UM CONFLITO ENTRE O ESTADO MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL

14/04/2018 às 09:34
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O ARTIGO RETRATA PRESENTE CONFLITO ENTRE ESTADO MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL ENVOLVENDO MIGRAÇÃO DE VENEZUELANOS.

UM CONFLITO ENTRE O ESTADO MEMBRO E A UNIÃO FEDERAL

Rogério Tadeu Romano

I - A COMPETÊNCIA ORIGINÁRIA DO STF

Segundo o site do STF de 13 de abril de 2018, a governadora de Roraima, Suely Campos, ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF a Ação Civil Originária (ACO) 3121, com pedido de tutela provisória, para pedir à União que feche temporariamente a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, impedindo a entrada desordenada de cidadãos venezuelanos no estado. Na ação, distribuída para a ministra Rosa Weber, a governadora afirma que os mais de 50 mil refugiados que hoje se encontram na capital, Boa Vista, têm levado o estado a suportar “incalculável impacto econômico”.

Além do fechamento da fronteira, a governadora pede a concessão de tutela de urgência para que a União promova medidas administrativas na área de controle policial, saúde e vigilância sanitária. Pede, ainda, que a União efetue a imediata transferência de recursos adicionais para suprir os custos suportados pelo estado, especialmente com saúde e educação dos venezuelanos já estabelecidos em Roraima. Alternativamente, pede que a União seja obrigada a limitar o ingresso de refugiados do país vizinho.

Para a autora, ao deixar de agir em sua área de competência e de promover medidas de controle policial e nas áreas de saúde e vigilância sanitária, a União tem mantido um estado crítico de coisa inconstitucional e incorrido em violações sistêmicas aos direitos humanos. Suely Campos também aponta que a omissão da União no controle e na atuação administrativa na área fronteiriça, sem repasse de qualquer recurso ao Estado de Roraima, caracteriza descumprimento dos deveres federativos determinados pela Constituição Federal.

II - O CONFLITO FEDERATIVO 

 Trata-se ao que parece de um conflito federativo.

. Nem toda ação envolvendo a União e o estado-membro desencadeia automaticamente sua competência originária. Para a Corte, o alcance da regra prevista no art. 102, I, f, da CF restringe-se aos litígios com potencialidade ofensiva apta a vulnerar os valores que informam o princípio do pacto da Federação, ou seja, exige-se efetivo risco de abalo ao pacto federativo.

As hipóteses de competência originária da Corte devem ser interpretadas restritivamente, sob pena de se convolar a 

jurisdição excepcional em jurisdição ordinária, razão por que sua competência deve ficar limitada àquelas controvérsias, entre unidades federadas expressamente citadas, que gerem conflito federativo. Nesses casos, cabe ao STF dirimir a controvérsia, cumprindo seu dever de velar pela intangibilidade do vínculo federativo e de zelar pelo equilíbrio harmônico das relações políticas entre os entes federativos.

Observem-se os posicionamentos do STF na matéria:

ACO AgR n.º 570)

A competência constitucional originária do STF para a ação prevista no art. 102, I, f, da CF demanda a existência de situação de conflito capaz de abalar o pacto federativo. In casu, verifica-se que o objeto do pedido revela interesse eminentemente patrimonial, dissociado de qualquer questão capaz de por em risco o princípio federativo, não se justificando a competência originária do STF.

(ACO n.º 659)

Nos termos da jurisprudência do STF, o alcance da regra de competência originária do STF prevista no art. 102, inciso I, alínea f, da CF possui caráter de absoluta excepcionalidade, restringindo-se aos litígios com potencialidade ofensiva “apta a vulnerar os valores que informam o princípio fundamental que rege, em nosso ordenamento jurídico, o pacto da Federação”. ACO n.º 1.048–QO, relator o ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJ de 31/10/2007. 
2 Distinção entre “conflito entre entes federativos” e “conflito federativo”. A jurisprudência da Corte 
firmou-se no sentido de que a simples presença da União e de estado federado em polos distintos da ação não é suficiente para instaurar automaticamente a competência originária do STF inserta no art. 102, inciso I, alínea f, da CF.

