O CRÉDITO CONSIGNADO E A MORTE DO MUTUÁRIO.

10/07/2018 às 11:20
Leia nesta página:

O ARTIGO DISCUTE SOBRE O CRÉDITO CONSIGNADO E SUA RESOLUÇÃO DIANTE DA MORTE DO MUTUÁRIO.

O CRÉDITO CONSIGNADO E A MORTE DO MUTUÁRIO

 

Rogério Tadeu Romano

 

 

I – O CRÉDITO CONSIGNADO

Não se exige uma garantia nos casos de empréstimos consignados. Eles são pagos no contracheque e seu valor repassado aos bancos emprestadores.

O Crédito consignado (também conhecido como empréstimo consignado) é um empréstimo com pagamento indireto, cujas parcelas são deduzidas diretamente da folha de pagamento da pessoa física. Ele pode ser obtido em bancos ou financeiras, cuja duração não deve ser superior a 72 meses.

Fala-se que no crédito consignado há a livre disposição contratual e a boa-fé que deve se unir a todas as relações contratuais, como as de mútuo mediante o pagamento de juros.

A legislação que instituiu a concessão de crédito consignado (Lei nº 10.820/03) foi uma forma camuflada das instituições financeiras burlarem a restrição de impenhorabilidade de salários e pensões, prevista no artigo 649, inciso IV, do Código de Processo Civil.

Mas  o princípio da proteção do caráter alimentar da remuneração do trabalho deve prevalecer sobre os descontos em folha de pagamento. Daí porque têm limite os descontos que devem ser feitos no contracheque do devedor. Se não respeitada tal prática, será o   empréstimo consignado uma prática abusiva, análoga à penhorabilidade de vencimentos e que caracterizava a invasão da “privacidade econômico-financeira” do tomador de crédito, uma ofensa ao princípio constitucional da dignaidade da pessoa humana.

Nessa espécie de mútuo a parte passiva é o consignante.

II – A LEI 1.046/50 E SUA REVOGAÇÃO POSTERIOR

A Lei 1.046/50 dispõe sobre a consignação em folha de pagamento e prevê, em seu artigo 16, que ocorrido o falecimento do consignante, ficará extinta a dívida.

A leitura dos arts. 3º e 4º da Lei 1.046/50 evidencia que se trata de legislação sobre consignação em folha de pagamento voltada aos servidores públicos civis e militares.

Inclusive, na mensagem de veto parcial ao projeto de lei 633-C/47, convertido na Lei 1.046/50, Sua Excelência, o então Presidente da República, registrou o objetivo de “ampliar as transações que constituem uma espécie de válvula de desafôgo à vida privada dos servidores públicos, permitindo-lhes encontrar com mais facilidade, nos momentos difíceis, sem constrangimentos ou vexames, o recurso que, por outra forma talvez, lhes seria impossível conseguir”.

 Sob essa ótica, o STJ orienta que, “após a edição da Lei nº 8.112/90, encontra-se revogada, no âmbito das entidades e dos servidores sujeitos ao seu regime, a disciplina de consignação em folha de pagamento disposta pelas Leis nºs 1.046/50 e 2.339/54” (REsp 688.286/RJ, 5ª Turma, julgado em 17/11/2005, DJ 05/12/2005). No mesmo sentido: AgInt no REsp 1.564.784/DF, 1ª Turma, julgado em 06/06/2017, DJe de 12/06/2017; REsp 1.672.397/PR, 2ª Turma, julgado em 21/09/2017, DJe de 09/10/2017.

Por sua vez, a Lei 10.820/03 também dispõe sobre a autorização para desconto de prestações em folha de pagamento, e dá outras providências, mas não tratou da hipótese de morte do consignante. Diante disso, decidiu o TRF/4ª Região que, com a edição da Lei 10.820/2003, "houve revogação global da Lei 1.046/1950, de modo que a não repetição do disposto no art. 16 da Lei 1.046/1950 implica sua revogação" (fl. 200, e-STJ).

 Pelo princípio da continuidade, inserto no art. 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINDB, excetuadas as hipóteses legalmente admitidas, a lei tem caráter permanente, vigendo até que outra a revogue. E, nos termos do § 1º do referido dispositivo, a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare (revogação expressa), quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior (revogação tácita).

Vale ressaltar que a LC 95/98, em seu art. 9º, evidencia que a opção do legislador é pela revogação expressa ou direta, porquanto estabelece que a cláusula de revogação deverá enumerar, expressamente, as leis ou disposições legais revogadas. No particular, todavia, infere-se que a Lei 10.820/03 não declarou, expressamente, revogada a Lei 1.046/50, tanto que esta ainda consta como formalmente vigente na página eletrônica da Presidência da República.

Já se tinha da doutrina que a lei vigora até que outra a modifique total ou parcialmente, revogando-a ou derrogando-a(como já se lia da Lei de Introdução, artigo 2º). A permanência é uma características da norma jurídica e, obviamente, da lei, havendo, entretanto, “leis periódicas”, que se destinam á vigência temporária. A expressão supressão(abrogatio) da lei, ou é total(revogatio) da lei, ou é total(revogatio), ou parcial(derogatio), conforme afeta toda a lei, ou da parte dela.

