O Direito e o regulamento dos campeonatos de Fórmula 1

08/06/2018 às 21:56
Leia nesta página:

Direito, esporte e tecnologia possuem, entre si, importantes pontos de contato no cenário evolutivo deste início de século 21. Existe uma significativa ligação entre esporte e tecnologia, com desdobramentos financeiros e tributários, ligados a "esquemas".

Dentro desse contexto, verificamos que a Fórmula 1 (F1) é, provavelmente, o mais tecnológico dos esportes de massa da atualidade. Ocorre que o desfecho da temporada de 2003 está provocando uma daquelas boas polêmicas esportivas. O que não aparece para o grande público são as grandes questões jurídicas que estão nos bastidores desse espetáculo.

Aparentemente, Michael Schumacher (Alemanha, Ferrari) termina o ano como um campeão incontestável, somando 6 X 1 no placar de vitórias contra o jovem Kimi Raikonen (Finlândia, MacLaren). Massacrou? Não é o que parece. Se os "pesos e medidas" fossem os mesmos para ambos os lados, na interpretação jurídica dos regulamentos, o resultado poderia (ou deveria) ter sido bem diferente, pois o piloto da McLaren rondou a vitória em três situações, decididas em seu desfavor por obscuras interpretações de regulamento. São as seguintes:

  • Em duas ocasiões ocorreu "excesso de fiscalização" contra ele, nos GPs da Austrália ("81" km/h nos pits) e do Brasil (revisaram o resultado uma semana depois);

  • Em uma outra ocasião, uma "fiscalização complacente" manteve uma vitória do seu principal adversário, no GP de Indianápolis (ultrapassagem do Schumacher em bandeira amarela).

Se a regra de interpretação fosse diferente (dura com ambos, ou frouxa com ambos), poderíamos ter um resultado final de 5 X 4 no placar de vitórias, o que seria muito mais equilibrado. Mas isso não é o mais grave.

Somente o incidente ocorrido em Indianápolis já seria suficiente para alterar o resultado do campeonato. Adicione 35 segundos ao tempo de Schumacher naquela prova (tempo médio gasto para entrada e saída dos pits), que seria o tempo gasto em uma punição. A diferença final entre Schumacher e Raikonen foi inferior a isso, e, se o alemão tivesse sido adequadamente punido, o resultado seria invertido.

Com essa inversão, retiraríamos dois pontos do Schumacher, e adicionaríamos dois a Raikonen. Com isso, Schumacher não seria campeão.

Quer saber mais? A última vez que um incidente desses (ultrapassar em bandeira amarela) influenciou em uma decisão foi em 199, e o piloto Jacques Villeneuve (Canadá) cometeu esta infração (no treino) e teve, como punição, a perda dos pontos da corrida. Como diríamos nos tribunais, "jurisprudência pacífica". Ou seja, considerar uma punição para Schumacher durante a corrida, adicionando tempo ao seu resultado final, ainda seria uma punição mais benéfica. Mesmo assim, o título mudaria de mãos.

Sobre os incidentes dos EUA, fica evidente esta disparidade de tratamento entre o "primeiro mundo" e o "resto". Na dúvida, o piloto Juan Pablo Montoya (Colômbia) foi punido e Schumacher, não. O próprio Rubens Barrichelo (Brasil) afirmou que seu incidente com Montoya foi um fato normal e que ele tinha problemas de velocidade de final de reta. Disse ainda que o David Coulthard (Escócia) o ultrapassou com facilidade na volta anterior e que ele acreditava que teria deixado espaço para o Montoya passar. Porém, na dúvida, Montoya foi punido.

Outro detalhe interessante: a punição, que já estava definida há algum tempo, teve seu cumprimento exatamente na volta em que a chuva despencou, obrigando Montoya a dar mais uma volta com pneus para pista seca (inclusive saiu da pista nessa volta), o que lhe custou, na real, algo em torno de 1min e 10 segundos no total, o suficiente para que estivesse excluído da briga por uma pontuação mais expressiva. Lembre-se, o terceiro lugar nos EUA foi de um carro da Sauber (equipe modesta), e se Montoya chegasse ao Japão (última corrida do ano) com 4 ou 5 pontos a mais, o clima seria outro. E lembre-se também que, se não tivesse quebrado, ele corria sem adversários em Suzuka (Japão) para uma vitória absoluta.

De outro lado, Schumacher ultrapassou o piloto Olivier Panis (França) em uma clara e nítida bandeira amarela (na corrida dos EUA-Indianápolis). Não podemos nem dizer que Schumacher foi beneficiado por uma interpretação que, na dúvida, o favoreceu, pois simplesmente não havia dúvida sobre o fato. O melhor esclarecimento é a declaração (indignada) do próprio Panis, que afirma não haver a menor dúvida sobre a bandeira e sobre a impossibilidade da manobra. Ele afirma que "tirou o pé" quando viu a bandeira, o que o Schumacher o ultrapassou, descaradamente. Bom, parece que o protesto sequer foi recebido, nem mesmo julagdo.

