APONTAMENTOS CRÍTICOS AO PECULIAR SISTEMA DE PADRONIZAÇÃO DECISÓRIA INSTITUÍDO PELO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

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O presente trabalho busca tecer uma análise crítica acerca do novo sistema de padronização decisória instituído pelo Novo Código de Processo Civil, principalmente através de seus artigos 926 e 927.

APONTAMENTOS CRÍTICOS AO PECULIAR SISTEMA DE PADRONIZAÇÃO DECISÓRIA INSTITUÍDO PELO NOVO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Fernando Gualberto Scalioni1
Luiz Fernando Valladão Nogueira2

1 Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pós Graduado em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Pós Graduando em Processo Civil pela Faculdade de Direito Padre Arnaldo Janssen, advogado no escritório Valladão Sociedade de Advogados.
2 Advogado fundador do escritório Valladão Sociedade de Advogados, Procurador do Município de Belo Horizonte, Coordenador do curso de pós-graduação em Processo Civil da Faculdade de Direito Padre Arnaldo Janssen, Autor/Coordenador de várias obras literárias em Direito.

RESUMO
O presente trabalho busca tecer uma análise crítica acerca do novo sistema de padronização decisória instituído pelo Novo Código de Processo Civil, principalmente através de seus artigos 926 e 927. Sem adentrar nos intrumentos de uniformização criados, e, também, sem qualquer pretensão de exaurir o tema, pretende-se evidenciar que o sistema de padronização decisória implantado pelo Novo Código de Processo Civil, apesar de bem intencionado no que diz respeito ao aumento da eficiência no trato da litigiosidade repetitiva, acabou por criar um regime peculiar, existente somente aqui, que pouco se preocupa com a qualidade da prestação jurisdicional e concede poder quase que ilimitado aos Tribunais para, sob o rótulo de uniformizadores da jurisprudência, verdadeiramente legislarem sobre temas de relevância estratégica para a sociedade. Neste enfoque, feita a necessária introdução ao tema, o presente trabalho abordará inicialmente a necessidade de se criar instrumentos de padronização decisória e como tal necessidade fora suprida, ao menos no plano das ideias, pelo Novo Código. Num segundo momento, porém, será evidenciado que o sistema de padronização decisória trazido pelo Novo CPC não corresponde a um verdadeiro sistema de precedentes, implicando, na verdade, em graves riscos à qualidade da prestação jurisidicional, ao equilíbrio entre os Poderes da República e, ainda, à própria evolução do Direito pátrio em face às demandas da sociedade.

PALAVRAS-CHAVE: Novo Código de Processo Civil; Sistema de Precedentes; Estabilização da Jurisprudência.

SUMÁRIO: 1 Introdução. 2 A necessidade dos mecanismos de padronização decisória para a efetivação da justiça pelo estado e a tentativa do NCPC em dar solução ao problema no âmbito do processo civil pátrio. 3 A problemática do “Sistema de Precedentes à Brasileira” implementado pelo Novo CPC. 4 A salvação do sistema de precedentes à brasileira através da modificação da mentalidade dos seus aplicadores. 5 Considerações finais. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O Novo Código de Processo Civil trouxe como uma de suas novidades a estruturação de um sistema de padronização decisória, fulcrado na exigência de que os tribunais estabilizem sua jurisprudência e a mantenham íntegra e coerente, nos termos determinados pelo art. 926 do NCPC.
Para tanto, o Novo Código lançou mão de instrumentos de enfrentamento da litigiosidade repetitiva, conferindo aos julgados proferidos em tais expedientes – com o fito de obter a estabilização da jurisprudência – uma espécie de efeito vinculante instantâneo a ser respeitado pelos Órgãos Jurisdicionais inferiores, conforme disciplinado pelo art. 927 do NCPC.
Tais disposições, obviamente, causaram alvoroço na doutrina.
Parte dos processualistas passou a considerar que o Novo Código de Processo Civil teria instituído um verdadeiro sistema de precedentes no Brasil, enquanto outra parte defende a inconsistência das novas disposições, que além de não instituírem um sistema de precedentes, implicariam em aumento perigoso do poder dos Tribunais, bem como em risco à qualidade da prestação jurisdicional e à própria evolução do Direito.
Alguns, inclusive, defendem a própria inconstitucionalidade do art. 927 do Novo Código de Processo Civil, sob o argumento de que, ao atribuir poderes aos Tribunais para firmarem enunciados e precedentes vinculantes, o Novo CPC estaria redistribuindo competências entre os Poderes da República, e concedendo ao Judiciário o poder de legislar pela transversa via dos precedentes de observância obrigatória.
Nesse contexto de incerteza, o presente trabalho visa compreender melhor a gênese do sistema de padronização decisória implantado pelo Novo CPC, apontando as principais críticas e falhas que já podem ser perquiridas com relação ao que parte da doutrina processualista tem chamado de “Sistema de Precedentes à Brasileira”.
E, evidenciados os pontos cruciais nos quais a novel legislação implica em risco à sociedade e ao Direito pátrio, almeja-se concluir o trabalho apontando alternativas para que o fim colimado pelo legislador, que é o de obter a estabilização da jurisprudência dos tribunais de forma íntegra, coerente e democrática, seja atingido por meio de prestação jurisdicional da melhor qualidade possível.

