Ainda em minha juventude, tive a grata satisfação de conhecer e admirar o General Leônidas. Porém, foi somente em novembro de 2010 - ocasião em que foi-me concedido o duplo privilégio de ser agraciado com o título de Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), em extraordinária companhia deste que se constitui em um dos mais respeitados líderes do Exército Brasileiro - que travei uma especial amizade com o grande soldado do Brasil e excepcional figura humana que inspirava a todos que o conheciam. Dos muitos contatos que tive com este já saudoso chefe militar, impressionava sua coerência e clareza no trato dos dados históricos. Esta característica ficou registrada em entrevista concedida na Câmara dos Deputados em 21 de novembro de 2008[i], da qual alguns trechos peço vênia para aqui compartilhar na tentativa de perenizar a presença deste grande amigo.
José Ortega, filósofo espanhol, ensinou que o "homem é o homem e suas circunstâncias". Deste modo, é fácil compreender como o notável brasileiro Leônidas Pires Gonçalves passou para a posteridade como um dos grandes homens da recente democracia brasileira.
De fato, a senda na qual o ilustre líder do Exército Brasileiro no último quarto do século XX se forjou foi plena de experiências engrandecedoras. De início, atendeu ao chamado irresistível do sacerdócio das armas; oriundo de Cruz Alta/RS, e sem tradição militar na família, habilitou-se em difícil concurso público (1850 candidatos para 200 vagas) para o ingresso na Escola Militar do Realengo/RJ em 1939. Interessante frisar que se poderia estar louvando agora um Brigadeiro, visto que boa parte dos integrantes daquela turma foram para a Aeronáutica, Força que estava sendo formada a época. Declarado oficial de artilharia em 1942, o Aspirante Leônidas serviu por dois anos em uma organização militar estacionada nas praias de Rio Grande/RS, ainda sem aquartelamento. Sem dúvida, as adversidades daquele tempo contribuíram para amalgamar o caráter do futuro estadista.
Leônidas não deixou que o fato de não ter sido convocado para integrar, durante a Segunda Guerra Mundial, a Força Expedicionária Brasileira (FEB), para a qual se voluntariara várias vezes, lhe abatesse o moral ou apagasse a estrela da carreira que apenas iniciava. Seu desempenho profissional como Tenente nos Fortes de Santa Cruz e Copacabana, já no Rio de Janeiro, confirmou a boa imagem de militar de escol estabelecida desde os bancos escolares. Deste modo, o General Álcio Souto, seu antigo comandante na Escola Militar do Realengo, lhe convidou para servir como seu ajudante de ordens no comando do Divisão Blindada no Rio de Janeiro. O destino já iniciava, então, a preparação do futuro líder.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, na qual o Brasil formara entre os vitoriosos contra as ditaduras de direita (Nazismo e Facismo), não cabia mais o governo de um ditador. Neste contexto, a fim de possibilitar o curso histórico da vocação democrática brasileira, em 29 de outubro de 1945, no interior do Palácio da Guanabara estavam presentes o General Álcio Souto, comandante militar do maior poder de combate estacionado no Rio de Janeiro, a Divisão Blindada, seu Chefe de Estado-Maior, o Major Ernesto Geisel e o ajudante de ordens do aludido comandante blindado, o Tenente Leônidas. Assim, ainda no alvorecer da carreira, o futuro líder já fora testemunha e cúmplice de um dos principais acontecimentos da história política nacional: a deposição de Getúlio Vargas e o fim dos sombrios anos da ditadura do Estado Novo.
Ainda no contexto da vivência do ambiente político nacional, o Tenente Leônidas atuou na Casa Militar do governo Dutra, do qual o General Álcio Souto fora o Chefe do Gabinete Militar. Foi desta época o testemunho das reuniões que culminaram com a promulgação da Constituição de 1946. Aqui se registra o aprendizado da obediência constitucional, traduzido pelas próprias palavras de Leônidas:
Eu participei [...] da reunião do Congresso para a Constituição de 1946, [...]. Então essa foi a turbulência que eu vi, porque o Governo do Marechal Dutra é considerado um Governo tranquilo do ponto de vista democrático, porque ele era um homem de autoridade e não deixou que as coisas perdessem o rumo. Nós tínhamos passado por vários episódios duros antes do retorno da democracia, durante o período do Presidente Vargas, da ditadura do Presidente Vargas, e o Dutra deu uma calmaria política ao Brasil.