(ACO 2430)

A competência constitucional originária do STF para a ação prevista no art. 102, I, f, da CF demanda a existência de situação de conflito capaz de abalar o pacto federativo.

(RE 821507)

A pretensão recursal contempla uma discussão de cunho essencialmente patrimonial, decorrente da relação tributária estabelecida entre a União e o Estado, circunstância incapaz de atentar contra os valores fundamentais que amparam o pacto federativo. A controvérsia in loco sobre o crédito tributário não importa, necessariamente, abalo ao federalismo fiscal. Agravo regimental a que se nega provimento.

(ACO 1091–AgR)

A competência do pretório excelso para processar e julgar causas que possam importar em conflito federativo exige efetivo risco de abalo ao pacto federativo, não se configurando quando a causa versa sobre questão meramente patrimonial, sem cunho institucional ou político.

No caso há uma questão política a resolver que foi objeto de jurisdicionalização ao STF.

O requerente fala que houve omissão por parte da União.

O presidente Michel Temer publicou no dia 16 de fevereiro de 2017 a MP 820 e os decretos 9.285 e 9.286. Em conjunto, os três atos tratam do tratamento urgente do governo federal para remediar a crise humanitária ocasionada pela entrada de mais de 40 mil imigrantes venezuelanos pela fronteira com o Estado de Roraima.

É sabido que a Venezuela vive crise humanitária intensa desde que o governo de Nicolas Maduro passou a controlar o abastecimento de víveres e produtos essenciais à sobrevivência cotidiana. Aliada à hiperinflação e às restrições às liberdades de expressão e outras garantias fundamentais, a situação tornou-se insustentável para milhares de venezuelanos. É preciso entender, nesse sentido, que esses migrantes saem da Venezuela forçadamente, pois, em condições normais, não teriam motivo para deixar sua pátria, suas famílias, suas casas, seus empregos, etc.

Daí porque muitos têm emigrado da República Bolivariana para países como Estados Unidos e Espanha e, principalmente, para os países vizinhos do Caribe e América do Sul, como Trinidad e Tobago, Colômbia, Panamá e Brasil, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR).

Se isto não bastasse, o governo de Roraima invade competência própria da União com relação a política de migração que já está disposta na Lei n. 13.445/2017, onde já se externa preocupação com relação ao sério problema.

Os decretos preveem a figura do acolhimento humanitário, diretriz disposta no art. 3º, IV, da lei de migração, o que possibilita, gratuitamente, a emissão do visto temporário e da autorização de residência para os imigrantes que se encontrem nessa situação.

Nesse sentido, a MP 820 previu ações de assistência emergencial para o acolhimento dessas pessoas em situação de vulnerabilidade decorrente do fluxo migratório provocado por crise humanitária e serviu para instituir quadro de legitimidade para a atuação política tanto da União, quanto dos Estados e municípios para a recepção dos imigrantes. Além disso, a medida criou o Comitê Federal de Assistência Emergencial (COFAE), órgão inter-ministerial para gerir as ações governamentais de emergência.

Já o decreto 9.285 serviu para reconhecer a situação de vulnerabilidade dos venezuelanos forçadamente deslocados no Brasil e o decreto 9.286 regulamentou a composição e a atuação do COFAE.

Provoca, em verdade, o estado de Roraima um verdadeiro conflito federativo entre ele e a União Federal, que tem competência para legislar sobre politica de fronteiras.

Observo que a matéria envolve política de fronteiras. Essa matéria é de conteúdo discricionário, na avaliação do mérito administrativo, à luz de oportunidade e conveniência da Administração, de forma exclusiva.

É competência da União:

No art. 8o., a Constituição Federal enumera a competência da União:

“Compete à União:

 I-             manter relações com Estados estrangeiros, e com eles celebrar tratados e convenções; participar de organizações internacionais;..”

 
          É a primeira das competências político-administrativas estabelecidas para a União, nos dezesseis primeiros incisos deste artigo. A competência da União nesta matéria decorre da soberania do Estado Federal (enquanto os Estados-membros são autônomos, não possuindo, assim, personalidade de Direito das Gentes.