2. A NECESSIDADE DOS MECANISMOS DE PADRONIZAÇÃO DECISÓRIA PARA A EFETIVAÇÃO DA JUSTIÇA PELO ESTADO E A TENTATIVA DO NCPC EM DAR SOLUÇÃO AO PROBLEMA NO ÂMBITO DO PROCESSO CIVIL PÁTRIO

“Nada nega tanto a igualdade quanto dar a quem já teve um direito violado ou sofre iminente ameaça de tê-lo, uma decisão em desacordo com o padrão de racionalidade já definido pelo Poder Judiciário em querelas verdadeiramente idênticas” (GAIO JR., 2015).
Com essa precisa reflexão, GAIO JR. define um dos mais inquietantes problemas do Direito Processual Civil atual, consistente na falta de integridade e de coerência das decisões judiciais.
Se essa temática já causa inquietação em países com baixa litigiosidade e menor fragmentação do Poder Judiciário, obviamente representa um problema ainda maior no Brasil, onde o número de processos judiciais ativos atinge números inimagináveis, distribuídos por milhares de comarcas e dezenas de Tribunais espalhados pelos mais longínquos rincões do país.
BARROSO e MELLO (2016), ao tratarem do tema, afirmam que “no Brasil pós-1988, o maior prestígio e visibilidade do Poder Judiciário foi potencializado por uma constituição abrangente e detalhada, que em medida significativa estimulou a judicialização da vida”, e que “uma das consequências do fenômeno aqui descrito foi a multiplicação de órgãos judiciais, espalhados capilarmente por todo o país”.
Nesse contexto, o Poder Judiciário brasileiro tornou-se uma verdadeira “Torre de Babel”, na qual as soluções dadas por órgãos judiciais distintos a casos idênticos, na grande maioria dos casos, não guardam qualquer pertinência entre si. E, isso, sobretudo porque “os juízes que estão na base da pirâmide hierárquica do Judiciário não se importam em ignorar as decisões proferidas por órgãos mais elevados se houver uma norma legal que lhes possibilite entender de forma diversa” (THEODORO JR. et al, 2015, p. 336).
Para tentar superar esse problema, o Novo Código de Processo Civil (Lei 13.105 de 16 de Março de 2015) “contemplou importantes mecanismos referentes ao sistema de precedentes judiciais e, consequentemente, de uniformização e estabilização da jurisprudência pátria” (DONIZETTI, 2016, p. 1311).
Tais mecanismos, concentrados primordialmente nos artigos 926 e 927 da Nova Legislação, vieram para hierarquizar as decisões judiciais e, para parte da doutrina,
verdadeiramente tornar vinculantes para todos os Juízes e Tribunais os julgados proferidos nas hipóteses enumeradas nos incisos do art. 927 (AMARAL, 2015, 948).
Eis o que dizem os citados dispositivos:
Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.
§ 1o Na forma estabelecida e segundo os pressupostos fixados no regimento interno, os tribunais editarão enunciados de súmula correspondentes a sua jurisprudência dominante.
§ 2o Ao editar enunciados de súmula, os tribunais devem ater-se às circunstâncias fáticas dos precedentes que motivaram sua criação. (BRASIL, 2015)
Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;
II - os enunciados de súmula vinculante;
III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;
IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;
V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
§ 1o Os juízes e os tribunais observarão o disposto no art. 10 e no art. 489, § 1o, quando decidirem com fundamento neste artigo.
§ 2o A alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese.
§ 3o Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
§ 4o A modificação de enunciado de súmula, de jurisprudência pacificada ou de tese adotada em julgamento de casos repetitivos observará a necessidade de fundamentação adequada e específica, considerando os princípios da segurança jurídica, da proteção da confiança e da isonomia.
§ 5o Os tribunais darão publicidade a seus precedentes, organizando-os por questão jurídica decidida e divulgando-os, preferencialmente, na rede mundial de computadores. (BRASIL, 2015)
Perceba-se que a nova legislação processual instituiu um dever aos tribunais no que diz respeito à uniformização de sua jurisprudência, bem como deu a entender, ao utilizar a expressão “observarão”, que também é impositiva – e, portanto, vinculante – a aplicação dos
julgados exarados pelos Tribunais nas hipóteses colimadas pelos incisos do art. 927 do Novo CPC.
Por isso é que, para alguns doutrinadores, dentre os quais NOGUEIRA (2015), o Novo Código de Processo Civil veio para instituir oficialmente um sistema de precedentes no Direito Brasileiro, ao elaborar regras destinadas a fixar o modo de aplicação e as consequências jurídicas impostas aos partícipes do processo no que tange ao atendimento da orientação advinda dos precedentes judiciais.
Tal sistema, inclusive, atenderia à expectativa de todo e qualquer jurisdicionado, “de ter a decisão da sua causa em sintonia com aquilo que é o entendimento majoritário do juízo ao qual se recorre e, por decorrência, ver assegurada a justiça pelo tratamento semelhante de demandas semelhantes” (NOGUEIRA, 2015).
Ora, como ensina AMARAL (2015, p. 946), a unidade do Direito decorrente da uniformização de jurisprudência visa conferir ao sistema a segurança jurídica, por meio da maior previsibilidade das decisões, da estabilidade do direito, da confiança legítima no Judiciário, da isonomia entre os jurisdicionados, da coerência da ordem jurídica, da imparcialidade, dentre outros valores.
Em um primeiro olhar, pode parecer adequado, portanto, o trato dado pelo Novo Código de Processo Civil à questão da integridade e coerência da jurisprudência, ao instituir um suposto sistema de precedentes que suprimiria da prática forense os julgamentos desconexos com a orientação consolidada pelos Tribunais Superiores a respeito das questões jurídicas debatidas, eis que estas passariam a ser dotadas de uma espécie de efeito vinculante.
Não é isto, porém, o que se obtém de uma análise mais densa e crítica desse novo sistema.

