Audiência de conciliação para direitos públicos e indisponíveis.

16/07/2018 às 18:56
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Artigo 334, parágrafo 4º, II, do NCPC.

É necessário analisar com cautela a expressão “quando não se admitir autocomposição” (artigo 334, parágrafo 4º, II, do CPC). Isso porque, direitos que admitam autocomposição não são, necessariamente, direitos disponíveis, já que os direitos indisponíveis, que admitam transação, também podem ser objeto de mediação (artigo 3º da Lei 13.140/15).

Ravi Peixoto afirma que, no caso do artigo 334, parágrafo 4º, II, do CPC/15, não há menção à indisponibilidade dos direitos (e sim à autocomposição), “porque ela não pode ser confundida com a vedação da transação”[1]. Ou seja, o conceito de autocomposição é mais amplo do que o de direitos disponíveis.[2] Além disso, nem todo interesse público é indisponível, o que, inclusive, justifica os inúmeros acordos celebrados pelos entes públicos e também por suas autarquias.

Ravi Peixoto explica:

No âmbito administrativo, por exemplo, tem-se vários casos de transações autorizadas por lei. Tem-se os acordos em contratos administrativos (artigo 65 e 79, da Lei 8.666/1993), os acordos nos procedimentos sancionatórios do Cade (artigo 86, da Lei 12.529/2011), dentre outros. Outras hipóteses de direitos indisponíveis também admitem transação, a exemplo do acordo quanto ao valor e à forma de pagamento em ação de alimentos e o cabimento do compromisso de ajustamento de conduta em processos coletivos, hipótese em que o direito é indisponível (artigo 5º, parágrafo 6º, da Lei 7.347/1985). É inegável que a margem de liberdade para a realização de acordos pelo poder público é menor do que a existente para o setor privado.[3]

Para Ravi Peixoto há necessidade de autorização normativa para que o Poder Público possa transacionar em Juízo:

 Acontece que, quando a situação envolve o poder público, tem-se a prévia exigência de autorização normativa para que membro da advocacia pública possa transigir em juízo. Algumas leis possuem autorizações genéricas, tais como o parágrafo único do artigo 10 da Lei 10.259/2001 e o artigo 8º da Lei 12.153/2009. A necessidade de autorização normativa para a autocomposição pelos entes públicos decorre do princípio da legalidade (artigo 37, CF), que, em relação ao poder público, tem como uma de suas decorrências a exigência de que este só pode atuar na medida do que é autorizado por algum texto normativo. Essa autorização pode decorrer tanto diretamente da lei como ser feita por meio de ato normativo do chefe do Poder Executivo regulamentando o exercício da autocomposição pelo poder público. Isso tudo significa que, em tese, o poder público deveria ter os processos em que esteja envolvido inseridos na regra geral, qual seja, a realização da audiência, com exceção das hipóteses em que haja desinteresse de ambas as partes. No entanto, como também foi afirmado no tópico anterior, para que o procurador que atue no caso concreto possa vir a fazer a autocomposição, é imprescindível autorização normativa para tanto, o que, infelizmente, não é comum no Direito brasileiro. Em outras palavras, na grande maioria dos casos, o direito do ente público é, em tese, apto a ser alvo de autocomposição, mas inexiste autorização legal, o que implica, na realidade dos fatos, a sua inadmissão.Portanto, o posicionamento mais adequado é o de que, em inexistindo autorização no referido ente para a autocomposição, a audiência de conciliação ou de mediação não seja marcada. Não pelo desinteresse das partes, mas pela inadmissão da autocomposição (artigo 334, parágrafo 4º, II, CPC/2015), do contrário, seriam marcadas um sem número de audiência que não teriam qualquer utilidade, eis que o procurador não teria autorização para fazer qualquer proposta de acordo. Seria uma interpretação que estaria de acordo com a duração razoável do processo (artigo 6º, CPC/2015).[4]

Para identificar os casos em que há ou não autorização do Poder Pública na realização da audiênca, Ravi Peixoto explica a solução encontrada para solucionar o dilema:

Não parece adequado simplesmente pressupor a impossibilidade de autocomposição e o magistrado não marcar, como regra, tais audiências que envolvam o ente público por ir em contrário à lógica do CPC/2015 (artigo 3º, parágrafos 2º e 3º) que é a de incentivar a mediação e a conciliação. Apenas parece possível a simples não marcação da audiência quando houver algum ato normativo que expressamente vede a autocomposição. O advogado público, com base no dever de boa-fé (artigo 5º, CPC/2015), deve informar ao juízo a ausência de qualquer espécie de autorização normativa para a autocomposição já na petição inicial, quando autor, ou até 10 dias antes da audiência, quando réu.