Acontece que o chamado "Circo da F1" parece pretender que acreditemos que existe, agora, um "supercampeão", o melhor de todos os tempos. Parece haver uma grande dificuldade de aceitarem que alguns dos maiores pilotos da história (Fangio, Senna, Piquet e Emerson) são nascidos em países pobres e do chamado "terceiro mundo". Tenho a impressão de que eles querem nos convencer que a supremacia econômica, política e cultural recuperou a sua posição hegemônica, dentro de uma competição "coerente", e que agora está sendo restaurada a "verdade" na maior vitrine tecno-esportiva do mundo. Não se espante, pois isso tem acontecido na OMC, em Davos... Por que motivo não aconteceria na F1, o esporte que movimenta a maior massa financeira na história da humanidade?

Vejo tudo isso e triplico a minha admiração por Emerson, Senna e Piquet, vencedores dos nossos 8 títulos mundiais na F1. Lutaram contra tudo isso, e, se venceram, não é só porque eram bons. Eram, de fato, excelentes pilotos.

Existe um "campeonato da história" da F1, onde somos líderes absolutos. O Brasil detém oito títulos mundiais, contra os agora seis da Alemanha, e, se ficarmos assistindo, pacíficos, ao discurso legitimador dos crassos erros jurídicos que aconteceram durante este ano, vamos perder o nosso lugar, em breve. Você consegue acreditar que o esporte mais rico e tecnológico do mundo é dominado por um país pobre, da América do Sul? Eles querem mudar isso, leitor.

Quem não lembra do incidente envolvendo o Prost e o Senna em 89, que humilhou o brasileiro com uma punição absurda, por ter "cortado um trecho do traçado" após ter sido escancaradamente jogado para fora da pista. A decisão foi tomada por um comissário que, algum tempo depois, admitiu publicamente que o resultado foi "questionável". Precisamos lembrar que foi dito que o Senna "tentou uma ultrapassagem em um lugar inapropriado", e que o local era tão "inapropriado" que hoje é o principal (e praticamente único) ponto de ultrapassagem daquela mesma pista. Bom, o autor intencional do acidente, Prost, não sofreu qualquer punição, e foi campeão. E o brasileiro foi transformado em "infrator", pois "descumpriu as diretrizes de segurança", sendo qualificado como "imprudente" e "indisciplinado". O assunto esteve próximo de ser levado para a Justiça Comum (na época), diante das absurdas interpretações jurídicas que os tribunais esportivos estavam consolidando.

Ilustre leitor, não vamos entrar numa linha de "fora Schumacher", como resultado de um diletantismo abstrato, mas é importante perceber em quantos momentos da história da F1 esse piloto alemão (agora o maior campeão de todos os tempos), foi beneficiado por "interpretações jurídicas favoráveis" dos regulamentos e normas esportivas, nos seguintes casos concretos:

  • Em 94, toda a F1 afirmava que a Benetton estava "turbinada" por algumas manipulações. Foi encontrado um software ilegal no controle do motor. O filtro da bomba de combustível foi retirado, para ganho de tempo nos reabastecimentos. Nada aconteceu, e a punição que Schumacher recebeu, mais adiante, foi motivada por outros incidentes;

  • Ainda em 94, Schumacher jogou seu carro, de forma criminosa, contra Damon Hill (Inglaterra). Ele havia perdido o controle do carro, e "raspado" o muro alguns segundos antes. Estava fora da prova, de qualquer maneira, e sabia disso;

  • Em 97 repetiu a dose, se deu muito mal, mas ficou por isso mesmo, pois perdeu o título de vice-campeão, mas manteve os pontos e as vitórias daquele ano;

  • Em 98, algumas equipes conseguiram impugnar um equipamento da MacLaren que já estava homologado pela FIA (Federação Internacional de Automobilismo), e em pleno uso desde a temporada anterior. E a FIA retirou o freio auxiliar da MacLaren, cujo uso já havia sido autorizado;

  • Nas temporadas de 99 e 2000, houve várias acusações de que a Ferrari usava algum tipo de controle de tração (proibido na época), perfeitamente visível em situações de pista molhada. Chegaram a editar um vídeo com cenas de retomadas e saídas de curva com pista molhada (não circulou no Brasil), onde a vantagem era muito visível. Não houve julgamento;

    Assine a nossa newsletter! Seja o primeiro a receber nossas novidades exclusivas e recentes diretamente em sua caixa de entrada.
    Publique seus artigos
  • Na temporada de 2000, Schumacher deixou, escancaradamente, de cumprir uma punição durante uma prova, e cruzou a linha de chegada pelos boxes, e ficou por isso mesmo, ninguém foi punido, e a vitória "valeu";

  • Na mesma temporada de 2000, foram muito fortes os rumores sobre a adulteração de combustível na prova de Monza (uma "virada" surpreendente, mais ou menos como 2003);

  • Em 2002, tudo aquilo que vimos acontecer com Barrichello (tiraram o seu carro, mandaram ele "sair da frente" do alemão, o impediram de fazer uma ultrapassagem em outra oportunidade) demonstrou uma visível manipulação de resultados;

  • Nessa temporada de 2003, além do vexame da bandeira amarela em Indianápolis, ainda tem a história dos pneus, uma piada sem precedentes, mas que fez com que as regras (ou sua interpretação) fossem alteradas com o jogo em andamento.

