É uma grande honra falar sobre a obra “O dever do Advogado” no evento das atividades interdisciplinares do Curso de Direito da UniEVANGÉLICA, ocorrido em maio de 2018. Primeiramente, ressalto a relevância de se inserir nos conteúdos jurídicos a literatura e leituras interdisciplinares para o fortalecimento e amadurecimento do conhecimento científico na área do Direito. O conhecimento interdisciplinar fortalece discursos, propicia a sofisticação do pensamento jurídico e possibilita uma melhor compreensão dos fenômenos na área do Direito.
De uma forma especial, o objeto desta leitura interdisciplinar é a obra “O dever do Advogado” de Ruy Barbosa, uma resposta a uma carta de um correligionário civilista escrita em outubro de 1911. Certamente uma de suas mais importantes obras. Considerado um polímata brasileiro, Ruy Barbosa se destacou como advogado, jurista, político, escritor, filólogo e um grande orador. Teve uma atuação brilhante na defesa do federalismo brasileiro, na abolição da escravatura[1] e na defesa de direitos fundamentais. Merece destaque sua breve atuação como Ministro da Fazenda em 1889, cuja gestão foi complicada considerando o contexto político e econômico da época, marcada pela crise econômica e encilhamento[2].
Neste estudo, poderíamos dedicar inúmeras páginas para discorrer sobre a biografia de Ruy Barbosa, a qual, de forma brilhante, já foi feita por João Mangabeira e Luiz Viana Filho. Entretanto, sua obra clássica e atemporal “O Dever do Advogado” anseia por leituras contemporâneas como esta, considerando que a mesma traz honrosas lições de ética profissional no exercício da advocacia. Trata-se de uma discussão de alta relevância no atual contexto político e jurídico do país.
A obra se refere à carta respondida por Ruy Barbosa à consulta de Evaristo de Morais, o qual com medo de agir contrariamente a suas posições partidárias e ideológicas busca em Ruy Barbosa orientações sobre como deveria proceder na defesa do Sr. Mendes Tavares, seu adversário e oponente político. A carta de Ruy Barbosa com as repostas às súplicas de Evaristo de Morais se refere a uma lição sobre a ética profissional no exercício da advocacia.
São importantes alguns comentários acerca do contexto político da época. Mendes Tavares foi um dos maiores apoiadores da campanha presidencial de Hermes da Fonseca. Do lado oposto, encontravam-se Evaristo de Morais e Ruy Barbosa em uma campanha civilista em que Ruy Barbosa concorreu como candidato à Presidência da República. Neste contexto de calorosas disputas políticas e ideológicas, Mendes Tavares recorreu a Evaristo de Morais, advogado e seu adversário político, solicitando-lhe que patrocinasse sua causa[3].
O Sr. Mendes Tavares fora acusado de cometer homicídio contra sua esposa por motivo de adultério. Mendes perdeu o apoio dos seus correligionários, recebendo negativas de outros advogados que, anteriormente, posicionavam-se como seus aliados políticos.
É neste contexto que, com grande receio de aceitar o patrocínio da causa imaginando que poderia cometer uma incorreção partidária, Evaristo de Morais encaminhou uma a carta a seu “venerado mestre” Ruy Barbosa, suplicando os sábios esclarecimentos do jurista, onde destacamos os principais questionamentos do advogado:
1.Devo, por ser o acusado nosso adversário, desistir da defesa iniciada? 2. Prosseguindo nela, sem a menor quebra dos laços que me prendem à bandeira do civilismo, cometo uma incorreção partidária?[4]
Em sua resposta, Ruy Barbosa, com suas lições sobre civilismo, foi contundente ao afirmar que em se tratando de questões criminais, não há causa indigna de defesa. A defesa não possui menos importância que a acusação. A defesa deve ser a voz dos direitos legais de uma pessoa, por mais horrendo que seja o delito. Além da preocupação de cunho político, destacamos que o aspecto moral das dúvidas de Evaristo de Morais, considerando que a opinião pública reagiu com violenta revolta, já emitindo as condenações populares, antes mesmo de qualquer deslinde do processo. Tratava-se de um crime detestável que acordou a cólera popular. O sentimento era de que tudo que contra o acusado se falava ecoava em aplausos[5].
Entretanto, mesmo com a paixão pública e a irritação popular e a intolerância à serenidade das formas judiciais, o advogado não deve permitir que a justiça corra perigo e deve trabalhar para que não pereçam as garantias da legalidade. Mesmo nos mais cruéis crimes, cabe ao advogado verificar a prova. E mesmo quando a prova seja decisiva, as mesmas devem ser debatidas no âmbito judicial. O advogado deve sempre zelar pela regularidade estrita do processo.