3. A PROBLEMÁTICA DO “SISTEMA DE PRECEDENTES À BRASILEIRA” IMPLEMENTADO PELO NOVO CPC

Como descrito no item anterior, para parte da doutrina o Novo Código de Processo Civil teria verdadeiramente aproximado o sistema processual brasileiro, que sempre fora incluído dentre aqueles cuja principal fonte do direito é a própria lei (Civil-Law), àqueles sistemas estrangeiros em que os costumes e as decisões judiciais consolidadas, chamadas de
precedentes, também configuram fontes relevantíssimas do Direito, por vezes com até maior predominância do que o chamado direito legislado (Common Law).
E, para alguns desses doutrinadores, tal aproximação implicaria em ganho na qualidade da prestação jurisdicional, ao padronizar, através dos novos “precedentes” vinculantes, as decisões judiciais proferidas pelos mais diversos órgão jurisdicionais aos casos idênticos relacionados a uma mesma matéria já enfrentada pelas chamadas Cortes de Vértice (STJ e STF), as quais ficariam responsáveis por editar as teses a serem seguidas pelo demais sodalícios.
Esse entendimento, contudo, é problemático.
Na duríssima crítica feita por STRECK e ABBOUD (2016), o Novo Código de Processo Civil não instituiu um sistema de precedentes, próprio da tradição Common Law, mas sim criou um regime sui generis somente existente aqui, inclusive chamado jocosamente de jaboticaba pelos referidos autores, em referência à fruta que não pode ser encontrada em nenhum outro lugar do mundo.
Isso porque, o genuíno precedente do sistema Common Law é fator criador de complexidade na decisão dos casos concretos, eis que nada mais é do que o ponto de partida para a discussão das teses jurídicas pelas partes. Nesse sistema, o precedente só se tornará o padrão decisório para casos análogos se, e somente se, apresentar coerência, integridade e racionalidade suficientes para, com o tempo, amadurecimento e sucessivas aplicações, passar a ser tomado como referencial vinculativo pelos Tribunais.
DWORKIN (2003, p. 275/277), ao analisar o legítimo sistema de precedentes típico dos países de tradição Common Law, compara a função judicante a uma espécie de gênero literário artificial chamado “romance em cadeia”, na qual “um grupo de romancistas escreve um romance em série; cada romancista em cadeia interpreta os capítulos que recebeu para escrever um novo capítulo, que é então acrescentado ao que recebe o romancista seguinte, e assim por diante”.
Ainda segundo o autor, nesse exemplo do romance em cadeia “espera-se que os romancistas levem mais a sério suas responsabilidades de continuidade; devem criar em conjunto, até onde for possível, um só romance unificado que seja da melhor qualidade possível” (DWORKIN, 2003, p. 277), o que, se aplicado ao Direito, gera o conceito de integridade dos precedentes.
Trocando em miúdos, assim como os romancistas do romance em cadeia, os juízes, ao proferirem julgados, devem considerar as decisões judiciais passadas com vistas à manutenção da adequação linear do Direito, contudo, sempre visando produzir no futuro
melhores e mais íntegras decisões, imputando um caráter de continuidade, de integridade e de ganho de qualidade ao Direito (DWORKIN, 2003, p. 272).
Já o tal precedente “à brasileira”, pelo contrário, já nasce vinculante por força de Lei, independentemente de sua qualidade e consistência, sendo fator simplificador das decisões. Não há necessário amadurecimento, não há o suficiente debate. Qualquer julgado proferido nas hipóteses do art. 927 do NCPC torna-se, automaticamente, um precedente pronto para ser multiplicado país a fora pelos demais tribunais ordinários.
Perde-se no sistema brasileiro, portanto, o indispensável amadurecimento do debate jurídico para a formação da decisão vinculante, motivo pelo qual se constata, facilmente, que não há no Brasil um sistema de precedentes, ao menos não como os legítimos sistemas de precedentes de tradição Common Law.
