Intervenção judicial na recusa de tratamento médico

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O presente artigo aborda os limites do Poder Judiciário na recusa a tratamento médico, bem como,a proteção da autonomia de vontade do paciente, discutindo o dever do médico e a sua responsabilidade. Abordando a medicina em confronto ao direito.

I - INTRODUÇÃO

Hoje em dia, uma das grandes questões que traz muitos conflitos para a sociedade, é até que ponto, o paciente pode recusar-se a submeter-se a tratamento médico, pois, em tese há uma autonomia de escolha, que o mesmo, por livre e espontânea vontade, seja por convicções sociais ou religiosas pode rejeitar tratamento que lhe é indicado, o que gera grande responsabilidade para os médicos, que ao mesmo tempo devem zelar pela vida de seus pacientes sob pena de responsabilidade, e até que ponto podem ultrapassar tal autonomia e forçar o tratamento invocando tal zelo, também gerando problemas legais para os hospitais, que podem sofrer indenização por negligência se houver o óbito ou sequelas para aquele paciente que necessita do tratamento médico, portanto, até que ponto pode o Judiciário interferir, e isentar os profissionais da saúde e também os estabelecimentos de saúde de qualquer responsabilidade caso haja algum problema com esse indivíduo frente a recusa.

Com a evolução da medicina, os tratamentos médicos trouxeram maior conforto a pacientes que sofrem de doenças que não podem ser curadas, mas que hoje em dia com tratamento médico compatível, são eficientes para garantir qualidade e prolongamento da vida destes, no entanto, são tratamentos contínuos e alguns imediatos que podem decidir entre a vida e a morte, e também pacientes com doenças que tem cura mas que não aceitam o tratamento compatível para serem curados em razão de suas convicções.

Porém, por trás de toda essa questão, deve haver o respeito, tanto do Judiciário, quanto dos profissionais da saúde, com relação ao paciente, que é dotado de direitos de personalidade.

O paciente, não deixa de ser sujeito de direito, pois possui igualdade de deveres e direitos, não podendo ser discriminado em razão de raça, sexo, cor, estado de saúde, nacionalidade ou religião.

Ao afetar essa autonomia, pode acabar-se violando a dignidade da pessoa humana, princípio este que não se condiciona a nenhum fator externo, bastando ser humano.

II – O DIREITO E A MEDICINA

A medicina tem evoluído ao longo dos anos, e muitas vezes o Direito não consegue acompanhar essa evolução, o que gera lacunas em certos momentos onde deveria tutelar, de fato, a medicina ao evoluir trouxe alivio aqueles que são acometidos por algum tipo de doença, pois sabem que podem receber tratamento compatível e que irá lhes fornecer cura ou se não oferecer a cura, irá lhes garantir qualidade de vida, porém, tal evolução também gerou novos conflitos jurídicos.

Por vezes, esses conflitos acabam por esbarrar em direitos fundamentais dos seres humanos, porém, esses sempre devem prevalecer, pois somos um Estado Constitucional, e este se caracteriza por ser um Estado Democrático e de Direito, no qual o poder deve organizar-se em termos democráticos e o seu poder político deriva do poder dos cidadãos.

Assim, o Estado Constitucional se caracteriza pela Dignidade da Pessoa Humana, o que significa que ele é um direito público e ao mesmo tempo um encargo constitucional do Estado, tal princípio é reconhecido no inciso III do artigo 1°, da Constituição Federal, de 1988.

Ela concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas do Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feita limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto humanos.¹

No mais, a medicina está posta para ajudar e ao mesmo tempo deve respeitar tais preceitos, que são direitos fundamentais, e englobam direitos humanos universais e os direitos nacionais dos cidadãos, que protegem os indivíduos.

¹ Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, Ed. Atlas, São Paulo, 2005, 17° edição, p. 16, item 7.

III. DIREITO À VIDA

         

O Direito à vida deve ser interpretado em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, ou seja, o que a Constituição garante é o direito à vida digna, com todos os seus desdobramentos.