 

II-          declarar guerra e fazer a paz;

 
        Ainda em decorrência da soberania, e pela necessidade de proteção do Estado (externamente).

III-       decretar o estado de sítio;


 
        Trata-se aqui da proteção interna; suspendem-se temporariamente certas garantias constitucionais, para possibilitar a normalização da vida do Estado.

IV-      organizar as forças armadas;


 

          Como instituição permanente, indispensável à defesa da Constituição e das leis, e com fundamento nos princípios da hierarquia e da disciplina.

V-         planejar e promover o desenvolvimento e a segurança nacionais; 


 
            Porque o Estado também precisa se proteger, e por mais democrático que seja, pode permitir todas as liberdades, salvo a de destruir o próprio Estado. A respeito da segurança nacional, o órgão máximo de assessoramento ao Presidente da República é o Conselho de Segurança Nacional. Desenvolvimento e Segurança são princípios fundamentais em nosso Direito Constitucional, tendentes, mesmo, pelo atual fortalecimento do Poder Federal, e neste, do Poder Executivo, a causarem a falência de determinados princípios federativos.

VI-      permitir, nos casos previstos em lei complementar, que forças estrangeiras transitem pelo território nacional, ou nele permaneçam temporariamente;´

A matéria de fronteiras envolve soberania nacional daí ser de competência da União consoante determina a Constituição Federal:

VIII-     organizar e manter a polícia federal com a finalidade de: 


 a)        executar os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras; 


 O artigo 21 da Constituição Federal, por sua vez, determina a competência internacional da União Federal para manter relações  com Estados estrangeiros e ainda assegurar a defesa nacional. Ora, isso não é competência, por certo, do Estado-membro, razão pela qual não poderá executar políticas de fronteiras. 

Por ser de absoluta discricionariedade da administração federal, há de se entender que "fechar a fronteira com a Venezuela" não é assunto do Poder Judiciário, mas do Poder Executivo, que entende que tal decisão é incogitável, por ser de máxima razoabilidade em razão de suas relações com o Estado estrangeiro e ainda de se tratar de matéria envolvendo direitos humanos. 

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Discricionariedade é a qualidade da competência cometida por lei à Administração Pública para definir, abstrata e concretamente, o resíduo de legitimidade necessário para integrar a definição de elementos essenciais à execução, diretamente referido a um interesse público específico. 

Como ensinou Cino Vitta (Nozione deglit atti admministrativi, 1906, IV), pelo exercício da discricionariedade atende-se, simultaneamente, à lei, pela fidelidade a seus comandos, e ao interesse público diretamente apercebido, pela sua concreação individuada, sem solução de continuidade e sem excepcionalidade derrogatória da legitimidade ou de legalidade, pois a lei é o interesse público cristalizado, como o interesse público é a razão de ser da lei. 

Assim, admite-se que a Administração, ao agir, tem por finalidade o interesse público especificado na lei, um elemento reconhecidamente vinculado. 

Na lição de Diogo de Figueiredo Moreira Netto(Legitimidade e discricionariedade, pág. 27), a discricionariedade é uma competência e, portanto, um poder vinculado à finalidade que dita a sua existência. 

Há, pois, nítida conexão entre a discricionariedade e o interesse público. Isso porque a discricionariedade não é livre, tendo um limite, que é a lei e a razoabilidade. 

Para a Administração, persiste o dever de legalidade e de boa administração. 

Assim deve ser exercida a discricionariedade administrativa. 

O mérito, por sua vez, é o resultado do exercício regular da discricionariedade. 

Para Seabra Fagundes(O controle dos atos administrativos pelo poder judiciário, 1941) o mérito é insindicável. 

A discricionariedade atua como a competência específica para valorar corretamente o motivo dentro dos limites da lei e para escolher acertadamente o objeto, dentro dos limites da lei. 