Por isso, para STRECK e ABBOUD (2016) a sistemática trazida pelos artigos 926 e seguintes do Novo CPC seria uma espécie de “jeitinho brasileiro” para lidar com a litigiosidade repetitiva, estruturando os padrões decisórios de forma verticalizada e impositiva pelos Tribunais Superiores, sequer se aproximando de um sistema de precedentes genuíno, no qual “o que confere essa dimensão de precedente à decisão do Tribunal Superior é sua aceitação primeiro pelas partes e, em seguida, pelas instâncias inferiores do Judiciário” (STRECK e ABBOUD, 2016).
É essa diferenciação, destacam os juristas, que atribui ao precedente do Common Law “uma aura democrática que o precedente à brasileira não possui” (STRECK E ABBOUD, 2016).
Perceba-se que não se trata, portanto, de uma problemática estritamente acadêmica.
No plano prático, afirmam STRECK e ABBOUD (2016) que ao implantar o peculiar “sistema” de padronização decisória, foram suprimidos direitos e demasiadamente aumentado o poder do Judiciário.
Além disso, há muito alerta NUNES (2011) que “no Brasil a padronização decisória é dimensionada somente para a resolução quantitativa das demandas seriais”, inexistindo a preocupação com o grau de qualidade desses padrões, circunstância que perigosamente se manteve com o NCPC.
Destarte, apesar de bem intencionado o legislador ao criar um sistema através do qual julgados vinculantes garantiriam a harmonia e coerência das decisões judiciais em território nacional, não se pode negar que STRECK e ABBOUD (2016) acertam ao afirmar que “o que o CPC 2015 faz é criar provimentos judiciais vinculantes cuja função é reduzir a
complexidade judicial para enfrentar o fenômeno brasileiro da litigiosidade repetitiva”, tendo sido idealizado para ofertar as respostas antes das perguntas, segundo os citados autores.
Isso se torna um verdadeiro problema, no entanto, quando essa redução da complexidade em torno dos debates, através da imposição, pelos Tribunais Superiores, de padrões decisórios formados sem o devido supedâneo democrático-argumentativo, transmuta-se em engessamento do Direito por força da própria cultura que hoje impera nas Cortes de Sobreposição, qual seja, a de que uma vez decidida uma questão, termina-se a discussão em torno dela.
Como bem descrevem THEODORO JR., NUNES, BAHIA e PEDRON (2015, p. 337) “a jurisprudência defensiva esforça-se para, logo, formatar um enunciado de súmula (ou similar) a fim de se encerrar o debate sobre o tema”, fato que, além de verdadeiramente empobrecer a prestação jurisdicional e, muitas vezes, ocasionar injustiças, provoca ainda uma verdadeira descredibilização do próprio sistema de padrões decisórios, já que, se como disse GAIO JR. (2015), é inaceitável dar decisões distintas a casos idênticos, obviamente também a recíproca é verdadeira, sendo inaceitável aplicar soluções preestabelecidas e idênticas a casos absolutamente divergentes.
Nesse particular, inclusive, “é cada vez mais corrente o uso de ementas e enunciados de súmula completamente dissociados do caso concreto que lhes deu fundamento, como se fossem normas gerais e abstratas que se desligariam, como a lei, de seus fundamentos originalistas” (THEODORO JR. et al., 2015, p. 337), o que tem transformado rasos padrões decisórios em fórmulas genéricas aplicáveis a toda e qualquer demanda, independentemente das circunstâncias e peculiaridades fáticas do caso concreto analisado.
Pior, tais enunciados exarados pelos Tribunais de Sobreposição têm sido amplamente aplicados, às cegas, já nas instâncias de piso, antes mesmo de estabelecido e aperfeiçoado o pleno contraditório. Inclusive, não só o Poder Judiciário, mas também a própria advocacia, por vezes, tem caído nessa armadilha, ao lançar nos autos como instrumento de convencimento a simples transcrição de ementas ou fragmentos de julgados que não correspondem à gênese do precedente invocado (ratio decidendi).
É essa cultura já sedimentada na prática forense, de que as súmulas e julgados dos Tribunais Superiores seriam como Leis estáveis, inquestionáveis e autoaplicáveis a todo e qualquer caso, que ameaça condenar ao ostracismo ainda no ovo o sistema de padrões decisórios trazido pelo Novo Código.

