UMA HIPÓTESE DE CONCURSO MATERIAL DE CRIMES E NÃO DE CONCURSO APARENTE DE NORMAS

17/04/2018 às 11:23
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O ARTIGO TRAZ À DISCUSSÃO A IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO CONCURSO APARENTE DE NORMAS NAS HIPÓTESES DOS ARTIGOS 303 E 306 DO CÓDIGO NACIONAL DE TRÂNSITO.

UMA HIPÓTESE DE CONCURSO MATERIAL DE CRIMES E NÃO DE CONCURSO APARENTE DE NORMAS

Rogério Tadeu Romano

Pertence ao capítulo da tipicidade o exame do problema do conflito aparente de normas. Quando a um mesmo fato supostamente podem se aplicadas normas diferentes, da mesma ou de diversas leis penais, surge o que é denominado conflito aparente de normas. Dois são os seus pressupostos:

  1. A unidade de fato;
  2. A pluralidade de normas que(aparentemente) identificam o mesmo fato delituoso.

No caso da análise revela-se de especial importância o princípio da consunação(ou absorção) que consiste na anulação da norma que já está contida em outra: ou seja, na aplicação da lei de âmbito maior, mais gravemente apenada, desprezando-se a outra, de âmbito menos. Pode ocorrer que o tipo consumido seja meio de um crime maior. É possível que o crime menor seja componente de outro, como nos casos de crimes complexos.

Veja-se o caso das lesões corporais no trânsito e o crime previsto no artigo 306 do CTN:

O artigo 306 do CTB permanece com a redação que lhe foi dada pela lei 12.760/12:

Art. 306. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.

Logo, não tendo o preceito secundário (pena) do art. 306 do CTB sofrido qualquer alteração, continua sendo possível: (i) à autoridade policial arbitrar fiança, eis que a pena máxima não ultrapassa quatro anos (art. 322, CPP); (ii) a suspensão condicional do processo, já que a pena mínima cominada não ultrapassa um ano (art. 89 da lei 9.099/95); (iii) em caso de condenação, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, pois tal benefício se dá quando a pena máxima aplicada for não superior a quatro anos e o crime não tiver sido cometido com violência ou grave ameaça à pessoa (art. 44 do Código Penal); (iv) ainda, em caso de condenação, será possível o cumprimento da pena no regime aberto, desde que a pena se mantenha dentro do patamar máximo de quatro anos, não sendo o réu reincidente (art. 33, §2º, "c", CP).

Na matéria já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

A embriaguez do agente condutor do automóvel, sem o acréscimo de outras peculiaridades que ultrapassem a violação do dever de cuidado objetivo, inerente ao tipo culposo, não pode servir de premissa bastante para a afirmação do dolo eventual. Conquanto tal circunstância contribua para a análise do elemento anímico que move o agente, não se ajusta ao melhor direito presumir o consentimento do agente com o resultado danoso apenas porque, sem outra peculiaridade excedente ao seu agir ilícito, estaria sob efeito de bebida alcoólica ao colidir seu veículo contra o automóvel conduzido pela vítima. (REsp. 1.689.173 - SC (2017/0199915-2). Rel. Ministro Rogério Schietti Cruz).

As alterações trazidas pela lei 13.546/17 cumprem, a um só tempo, dois objetivos: (i) corrigem a lacuna legislativa, deixando mais claras as hipóteses de homicídio culposo e lesão corporal culposa no trânsito, após ingestão de bebida alcóolica, vinculando um resultado mais gravoso quando o motorista tiver, em razão do álcool ou outra substância, com sua capacidade psicomotora alterada, sendo esta condição, e não a mera negligência, imprudência ou imperícia, que justifica uma pena maior ao infrator. Portanto, não bastará o teste do bafômetro para a incidência da qualificadora, sendo imprescindível a prova testemunhal e filmagens, principalmente equipando a polícia para que filmem o condutor quando atenderem às ocorrências.

Em importante análise sobre a matéria Pedro Evandro de Vicente Rufato(Embriaguez ao volante e lesão corporal culposa na direção do veículo automotor – concurso material de crimes), publicado no Ius Navigandi, trouxe à discussão artigo de Marcellus Polastri Lima, Procurador de Justiça do Rio do Rio de Janeiro(Crimes de trânsito, Aspectos Penais e Processuais, Editora Lumen Iuris, 2005, pág. 200 a 201), quando disse:

“No que tange ao concurso de crimes, entendemos que cometido um crime de dano, ou seja, no caso dos crimes culposos de trânsito de lesões corporais e homicídio, o delito do art. 306 restará absorvido. Para nós, a embriaguez no caso restaria inserida no contexto da conduta culposa, só podendo ser levada em consideração como circunstância desfavorável ao agente na aplicação da pena”(grifo nosso).

Disse, para tanto, Pedro Evandro de Vicente Rufato(obra citada):

No entanto, em que pese o entendimento acima esposado, a regra do concurso material de crimes deve prevalecer, já que mais consentânea com a realidade e com os princípios jurídicos que norteiam a matéria.

Senão vejamos.