Hipóteses e conjecturas não fazem parte do esporte, mas fazem parte da história e da ciência jurídica, e todos temos o direito de opinar sobre a verdade dos fatos. Existem muito mais questões jurídicas na F1 do que possa parecer, e devemos atentar para tais fatos, pois se não estivéssemos assistindo a um festival de manipulações, provavelmente não haveria um hexacampeão na história.

As consequências financeiras desse fato são bastante vultuosas, revertidas em prêmios, patrocínios e quotas de televisão. Estamos sendo levados a acreditar que existe uma pessoa dotada de um talento inigualável (algo de que duvido muito), e, ainda por cima, de uma "sorte de elefante". Se temos que suportar a caracterização de um ídolo internacional, temos, no mínimo, o direito de lançar sérios questionamentos sobre as suas conquistas, as quais , na minha ótica, não possuem a legitimidade plena, seja pelo procedimento, seja pela essência.

Estou escrevendo tudo isso com o objetivo de enfatizar alguns pontos importantes na vida de todos nós, brasileiros, estudiosos do direito e também admiradores do esporte limpo, ético e bem regulamentado. As principais preocupações são as seguintes:

  1. a perigosa vitória da ética do "vencer a qualquer custo". As conseqüências disso são bastante sérias para o contexto social, e a criação de uma conjuntura propícia para manipulações é a pior delas;

  2. não podemos permitir a criação de "feudos" que estão acima de lei e da ética, norteados por interesses escusos e nebulosos, que manipulam a verdade dos fatos. A minha opinião é bem clara: Justiça Comum para esse pessoal, para que não manipulem mais resultados. Não tenha dúvida, se os fatos públicos e televisivos estão sendo tratados de forma obscura, imaginemos o que está sendo feito fazendo com os assuntos que não estão visíveis. Existem fortes possibilidades de haver grandes lavanderias, muitos fantasmas e esquemas de sonegação nessa historia toda;

  3. uma parte simbólica da nossa soberania está em jogo. O simbolismo do espírito de luta e capacidade de criação de povo brasileiro foi muito reforçado, entre 1972 e 1993, diante das nossas vitórias na F1. O sucesso desse modelo mental em um fórum altamente desenvolvido e tecnológico mostrou outras capacidades do povo brasileiro. Senna, Piquet e Emerson são constantemente citados como referenciais de motivação, obstinação e perseverança. Agora, estamos perdendo esse referencial cultural, aos poucos, e a cultura é um dos componentes do Estado, e influencia, indiretamente, na dimensão da soberania. Estamos sendo enfraquecidos;

  4. a regra do esporte, se aplicada corretamente, faz o título mudar de mãos em 2003, e isso é algo que está muito claro. Regras manipuladas geram sociedades decadentes, e devemos lutar contra isso;

  5. historicamente, grandes esquemas de corrupção, autoritarismo, desvio de verbas e similares, trabalham fortemente no âmbito das "interpretações" das leis e regulamentos, e, não raro, organizações autoritárias manipulam sua estrutura normativa para perpetuar os detentores do poder;

  6. a F1 é uma espécie de patrimônio da humanidade, uma competição desenvolvimentista, um portfólio tecnológico, misturado com paixão esportiva, e tenho muito pesar em admitir que no aspecto jurídico, ela prolata, hoje, as piores interpretações e cristaliza os piores exemplos metajurídicos que poderíamos receber;

  7. para finalizar, assistimos o fim de uma contenda enlameada, decidida, no final das contas, por obscuras interpretações normativas, as quais favoreceram, de forma incontestável, o staff dominante. Estamos assistindo, mais uma vez na história da humanidade, as "leis" serem colocadas a serviço da conservação do poder, a serviço da dominação e da manipulação. O que é pior, com um fortíssimo suporte tecnológico.

Assuntos relacionados
Sobre o autor
Hugo Cesar Hoeschl

Professor, ex-promotor, ex-procurador e pós-doutor em Governo Eletrônico. Acesse: -->> https://www.hugocesarhoeschl.com

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Fonte: https://www.hugocesarhoeschl.com/2003/10/o-direito-e-o-regulamento-dos.html

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos