A Hipocrisia da Criminalização do Aborto

07/05/2018 às 12:00
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Enquanto cerca de 800.000 mulheres interrompem a gravidez todos os anos, milhares de famílias aguardam nas intermináveis filas de adoção em busca da realização do sonho de ter um filho: este é o retrato de um país insuflado de contradições chamado Brasil.

Ao criminalizar ambas as práticas, o aborto e a adoção direta, o Estado brasileiro, em uma absurda soma de ignorância e autoritarismo, gasta mais de 140 milhões de reais por ano em internações no SUS por conta de complicações médicas decorrentes de abortos clandestinos, ao mesmo tempo em que frustra casais que se dividem entre gastar milhares de reais em clínicas de fertilização humana ou em morosos, burocráticos e mesmo cruéis procedimentos de adoção em que há muito mais candidatos do que crianças aptas para tanto.

É cediço concluir que a construção de uma sociedade que se pretende verdadeiramente democrática não pode simplesmente "criminalizar" um desejo legítimo de não ter filhos, até porque a singela proibição não possui a plena efetividade de evitar a prática, como bem demonstram os assustadores números envolvidos: apenas entre 2004 e 2013, cerca de 9 milhões de mulheres interromperam a gestação no Brasil, conforme dados da Organização Pan-Americana de Saúde.

Vale ressaltar que a atual proibição penaliza, sobretudo, a mulher de baixa renda, que realiza o procedimento em condições sanitárias péssimas, colocando, em última análise, sua vida e sua saúde em risco.

A própria Suprema Corte, em inédita e recente decisão, da relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, que tem se notabilizado pelo seu extraordinário amadurecimento humanístico, entendeu que a prática do aborto, até o terceiro mês de gestação, não é crime, a exemplo de praticamente todas as legislações dos países democráticos desenvolvido, - como os EUA, a Alemanha, o Reino Unido, o Canadá a França, a Itália, a Espanha, a Holanda, a Austrália e Portugal - , na exata medida que viola os direitos fundamentais da mulher, além de afrontar o princípio da proporcionalidade.

Polêmicas à parte, há de se reconhecer que é plenamente possível conciliar o reconhecido direito da mulher em não ter filhos com o imperioso direito à preservação da vida do nascituro, o que jamais será alcançado com a simples criminalização da prática do aborto (a despeito de mais de 70 anos de vigência do art. 124 do CP).

Destarte, o caminho mais seguro para resolver, em definitivo, a questão do aborto em nosso país passa, necessariamente, por afastar a nefasta ingerência do Estado,  - com seus permanentes vícios criminalizadores de condutas - , permitindo que casais interessados em ter filhos possam, por meio de instituições e/ou organizações não governamentais, simplesmente "adotar" o nascituro diretamente das mulheres dispostas a abortar, financiando todos os custos envolvidos em uma gravidez, demovendo-as, sem ineficazes ameaças de punição, deste desejo que, no íntimo, não é plenamente verdadeiro, considerando que nenhuma mulher deseja realmente encerrar a vida fetal (ou mesmo embrionária), mas sim apenas exercer o legítimo direito de não ter filhos.

Sobre o autor
Reis Friede

Desembargador Federal, Presidente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (biênio 2019/21), Mestre e Doutor em Direito e Professor Adjunto da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Graduação em Engenharia pela Universidade Santa Úrsula (1991), graduação em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), graduação em Administração - Faculdades Integradas Cândido Mendes - Ipanema (1991), graduação em Direito pela Faculdade de Direito Cândido Mendes - Ipanema (1982), graduação em Arquitetura pela Universidade Santa Úrsula (1982), mestrado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1988), mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1989) e doutorado em Direito Político pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1991). Atualmente é professor permanente do Programa de Mestrado em Desenvolvimento Local - MDL do Centro Universitário Augusto Motta - UNISUAM, professor conferencista da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, professor emérito da Escola de Comando e Estado Maior do Exército. Diretor do Centro Cultural da Justiça Federal (CCJF). Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal da 2ª Região -, atuando principalmente nos seguintes temas: estado, soberania, defesa, CT&I, processo e meio ambiente.

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