4. A SALVAÇÃO DO “SISTEMA DE PRECEDENTES À BRASILEIRA” ATRAVÉS DA MODIFICAÇÃO DA MENTALIDADE DOS SEUS APLICADORES

O grande risco oriundo do sistema peculiar de padronização decisória implantado pelo Novo CPC, como já dito, é o do empobrecimento do direito, através de sua petrificação e automatização da prestação jurisdicional.
Nesse contexto, e como bem ensina CÂMARA (2016), para que seja racional a estabilização da jurisprudência colimada pela Nova Legislação Processual, “é preciso encontrar elementos que permitam construir meios para viabilizar o acesso aos tribunais de superposição e provocar o reexame dos padrões decisórios, a fim de permitir a superação e a consequente evolução da interpretação”.
A isso, vale esclarecer, a tradição Common Law dá o nome de Overruling, que nada mais é do que o mecanismo pelo qual, ante a inadequação ou superação do precedente por conta da alteração do contexto político, jurídico, econômico ou social em que editado, reabre-se a discussão do tema já decidido e se viabiliza a edição de novel e mais ajustado entendimento sobre a questão debatida.
A solução para o problema do empobrecimento do Direito, portanto, perpassa indissociavelmente pela maior abertura dos Tribunais de Superposição, a fim de que estes viabilizem a superação dos próprios entendimentos quando necessário, o que só poderá acontecer através de uma verdadeira mudança de mentalidade no que tange à chamada jurisprudência defensiva erigida por esses Tribunais.
Mas não é só!
Mais do que elementos para permitir a evolução da interpretação através do exercício do chamado Overruling, é preciso conceber uma modificação da cultura geral dos partícipes do processo, a fim de que, ainda que não se efetive um sistema de precedentes conforme o modelo tradicional, ao menos seja ofertado pelos Tribunais de Sobreposição padrões decisórios robustos, construídos através do debate exaustivo e democrático dos temas neles enfrentados.
É plenamente possível, mesmo nesse peculiar sistema em que algumas decisões judiciais já podem nascer vinculantes – ou, nas palavras de STRECK e ABBOUD (2016), no qual se oferta as respostas antes das perguntas – que se possa ao menos garantir o exaustivo e democrático debate, a coerência e a racionalidade na elaboração do padrão decisório. Isso,
contudo, não acontecerá mediante simples edição de lei, mas sim através da atuação efetiva dos partícipes do processo e da sociedade.
A bem da verdade, e novamente segundo a lição de STRECK e ABBOUD (2016), não era mesmo dado ao Novo Código de Processo Civil implantar, a fórceps, um genuíno sistema de precedentes que envolve verdadeira mudança de cultura e de tradição da processualística pátria. Nas palavras dos referidos autores, “não é um Código ou qualquer outra lei que criará ou modificará nosso sistema, fazendo surgir o sistema-de-precedentes ou o próprio Common Law a partir de mera promulgação de lei” (STRECK e ABBOUD, 2016).
Nesse diapasão, fica claro que o esforço a ser feito neste momento não deve ser no sentido de tentar equiparar o sistema de padronização decisória brasileiro ao Common Law, como tem feito parte da doutrina, mas sim, mediante uma interpretação do Novo CPC em conformidade à constituição, buscar obter a aplicação do modelo pátrio da forma mais íntegra, coerente e democrática possível, através da participação ativa de todos os partícipes do processo e da própria sociedade na construção das decisões vinculantes.