A lei posterior, do que se tinha na Lei de Introdução, revogava a anterior em três casos: a) quando expressamente o declare; b) quando seja com ela incompatível; c) quando regule inteiramente a matéria a matéria que tratava a lei anterior.

Todavia, quando a lei posterior(lei nova) estabelece disposições gerais ou especiais, ao lado das já existentes, sem que haja incompatibilidade entre elas, não revoga, nem modifica a lei anterior(Lei velha).

Ademais, a lei revogada não se restaura quando a lei revogada perde a vigência. Ensinou Oscar Tenório(Lei de Introdução ao Código Civil, 1955, 2ª edição, pág. 92, n. 140) “o advento de uma lei resulta, às vezes, na morte de outra. Esta não ressuscita, mesmo quando a lei que a eliminou do mundo jurídico, também se extinguiu. Somente por disposição expressa do legislador, a lei morta ressuscita, volta a ocupar lugar no sistema jurídico do país. Essa lei que ressuscita a lei morte, ou, sem metáfora, que restaura expressamente a lei revogada, se denomina “lei repristinatória” que restabelece o passado.

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Configura-se, pois, a ab-rogação tácita ou indireta da Lei 1.046/50, na medida em que a Lei 8.112/90 tratou, inteiramente, da matéria contida naquela, afastando, em consequência, a sua vigência no ordenamento jurídico. E, não havendo na lei revogadora previsão semelhante à do art. 16 da Lei 1.046/50, não há falar, a partir da entrada em vigor da Lei 8.112/90, em extinção da dívida por morte do consignante.

III – POSIÇÃO RECENTE DO STJ

A Lei 10.820/03 regula a consignação em folha de pagamento dos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT e dos titulares de benefícios de aposentadoria e pensão do Regime Geral de Previdência Social.

A  Lei 10.820/03 não se aplica à consignação em folha de pagamento de servidores públicos civis, mesmo porque tal hipótese é integralmente regida pelo art. 45 da Lei 8.112/90 e regulamentada, atualmente, pelo Decreto 8.690/16. Logo, é equivocado o entendimento de que a Lei 10.820/03 revogou a Lei 1.046/50, na medida em que ambas versam sobre situações absolutamente distintas. No entanto, mais uma vez, cabe ressaltar que, assim como na Lei 8.112/90, não há na Lei 10.820/03 a previsão de que a morte do consignante extinga a dívida por ele contraída.

Ali foi dito:

“A morte da pessoa contratante de crédito consignado com desconto em folha de pagamento (consignante) não extingue a dívida por ela contraída, já que a Lei 1.046/50, que previa a extinção da dívida em caso de falecimento, não está mais em vigor, e a legislação vigente não tratou do tema. Dessa forma, há a obrigação de pagamento da dívida pelo espólio ou, caso já tenha sido realizada a partilha, pelos herdeiros, sempre nos limites da herança transmitida. 

O entendimento da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi firmado ao negar recurso especial que buscava o reconhecimento da extinção da dívida pela morte da consignante e, por consequência, o recálculo do contrato e a condenação da instituição financeira a restituir em dobro os valores cobrados.

De acordo com o recorrente, a Lei 1.046/50 não foi revogada pela Lei 10.820/03, já que a lei mais recente não tratou de todos os assuntos fixados pela legislação anterior, de forma que não haveria incompatibilidade legal de normas sobre a consequência das dívidas em razão do falecimento do contratante do empréstimo.

A relatora do recurso especial, ministra Nancy Andrighi, destacou inicialmente que, pelo contexto extraído dos autos, não é possível confirmar se a consignante detinha a condição de servidora pública estatutária ou de empregada regida pelo regime celetista, tampouco foi esclarecido se ela se encontrava em atividade ou inatividade no momento da contratação do crédito.

A relatora também ressaltou que a Lei 1.046/50, que dispunha sobre a consignação em folha de pagamento para servidores civis e militares, previa em seu artigo 16 que, ocorrido o falecimento do consignante, ficaria extinta a dívida. Por sua vez, a Lei 10.820/03, relativa à autorização para desconto de prestações em folha dos empregados regidos pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), não tratou das hipóteses de morte do contratante e, na verdade, versa sobre situações distintas daquelas anteriormente previstas pela Lei 1.046/50.”

após a edição da Lei 8.112/90, foram suprimidas de forma tácita (ou indireta) as regras de consignação em pagamento previstas pela Lei 1.046/50.

De acordo com a relatora, mesmo sem ter certeza da condição da consignante (estatutária ou celetista), a conclusão inevitável é a de que o artigo 16 da Lei 1.046/50, que previa a extinção da dívida em caso de falecimento do consignante, não está mais em vigor. 

“Assim, a morte da consignante não extingue a dívida por ela contraída mediante consignação em folha, mas implica o pagamento por seu espólio ou, se já realizada a partilha, por seus herdeiros, sempre nos limites da herança transmitida (artigo 1.997 do Código Civil de 2002)”, concluiu a ministra ao negar provimento ao recurso especial.

A matéria foi objeto de discussão no REsp 1.498.200.

 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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