Ele é garantido constitucionalmente no art. 5°, caput da Constituição Federal de 1988, não apenas é Direito de existir biologicamente, mas de ter dignidade, pautada na vida com autonomia e liberdade.

Desta forma, quando um paciente procura um médico ou hospital, optando por qual tratamento irá receber, ele está exercendo seu direito à vida em sentido pleno, pois está cuidando de sua vida biológica ao buscar tratamentos médicos, e assegurando seu direito a vida quando opta pelo tratamento que lhe parecer conveniente de acordo com suas convicções morais e religiosas.

Não podendo se argumentar que a recusa a específico tratamento médico gera um conflito fundamental, entre o direito a vida e o direito a autonomia de vontade, pois o paciente é dotado de seu direito à liberdade religiosa e liberdade de pensamento, devendo estes serem respeitados pois, evidenciam o exercício de seus direitos.

III. I – O Direito a autonomia da vontade do paciente

Os direitos da personalidade estão reconhecidos no inciso X, do artigo 5° da Constituição Federal de 1988:

“São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

Os direitos da personalidade são as faculdades jurídicas cujo objeto são os diversos aspectos da própria pessoa do sujeito, bem assim as suas emanações e prolongamentos.²

É paciente é sujeito de direito, independentemente de seu estado clínico, tendo igualdade de direitos e deveres, não podendo ser discriminado em razão de idade, cor, sexo, estado de saúde, nacionalidade ou religião.

O artigo 15 do Código Civil Brasileiro entende que Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.

Deve-se respeitar a autonomia da vontade do paciente, o que é preconizado pelo dispositivo acima citado, pois ele assegura a pessoa humana a prerrogativa da recusa a submeter-se a um tratamento perigoso, se for isso o que ele quiser.

Esse artigo, visa a preservação da integridade do corpo humano, diante das situações em que um tratamento médico necessário a longo prazo para o restabelecimento do enfermo possa colocar em risco sua própria vida.³

².Álvaro Vilaça. O direito Civil na Constituição, Lex Editora, SP,2005, pp. 85. ³ Álvaro Vilaça e Gustavo Rene, Código Civil Comentado, Ed. Atlas, SP, Vol. I, pg. 60.

III. II – Escolha do tratamento médico

No Estado Democrático de Direito, a liberdade agrega uma dimensão positiva, não cabendo ao Estado apenas criar os direitos, mas ele deve também criar condições que possibilitem o cidadão de praticar seus direitos.

A escolha do tratamento médico, nada mais é, do que a expressão exteriorização da vontade do paciente, que se utiliza de sua autonomia para escolher, sendo que uma está ligada a outra.

Tal liberdade é um direito fundamental do ser humano que possui caráter universal e determinante no agir humano, sendo conceituada por David Hume como: “um poder de agir ou não agir, segundo as determinações da vontade, isto é, se escolhermos permanecer em repouso, podemos; mas se, escolhermos mover-nos, também podemos. Ora reconhece-se universalmente que esta liberdade incondicional encontra-se em todo homem que não esteja aprisionado ou acorrentado.” 4

Portanto, tal liberdade é assegurada na escolha ou recusa a tratamento médico.

4.David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, in Pensadores, SP, Nova Cultura, 1999, p.100.

IV- DEVER DO MÉDICO

O médico está cara a cara com essa situação, seu dever é zelar pela vida do paciente, e lhe oferecer o mais completo e eficaz tratamento médico.

Tendo o dever de informar corretamente seu paciente acerca dos tratamentos, seus efeitos, e seus riscos.

Cumpre ressaltar que a informação, primeiramente, é um direito fundamental, previsto no artigo 5º, inciso XIV da Constituição da República de 1988, em que: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. Por conseguinte, também no Código de Defesa do Consumidor Brasileiro de 1990.