Por isso, para que não se perca, através do engessamento do Direito e da fragilidade dos padrões decisórios impostos verticalmente pelos Tribunais Superiores, a qualidade da prestação jurisdicional por conta do sistema de litigiosidade repetitiva instaurado pelo Novo Código de Processo Civil, os próprios Tribunais, os demais partícipes do processo (advogados, defensores, promotores e partes) e, principalmente, a doutrina, terão que exercer papel fundamental de construção do Direito e de fiscalização da sua mais escorreita aplicação, evitando que a utilização de padrões decisórios desconexos e descolados da realidade releguem ao segundo plano de importância os casos concretos levados ao crivo do Judiciário, que são a razão primeira da existência do Sistema Processual.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como já visto, a grande crítica que se faz ao sistema de padronização decisória trazido pelo Novo CPC é justamente a falta da adequação linear muito bem descrita no exemplo do Romancista em Cadeia dado por DWORKIN.
Nas palavras de STRECK e ABBOUD (2016), no Common Law, se a decisão tiver coerência, integridade e racionalidade suficientes para torná-la ponto de partida para a
discussão de teses jurídicas e, por isso, vir a se tornar padrão decisório, com o tempo ela poderá vir a se tornar precedente, diferentemente do sistema de padronização decisória implantado pelo Novo CPC, no qual os provimentos mencionados pelo art. 927 já nascem dotados de efeito vinculante independentemente de sua qualidade, integridade, coerência e adequação linear.
Isso, porém, não quer dizer que o sistema de padronização decisória trazido pelo Novo CPC, dimensionado para o enfrentamento da litigiosidade repetitiva, não seja importante e não possa contribuir para a melhora da prestação jurisdicional no país.
O enfoque da discussão, portanto, não deve se dar através da simples comparação entre o peculiar sistema brasileiro e o genuíno sistema de precedentes do Common Law, o qual, repete-se, não poderia mesmo ser implantado em todas as suas características por simples edição de Lei.
O que é realmente importante agora, com o Novo Código já em vigor, é buscar a interpretação dos artigos 926 e 927 do NCPC em conformidade com os ditames Constitucionais aportados para o âmbito da própria Lei Processual Civil, de modo que, através do pleno exercício do contraditório, da cooperação e da boa-fé processual, seja aplicação o modelo pátrio da forma mais íntegra, coerente e democrática possível, através da participação ativa de todos os partícipes do processo e da própria sociedade na construção das decisões vinculantes.
Além disso, apesar de não existir no modelo criado pelo NCPC o período de “maturação do precedente” – já que, aqui, as decisões vinculantes assim já nascem – deve-se, ao menos, exigir dos tribunais que construam o provimento de forma bem fundamentada e, sobretudo, mediante o consenso de seus membros com relação aos fundamentos decisivos para o resultado (chamada de ratione decidendi no sistema Common Law), para que os padrões decisórios tenham integridade e suficiência para assumirem o papel vinculante previsto pela legislação.
Por fim, deve-se almejar também a modificação da mentalidade de todos os operadores do direito, que devem aprofundar-se mais no estudo e compreensão da ratione decidendi dos padrões decisórios ao invés de valerem-se da mera transcrição de ementas e súmulas em suas peças e decisões, a fim não só de provocarem a melhor e mais correta aplicação das decisões vinculantes aos casos concretos como também de justificarem sua superação ou não aplicação nos casos em que for cabível o Overrruling ou o Distinguishing.
É com base nessas premissas que deve concretizar-se, na prática, a novel sistemática incorporada ao Processo Civil Brasileiro pelos arts. 926 e 927 do NCPC, a fim que de o
princípio da estabilização da jurisprudência por eles insculpido não signifique o congelamento do Direito e uma verdadeira ditadura do Poder Judiciário, mas sim uma importante ferramenta de enfrentamento da litigiosidade repetitiva que, ainda assim, implique em ganho de qualidade, de integridade e de coerência na prestação jurisdicional.