Como primeiro e principal argumento, deve-se ter em conta que os delitos de lesão corporal culposa na direção de veículo automotor e embriaguez ao volante tutelam bens jurídicos distintos. O primeiro visa a proteção da integridade física do ser humano, ao passo que o segundo tem como objeto jurídico a segurança no trânsito.

Outro fator inolvidável na análise da questão posta é o momento de consumação dos delitos. O delito previsto no artigo 306 da Lei n.º 9.503/97 se consuma no exato momento em que o agente conduz o veículo com a capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool, independentemente de qualquer outro resultado e/ou finalidade específica – trata-se de crime de mera conduta, de perigo abstrato. Já o delito previsto no artigo 303 da Lei n.º 9.503/97 se consuma no momento em que ocorre lesão à vítima – trata-se de crime material.”

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Para tanto, tem-se:

EMBRIAGUEZ AO VOLANTE. LESÃO CORPORAL CULPOSA NO TRÂNSITO. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. Estando-se diante de crimes autônomos que tutelam bens jurídicos distintos e se consumam em momentos diversos, não há cogitar da absorção do delito de embriaguez ao volante pelo de lesões corporais culposas decorrentes de acidente de trânsito. APELO DESPROVIDO. (TJRS, Apelação Crime n.º 70059513267, 1ª Câmara Criminal, Relator: Honório Gonçalves da Silva Neto, Julgado em 02/07/2014, extraído do site www.tjrs.jus.br) (grifo nosso)

Recentemente o Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 1.629.107, entendeu que consideradas infrações penais autônomas, os delitos de lesão corporal culposa na direção de veículo e de embriaguez ao volante não admitem a aplicação do princípio da consunção a fim de permitir a absorção do segundo crime pelo primeiro, já que os tipos penais tutelam bens jurídicos distintos.

O entendimento foi aplicado pela Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ao rejeitar pedido de absorção do crime de condução de veículo sob o efeito de álcool (artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro) pelo delito de lesão corporal na direção de veículo (artigo 303 do CTB) em caso de atropelamento ocorrido no Distrito Federal. A decisão foi unânime.

Realmente é inviável o reconhecimento da consunção do delito previsto no artigo 306 do CTB(embriaguez ao volante), pelo seu artigo303(lesão corporal culposa na direção do veículo automotor), quando um não constitui meio para a execução do outro, mas evidentes infrações penais autônomas, que tutelam bens jurídicos distintos.

Como lembrou o ministro Ribeiro Dantas, no julgamento daquele Recurso Especial,  os crimes em tela "possuem momentos consumativos também distintos, na medida em que o art. 306 do Código de Trânsito Brasileiro (embriaguez ao volante) é de perigo abstrato, de mera conduta, e se consuma no momento em que o agente passa a conduzir o veículo automotor, 'estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência', nos termos da Lei n. 11.705/1998 ou 'com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência', com redação dada pela Lei n. 12.760 de 2012. Já o crime tipificado no art. 303 da Lei n. 9.503/1997 é de dano, sendo imprescindível a existência de lesão corporal culposa para a consumação' (REsp n. 1.426.047, Ministra Laurita Vaz, Quinta Turma, DJe 8/9/2014).

Observe-se a jurisprudência já editada pelo STJ:

"AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. DIREITO PENAL. DELITO DE TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. CONSUNÇÃO. INCABIMENTO. CRIMES AUTÔNOMOS. PRECEDENTES. 1. Os crimes de embriaguez ao volante e o de lesão corporal culposa em direção de veículo automotor são autônomos e o primeiro não é meio normal, nem fase de preparação ou execução para o cometimento do segundo, não havendo falar em aplicação do princípio da consunção. Precedentes. 2. Agravo regimental improvido". (AgRg no REsp 1688517/MS, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 7/12/2017, DJe 15/12/2017). "AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PENAL. EMBRIAGUEZ AO VOLANTE E LESÃO CORPORAL CULPOSA NA DIREÇÃO DE VEÍCULO AUTOMOTOR. PRINCÍPIO DA CONSUNÇÃO. INAPLICABILIDADE. DELITOS AUTÔNOMOS. PRECEDENTES. 1. De acordo com a jurisprudência deste Tribunal Superior, os crimes de embriaguez ao volante e o de lesão corporal culposa em direção de veículo automotor são autônomos, não sendo o primeiro meio necessário, nem fase de preparação ou execução para o cometimento do segundo. Portanto, não há como reconhecer a consunção pretendida pelo agravante. 2. Agravo regimental improvido". (AgRg no REsp 1626641/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 1/12/2016, DJe 14/12/2016).

Realmente nesse contexto, é um contrassenso admitir que o delito de lesão corporal no trânsito (artigo 303 da Lei n.º 9.503/97) absorve o delito de embriaguez ao volante (artigo 306 da Lei n.º 9.503/97). Assim, se, em estado de embriaguez na condução de veículo automotor, o agente se envolve em acidente e provoca lesão corporal culposa, a hipótese encerra situação de concurso material de crimes, nos termos do artigo 69 do Código Penal.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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