Todavia, atualmente, doutrina e jurisprudência vêm entendendo que a relação médico e paciente é consumerista, aplicando-se o art. 14, §4º do CDC, levando em consideração que a classe médica encontra-se como profissionais liberais.

“Art. 14. do CDC. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.

[...] §4° A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa”.

Tal entendimento é mais condizente com a boa-fé nas relações contratuais e a vulnerabilidade, condição na qual o paciente geralmente se encontra, não só em relação à sua condição psicofísica, mas também devido à informação técnica que o profissional médico detém. Deste modo, para garantir a isonomia das partes em possível litígio, principalmente no caso de pedido de indenização, caberia ao médico provar que não agiu com culpa, seja com dolo ou culpa em sentido estrito, podendo-se aplicar o artigo 6º, inciso VIII do CDC:

“Art. 6º São direitos básicos do consumidor:

[...] VIII - a facilitação da defesa de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências;”

Portanto, obtêm-se o consentimento informado livre e esclarecido que justamente consiste na exposição pelo médico de todas as terapêuticas possíveis a que o paciente possa se submeter, informando-lhe os riscos e benefícios em linguagem acessível, para que o paciente livremente possa escolher se quer ou não se submeter aquele determinado tratamento. O consentimento informado deve ser, via de regra, escrito, para a segurança de ambas as partes.

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Assim assegura-se que a autonomia de vontade do paciente não será tolhida e será respeitada, após ele ter ciência de todas as informações necessárias.

O consentimento informado é, portanto, procedimento necessário para o exercício da liberdade, fundamental para o princípio da autodeterminação frente aos tratamentos médicos possíveis.

V- RESPONSABILIDADE

Inicialmente, convêm destacar que aqui iremos abranger a responsabilidade do Estado, dos médicos, dos Hospitais e Centros de Saúde frente à recusa do paciente ao tratamento médico.

Como já dito, o paciente tem liberdade para escolher tratamento médico, ou recusá-lo, porém o deverá fazer isso de forma escrita para que assegure a todos os envolvidos a eficácia da decisão, e para que não possam os entes aqui abrangidos sofrerem com a decisão informada do paciente, ou seja, o consentimento informado que é a expressa manifestação da escolha do paciente possui dupla eficácia se regularmente efetuado, ele vincula o médico ao tratamento escolhido pelo paciente e o responsabiliza se houver negligência, imprudência ou imperícia, e ao mesmo tempo o exime de responsabilidade caso haja recusa a tratamento médico e por essa razão aconteça algum problema com esse paciente.

O médico após ser eximido na recusa a submissão de tratamentos, estende-se até mesmo se sobrevier a morte do paciente, porém isso não significa que o paciente que se recuse a determinado tratamento deva ser abandonado a própria sorte, pois, respeitar a vontade do paciente não pode ser confundido com abandoná-lo.

Portanto, se algum hospital ou estabelecimento de saúde recusa-se a encaminhar o paciente ao atendimento médico porque este não assinou o termo de internação hospitalar ou alterou em alguns quesitos, manifestando sua discordância quanto a certos tratamentos, pode ser caracterizado como abusiva e será passível de responsabilização cível e até mesmo criminal.

Porém, se houve expressa recusa quanto a tratamento e o paciente foi constrangido a realização desse, isso será configurado como crime de constrangimento ilegal previsto no caput do artigo 146 do Código Penal.

Pois, segundo a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5°, inciso II, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”.

No entanto, há exceção no parágrafo 3°, inciso I, que exclui tal responsabilidade, quando “a intervenção médica ou cirúrgica, sem o consentimento do paciente ou do seu representante legal, se justificada por iminente perigo de vida”.

Há também exceção quando o paciente estiver inconsciente e não puder manifestar seu consentimento naquele momento e nenhum de seus parentes o fizer.

Mas mesmo essas duas exceções estão limitadas pela expressa vontade do paciente, ou seja, se anteriormente a estar em iminente perigo de vida ou estar inconsciente, ele já tinha manifestado sua vontade na recusa aquele tratamento médico, sua vontade deverá acima de tudo ser respeitada.