De toda forma, essa ainda não é uma boa solução, especialmente porque ainda dependeria de uma decisão do magistrado reconhecendo a impossibilidade de autocomposição. Especialmente quando o ente público seja réu, isso poderia acabar acarretando em uma audiência inútil, não sendo difícil de imaginar que não haja tempo hábil para uma decisão sobre esse tema entre a petição e a ocorrência da audiência. Aqui, ao contrário dos casos em que a audiência não é feita pela manifestação de vontade de ambas as partes, caso em que o seu cancelamento é automático e o prazo da contestação já começa do protocolo do pedido de cancelamento do réu, há expressa necessidade de decisão. Não parece possível aplicar o artigo 335, II, do CPC/2015 para os casos em que a audiência não é feita por requerimento do réu alegando que o direito não pode ser alvo de autocomposição. O juiz deve avaliar se é possível ou não a autocomposição do direito para que a audiência seja desmarcada e o prazo da contestação possa iniciar. Portanto, apenas após a decisão do juiz é que a audiência pode ser considerada cancelada, e o prazo da contestação seria iniciado.

A melhor solução, no entanto, é a realização, entre os entes públicos e o Poder Judiciário, de protocolos institucionais. Por meio deles, de forma prévia a instauração dos conflitos, o próprio ente público já poderia informar ao Poder Judiciário em quais casos é ou não possível a autocomposição. Dessa forma, já na instauração do processo, não haveria necessidade de qualquer discussão sobre o cabimento ou não da audiência, ao menos do ponto de vista do artigo 334, parágrafo 4º, II, pois já se teria conhecimento dos casos em que o direito do ente público poderia ser alvo de autocomposição.

Mesmo que não haja nenhum protocolo institucional, parece possível utilizar-se do conceito de fato notório judicial, que seria o fato que, embora desconhecido na vida social, é conhecido pelos magistrados, em geral, em razão do seu ofício, a exemplo de processos anteriores para que o juiz, mesmo quando o ente público seja réu, já faça o despacho da petição inicial com a indicação da citação para contestar e não para comparecer à audiência.

Afinal, se o ente público, por exemplo, em diversos processos que tratem de responsabilidade civil, alega que não possui autorização normativa para autocompor, torna-se um fato notório para o juiz que, nessas espécies de casos concretos, isso não é possível e que aquele direito não pode ser alvo de autocomposição pelos entes públicos. Portanto, baseando-se na própria informação dos entes públicos em outros processos, poderia o juiz, no despacho inicial, fundamentando nessa constatação, sequer intimar o ente público para participar da audiência e já citá-lo para contestar. Afinal, já seria uma espécie de fato notório judicial, que, naqueles casos, o ente público não tem qualquer autorização para conciliar ou mediar.

No entanto, cabe ao advogado público informar ao juízo caso sobrevenha alguma autorização para autocompor, como forma de obedecer ao artigo 3º, parágrafo 3º, do CPC/2015, que comanda, também aos advogados, o estímulo aos meios de autocomposição. Esse dever foi também destacado pelo Enunciado 573, do FPPC, segundo o qual “as Fazendas Públicas devem dar publicidade às hipóteses em que seus órgãos de Advocacia Pública estão autorizados a aceitar autocomposição”.

Com base no entendimento do Doutrinador Didier Junior [5]: Inicialmente, é preciso que seja desfeito o mito de que a indisponibilidade do interesse público teria aptidão para impedir acordos pelos entes públicos. A verdade é que nem todo direito indisponível implica a impossibilidade de haver transação que o envolva.

Assim mesmo em situações que envolvam interesses públicos e direitos indisponíveis, as partes podem, em tese, transacionar, não fazendo sentido o juiz descartar desde logo a audiência como ocorreram nos seguintes processos:

Processo 0169482-15.2016.4.02.5101 (2016.51.01.169482-2), 9ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro: “1 - O Novo Código de Processo Civil, em seu artigo 3º, parágrafos 2º e 3º, privilegiou as soluções consensuais dos conflitos, mediante a colaboração das partes. Por isso fixou, no artigo 334, caput, ser necessária a realização de audiência prévia de conciliação ou de mediação, para os demandantes comporem seus interesses, antes de o feito efetivamente começar a ter seu mérito apreciado. No presente feito, porém, entendo não ser cabível a realização de tal ato, eis que nele figura como parte ré um ente público (INPI), que já se manifestou através do OFÍCIO CIRCULAR n. 00006/2016/GAB/PRF2R/PGF/AGU, de 17/03/2016, da Procuradoria Regional Federal da 2ª Região, arquivado na Secretaria deste Juízo, sobre a impossibilidade de autocomposição, impondo-se a utilização do preceito do parágrafo 4º, inciso II, do artigo 334, do CPC/2015, sem prejuízo de eventual acordo durante a tramitação do processo.