REFERÊNCIAS
AMARAL,Guilherme Rizzo. Comentários às alterações do Novo CPC. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015.
BARROSO, Luis Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: A Ascensão dos procedentes no Direito Brasileiro. Disponível em <http://s.conjur.com.br/dl/artigo-trabalhando-logica-ascensao.pdf>. Acesso em 08/09/2017.
BRASIL. Lei 13.105 de 16 de Março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, 2015.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Novo CPC reformado permite superação de decisões vinculantes. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-fev-12/alexandre-camara-cpc-permite-superacao-decisoes-vinculantes>. Acesso em: 08/09/2017.
DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de Direito Processual Civil. 19ª Ed. São Paulo: Atlas, 2016.
DWORKIN, Ronald. O império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FOGAÇA, Mateus Vargas; FOGAÇA, Marcos Vargas. Sistema de precedentes judiciais obrigatórios e a flexibilidade do Direito no Novo Código de Processo Civil. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 66, pp. 509-533, jul./dez.2015.
GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. O Conceito de Precedentes no Novo CPC. Disponível em <https://www.gaiojr.adv.br/astherlab/uploads/arquivos/artigos/O-CONCEITO-DE-PRECEDENTES-NO-NOVO-CPC.pdf>. Acesso em 08/09/2017.
NOGUEIRA, Cláudia Albagli. O novo Código de Processo Civil e o sistema de precedentes judiciais: pensando um paradigma discursivo da decisão judicial. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 185-210, out./dez. 2014.
NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio. “Precedentes e a busca de uma decisão correta. In: THEODORO JR., Humberto (Coord.). Processo Civil Brasileiro: novos rumos a partir do CPC/2015. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
NUNES, Dierle. “Problemas para o dimensionamento de técnicas para a litigiosidade repetitiva: a litigância de interesse público, o processualismo constitucional democrático e as tendências “não compreendidas” de padronização decisória”. In: JAYME, Fernando Gonzaga et al (Cord.). Processo Civil - Novas Tendências: Homenagem ao Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
ROSSI, Fernando et al (Coord.). O Futuro do Processo Civil no Brasil: uma análise crítica ao projeto do Novo CPC. Belo Horizonte: Fórum, 2011.
SOARES, Leonardo Oliveira. Novos Escritos de Direito Processual: Entre presente e futuro. Belo Horizonte: Del Rey, 2015.
STRECK, Lênio Luiz; ABBOUD, Georges. O que é isto – o sistema (sic) de precedentes no CPC? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-18/senso-incomum-isto-sistema-sic-precedentes-cpc>. Acesso em: 08/09/2017.
THEODORO JR., Humberto. Curso de Direito Processual Civil vol. III. 48ª Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2016.
THEODORO JR, Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre Melo Franco; PEDRON, Flávio Quinaud. Novo CPC - Fundamentos e sistematização. 2ª Ed., ver., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2015.
WAMBIER, Tereza Arruda Alvim et al (Coord.). Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 2ª Ed., São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

Sobre o autor
Luiz Fernando Valladão Nogueira

Advogado, procurador do Município de Belo Horizonte; diretor do IAMG (Instituto dos Advogados de Minas Gerais); professor de Direito Civil e Processo Civil na Faculdade de Direito da FEAD; professor de Pós- Graduação na Faculdade de Direito Arnaldo Janssen; autor de diversas obras jurídicas, dentre elas "Recursos em Processo Civil" e "Recurso Especial" (ed. Del Rey); membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro.

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