Destacamos o estudo de Arnaldo Godoy sobre Ruy Barbosa e a lição que se tira do caso Dreyfus[6], ocorrido na França no século de XIX, em que uma situação forjada, a xenofobia e a paixão popular denegriram a reputação de um homem. Alfred Dreyfus, judeu, exercia a função de capitão de artilharia das Forças Armadas na França e foi acusado de fornecer informações sigilosas para militares alemães no contexto da Batalha de Sedan em 1871. Dreyfus teve um julgamento secreto (huis clos) e sem defesa. Foi condenado à prisão perpétua em 1895 e enviado para a Ilha do Diabo na Guiana Francesa.
Grupos intelectuais da França se manifestaram a favor de Dreyfus. Emile Zola, ao defender o capitão, foi condenado à pena de prisão. Após anos de luta, em 1906, foi constatado que os documentos baseados pela acusação eram falsos. Um dos defensores de Dreyfus foi Ruy Barbosa, o qual se encontrava em exílio, em Londres.
Ruy Barbosa, observando o sentimento de ódio da população francesa neste caso, escreveu para o Jornal do Comércio em fevereiro de 1895, alertando que:
Quando se parte do pressuposto de que o réu é culpado, o que se tem na sequência é sempre uma farsa fantasiada de devido processo legal. A condenação certamente virá.
Ruy Barbosa insistiu que os partidos transpõem a órbita da sua legitima ação toda vez que invadem a esfera da consciência profissional e pretendem contrariar a expressão do Direito[7].
No atual contexto, há inúmeros casos de advogados que sofrem perseguições dentro e fora dos tribunais por agirem segundo a ética e os recursos legais na defesa dos legítimos interesses dos seus clientes. Poucos ousam tornar públicas suas perseguições. Ruy Barbosa em seu célebre discurso Oração aos Moços, em março de 1921 destacou que:
Senhores bacharelandos: pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde a lei absolutamente não exprime o consentimento da maioria, onde são as minorias, as oligarquias mais acanhadas, mais impopulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem, as que mandam e desmandam em tudo. Onde for apurável um grão que seja, de verdadeiro direito, não regatear ao atribulado o consolo judicial.
O caso Mendes Tavares, após trâmite do processo no âmbito judicial, resultou na conclusão de que fora feito um juízo prematuro pela sociedade e pela imprensa. As informações eram falsas. Documentos comprovaram que não havia a possibilidade de Mendes Tavares ter premeditado e ajustado o crime, o qual já havia sido condenado precipitadamente pela opinião pública. As testemunhas mentiram em juízo. Não houve imparcialidade da polícia e muitas provas foram forjadas.
Destacamos que muitos advogados vivem, cotidianamente, o perturbador paradoxo do advogado: Como defender causas más e grandes criminosos? Ruy Barbosa deixa claro que em relação às causas cíveis, quando houver ilicitude do cliente, ao advogado é permitido a recusa, mas para o jurista, tal fato não se aplica às criminais. Não há crime que não deva ser assistido pela legalidade e pelas garantias processuais, as quais estão na voz e nos deveres do advogado. Ruy Barbosa respondeu ao colega que o mesmo estava agindo de forma correta e, mesmo nesta árdua missão, Evaristo de Morais carregava com ele os melhores ensinamentos e exemplos da profissão de advogado.
[1] Destacamos a excelente análise de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy feita em 13 de setembro de 2015, intitulada Rui Barbosa e a Polêmica Queima dos Arquivos da Escravidão, na coluna Embargos Culturais do Conjur. A análise está disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-13/embargos-culturais-rui-barbosa-polemica-queima-arquivos-escravidao
[2] VIANA FILHO, Luiz, A Vida de Rui Barbosa, São Paulo: Martins, s.d., p. 257-258.
[3] BARBOSA, Ruy. O dever do advogado: carta a Evaristo de Morais. Bauru,SP: EDIPRO, 2007. p. 52-74.
[4] Op. Cit. p. 53
[5] GOULART, João Pedro Minguete. O dever do advogado. Revista do Direito Público, Londrina, v. 11, n. 3, p.346-349, dez. 2016.
[6] Esta análise de Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy foi feita em 06 de setembro de 2015, na coluna Embargos Culturais do CONJUR. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-06/embargos-culturais-rui-barbosa-licao-tira-dreyfus.
[7] GOULART, João Pedro Minguete. O dever do advogado. Revista do Direito Público, Londrina, v. 11, n. 3, p.347, dez. 2016.