VI- INTERVENÇÃO JUDICIAL

O Poder Judiciário integra os três poderes do Estado, sendo sua função típica a jurisdicional, ou seja, “o Estado se substitui aos titulares dos interesses em conflito, para imparcialmente, buscar a pacificação do conflito que os envolve com justiça. Essa pacificação é feita mediante atuação da vontade do direito objetivo que rege o caso apresentado em concreto para ser solucionado; E o Estado desempenha essa função sempre mediante o processo, seja expressando imperativamente o preceito (através de uma sentença de mérito), seja realizando no mundo das coisas o que o preceito estabelece (através da execução forçada)”.

O poder judiciário não pode passar por cima da decisão do paciente, porque ai violaria sua autonomia, viola também a dignidade daquela pessoa que terá que sofrer as consequências do tratamento que não queria ser submetido.

Se o poder judiciário for confrontado, não poderá esquivar-se de decidir mas a decisão acima de tudo deve respeitar o paciente como indivíduo dotado de valores e crenças próprias que não podem ser questionadas ou ultrapassadas por decisão judicial, portanto, não há necessidade de intervenção judicial quando há recusa no tratamento médico, pode apenas ser utilizado para isentar os profissionais da saúde em caso da recusa causar prejuízo para o paciente, pois estes não podem arcar com decisões de terceiro, estando ali para ajudar da melhor forma possível respeitando os limites das escolhas, não podendo interferir na autonomia de seus pacientes.

5.Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo, pg. 129.

VII - CONCLUSÃO

Buscamos demonstrar os princípios da pessoa enquanto paciente, dos tratamentos médicos e dos profissionais da saúde. Para tal, primeiramente, trouxemos a tona como se relaciona o direito com a medicina e, após, delineamos o direito a vida.

No estudo da recusa a tratamento verificamos o quão complexo tal instituto é, marcado por diversos tipos e suas peculiaridades no tocante a cada paciente.

Verificamos, outrossim, que em virtude da importância da autonomia de vontade do paciente em no nosso ordenamento, as recusas devem ser respeitadas, não podendo haver intervenção judicial para que force o paciente a submeter-se a tratamentos.

.Por tudo, conclui-se que a enfermidade do paciente por mais grave que seja, não lhe retira o status de ser humano, e nem sua autonomia de agir com dignidade, pois esta deve ser preservada, devendo os médicos respeitá-la, de forma que o Judiciário só poderá garantir aos profissionais da saúde a isenção desse caso haja consequências na recusa de seus paciente, não podendo serem responsabilizados por isso, porém, nunca forçar por meio de decisão judicial o paciente de forma a violar sua autonomia de vontade.

VIII – BIBLIOGRAFIA

Antônio Carlos Araújo Cintra, Ada Pellegrini Grinover e Cândido Rangel Dinamarco, Teoria geral do processo.

David Hume, Investigação acerca do entendimento humano, in Pensadores, SP, Nova Cultura, 1999.

Álvaro Vilaça. O direito Civil na Constituição, Lex Editora, SP,2005.

Álvaro Vilaça e Gustavo Rene, Código Civil Comentado, Ed. Atlas, SP, Vol. I.

Alexandre de Moraes, Direito Constitucional, Ed. Atlas, São Paulo, 2005, 17° edição.

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: http://www.planalto.com.br. Acesso em: 20 out. 14.

BRASIL. Código Penal. Disponível em: http://www.planalto.com.br. Acesso em: 20 out. 14.

BRASIL. Código de Ética Médica. Disponível em: http://www.cfm.org.br. Acesso em: 20 out. 14.

Sobre a autora
Daniela Lugia Brigagão de Carvalho

Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial na Faculdade de Direito Damásio de Jesus – concluída em fevereiro de 2018. Graduação em Direito – concluída em dezembro de 2015. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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