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Processo AG 50136075020174040000 5013607-50.2017.404.0000. Orgão Julgador QUINTA TURMA Julgamento. 6 de Abril de 2017. Relator. ROGERIO FAVRETO. Trata-se de agravo de instrumento interposto contra decisão proferida pelo Juízo de Direito da 1ª Vara da1ª Vara da Comarca de Torres - RS que deferiu a antecipação de tutela para conceder o adicional de 25% à aposentadoria por idade da parte autora nos seguintes termos (evento 1, AGRAVO2, pg. 21/22): "Vistos. Recebo a inicial. Defiro a AJG. TUTELA DE URGÊNCIA. ADICIONAL DE 25% À APOSENTADORIA POR IDADE. DEFERIMENTO. Trata-se de Ação Previdenciária de Majoração de Benefício com pedido de tutela de urgência, requerendo o acréscimo de 25% sobre os valores dos proventos, nos termos do art. 45 da lei 8.213/91. Pois bem. A liminar pleiteada deve ser deferida, porquanto presentes os requisitos do art. 300 do novo CPC/15. - Deixo de designar audiência inicial de conciliação, sem prejuízo da realização em momento posterior, pois a parte demandada é pessoa jurídica de direito público, não sendo admitida a autocomposição (art. 334, § 4º, inciso II, do CPC/15), bem como pelo envio de ofício pela Procuradoria Federal no sentido de deferir a dispensa de realização das audiências previstas no art. 334 do novo CPC/15.(...). Grifei.

Portanto em ações de direito de família – direito indisponível –, é possível transacionar algumas obrigações, como por exemplo, os alimentos e visitação; Também em lides sobre erro médico envolvendo menores, pode-se conciliar sobre os valores devidos, ouvindo-se o Ministério Público, igualmente, não faz sentido tal decisão:

Considerando tratar-se de direitos indisponíveis, revelando-se inviável a autocomposição, deixo de designar audiência de conciliação, na forma do artigo 334, parágrafo 4º, II do Novo CPC. Assim, citem-se e intimem-se, de ordem, por OJA de plantão, se necessário for (...). Processo 0015993-13.2016.8.19.0004, em curso na 8ª Vara Cível do Rio de Janeiro.

Nas ações envolvendo recuperações judiciais, que, normalmente, englobam interesses públicos e direitos indisponíveis, destaca-se a decisão proferida por Fernando Viana, juiz titular da 7ª Vara Empresarial/RJ, que, em processo envolvendo a operadora OI, determinou que o conflito entre os acionistas fosse encaminhado para a mediação.

Tal decisão foi posteriormente mantida pelo Superior Tribunal de Justiça:  “STJ determina mediação no processo de recuperação judicial da operadora Oi. Disponível em http://www.conjur.com.br/2016-set-07/stj-determina-mediacao-processo-recuperacao-judicial-oi. Acesso em 02.03.17”.

Portanto com base nas argumentações acima, não basta existir o interesse público e o direito indisponível, para automaticamente e de forma abstrata, não designar a audiência de conciliação/mediação.


[1]PEIXOTO, Ravi. A nova sistemática de resolução consensual de conflitos pelo Poder Público – uma análise a partir do CPC/2015 e da Lei 13.140/15. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, nº. 261, nov./2016, p. 473.

[2] WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; RIBEIRO, Leonardo Ferres da Silva; CONCEIÇÃO, Maria Lúcia Lins; MELLO, Rogerio, Licastro Torres de. Primeiros comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 353.

[3] PEIXOTO, Ravi. A Fazenda Pública e a audiência de conciliação no novo CPC. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-abr-07/ravi-peixoto-fazenda-audiencia-conciliacao-cpc, acessado em 01/03/2017.

[4] PEIXOTO, Ravi. A Fazenda Pública e a audiência de conciliação no novo CPC. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-abr-07/ravi-peixoto-fazenda-audiencia-conciliacao-cpc, acessado em 01/03/2017.

[5]DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. 17ª ed. Salvador: Juspodivm, 2015, v. 1, p. 625; SOUZA, Luciane Moessa de. Meios consensuais de solução de conflitos envolvendo entes públicos e a mediação de conflitos coletivos. Tese de Doutorado. Florianópolis: UFSC, 2010, p. 130-131.

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