Tudo isso nos leva à conclusão óbvia de que o direito administrativo tem, na inveracidade e na impossibilidade, rigorosos limites à discricionariedade. Com efeito, um ato do Poder Público que esteja lastreado no inexistente, no falso, no equivocado, no impreciso e no duvidoso, não está, certamente, seguramente voltado à satisfação de um interesse público. 

Sob o padrão da realidade, os comandos da Administração, sejam abstratos ou concretos, devem ter sempre condições objetivas de serem efetivamente cumpridos em favor da sociedade. 

Deve a Administração ser vocacionada para evitar o perigo da violação do principio da realidade e da desmoralização da ordem jurídica pela banalização da ineficiência e a vulgarização do descumprimento, além do pesado ônus do ridículo. 

Os elementos do ato administrativo, motivo e objeto, têm uma relação íntima com a finalidade do ato: a razoabilidade como um limite à discrição, na avaliação dos motivos, exigindo que estes sejam adequáveis, compatíveis e proporcionais, de modo a que o ato atenda a uma finalidade pública específica. 

A razoabilidade, na valoração dos motivos e na escolha do objeto, é, em última análise, o caminho seguro para se ter certeza de que se garantiu a legitimidade da ação administrativa. 

O motivo é o pressuposto de fato e de direito do ato administrativo. 

A doutrina entende que há cinco limites de oportunidade à discricionariedade: existência(grave inoportunidade por inexistência do motivo); suficiência(grave inoportunidade por insuficiência do motivo); adequabilidade(grave inoportunidade por inadequabilidade de motivo); compatibilidade(grave inoportunidade por incompatibilidade de motivo); proporcionalidade(grave inoportunidade por desproporcionalidade do motivo), dentro de um controle de realidade e de razoabilidade. 

Quanto ao objeto do ato administrativo, resultado jurídico visado, há uma conveniência(escolha administrativa), envolvendo: possibilidade (grave inconveniência por impossibilidade do objeto); conformidade(grave inconveniência por desconformidade de objeto) e eficiência(grave inconveniência por ineficiência do objeto), ainda dentro dos princípios técnicos de controle de realidade e razoabilidade. 

Com essas observações, dir-se-á que o Judiciário pode anular atos administrativos discricionários, fundados na inexistência de motivo, insuficiência de motivo, inadequabilidade de motivo, incompatibilidade de motivo, desproporcionalidade de motivo, impossibilidade de objeto, desconformidade de objeto e insuficiência de objeto, apenas controlando os limites objetivos do ato discricionário. 

O Brasil, dentro de sua soberania, em matéria de competência exclusiva da União Federal, por seu Poder Executivo, adota apenas, sanções diplomáticas contra a Venezuela, como a iniciativa de suspender aquele país do Mercosul enquanto aquele país continuar com uma situação que põe contrária a direitos humanitários. 

A ação do governo do Estado de Roraima de pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) o fechamento da fronteira com a Venezuela vai contra o direito universal à liberdade de circulação e ao direito à vida, uma vez que esse fluxo migratório está relacionado, principalmente, à falta de alimentos, medicamentos e insumos básicos no país de origem. Deveria o Brasil, como resposta, ser solidário ao seu  vizinho latino-americano, mesmo porque a Venezuela foi um dos países que mais recebeu refugiados na história recente do continente.

Não podemos associar o aumento da criminalidade ao fluxo de venezuelanos, porque isso é criminalizar a migração, o que até vai contra a nova Lei de Migração, que estabelece a acolhida humanitária como princípio.

A saída não é proibir a entrada dos venezuelanos, mas, sim, criar uma política migratória que divida a responsabilidade de gestão dos fluxos migratórios com garantia de respeito aos direitos humanos.

Observe-se, portanto, que se precipita o estado de Roraima no ajuizamento da noticiada ação civil originária. A União Federal, conforme se lê, tem plena competência em matéria de fronteiras, editou normas e atos para imigrantes que tenham acesso a seu território e não se omitiu.

Há  evidente falta de interesse de agir, por falta de necessidade, diante dos fatos, de arguir a matéria perante a Corte Suprema, razão pela qual a ação civil originária deve ser extinta sem julgamento do mérito. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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