os Julgadores, de âmbito administrativo ou judicial, podem atuar.
Assim, há múltiplas inconstitucionalidades horizontais, regula matéria em que a Constituição Federal dispõe, e vertical, contraria preceitos com eficácia plena da Carta Magna, artigos 1º, 2º, 5º, LIV e LV, 31, 71, 74, 93 a 126, 169, entre outros.
Enseja-se nesse espectro que a sociedade, cidadãos e notadamente entidades com legitimidade como Procuradoria Geral da República, Partidos Políticos e Sindicatos e Associações de classe, tanto alertar a sociedade sobre as máculas graves de disposições dessa possível Lei e atuar, se possível de forma coordenada, a fim de que seja rejeitado o multicitado Projeto ainda no Parlamento; quanto, acaso aprovado, acionar o STF, com pedido de liminar suspendendo efeitos, a fim de que seja declarada a inconstitucionalidade da lei.