Seguindo seu curso, as circunstâncias impuseram a continuação do aperfeiçoamento profissional do militar Leônidas. Promoção a Capitão e a Major, serviço na ECEME, como aluno e como instrutor. Foi neste período que teve início um novo ciclo de aprendizado político. Desta vez, tendo como mestre seu antigo instrutor na Escola Militar do Realengo e na própria ECEME, nesta também como comandante: o Coronel Castello Branco.
Há quem diga que parte da comunidade acadêmica brasileira deixou de se pautar pela "verdade científica" para se guiar pela "verdade ideológica" (ou "verdade ideologizada"). A propósito, o historiador Marco Antônio Villa cunhou a expressão que deu título ao excelente artigo "Gigolôs da Memória" (O Globo, 08 Abr 14). Talvez esta conjuntura explique o motivo pelo qual Humberto de Alencar Castello Branco não seja reconhecido nacionalmente como um herói da estabilidade institucional brasileira. Grande conhecedor da ciência militar, primeiro colocado de turma, instrutor de tática e comandante da ECEME, Castello, como Tenente-Coronel, foi oficial de operações da FEB tendo contribuído diretamente para o sucesso militar do Brasil nos campos da Itália. Dono de reconhecida liderança e admiração no meio militar brasileiro, era um insuspeito democrata e um intransigente legalista. Neste sentido, dignas de nota são as impressões de Leônidas sobre esta figura ímpar do Exército Brasileiro:
O Castelo foi um homem interessante, porque o Castelo eu conheci, eu era cadete e ele era major instrutor de tática na Escola de Estado Maior. Já tinha auréola de grande oficial. Nós já olhávamos aquele homem, porque ele nunca foi beneficiado pelo aspecto físico, mas se deixasse conversar estava envolvido.
Ele passava naquele pátio: "Lá vai o Castelo, lá vai o Castelo". Ele era major. Depois, ele foi para a FEB. Sabe que na FEB, realmente, do ponto de vista operacional, quem comandava a Força Expedicionária Brasileira era ele, era tenente-coronel e coronel. A gente, que conhece bem a nossa hierarquia, sabe quanto de qualificações, de competência precisa ter um oficial para se projetar como tenente-coronel e coronel num ambiente de guerra como ele se projetou. O ataque do Monte Castelo, da vitória, foi planejado integralmente por ele.
Então, quando ele voltou, realmente, ele era um homem bastante conhecido, bastante respeitado. Foi promovido a general, começou a ter as suas missões e foi comandante da Escola de Estado Maior, onde eu tive o privilégio de servir com ele e aprendi muito com ele e onde eu tive também a possibilidade de me aproximar mais dele. E sempre a sua capacidade de transmitir idéias, de transmitir pensamentos, de transmitir orientações era apreciada e respeitada. [...]
[...] eu fui ligado ao General Castelo, tive esse privilégio no período em que fui instrutor da nossa Escola de Comando de Estado-Maior, quando o conheci — já o conhecia, obviamente, mas tive a oportunidade de me aproximar dele. Era um homem — para repetir o conceito que todos têm — culto, preparado, um estadista, impoluto, com conduta pessoal impecável, respeitado e respeitável.
Complementando este período de evolução profissional, o Major Leônidas experimentou novo contato com as intimidades do ambiente político nacional. Fora assistente do General Pedro Geraldo de Almeida, Chefe do Gabinete Militar do Presidente Jânio Quadros; o presidente que se projetou nacionalmente com a mais expressiva votação popular de até então, cuja gestão foi marcada por um árduo combatente contra a corrupção endêmica inaugurada pelo getulismo e difundida por seus herdeiros políticos. Nesta circunstância, Leônidas vivenciou não somente a esperança do país finalmente ingressar no contexto de uma verdadeira democracia, como também a desconcertante surpresa da renúncia presidencial e a dinâmica da instabilidade política que se precipitaria sobre o Brasil.
Aqui vale ressaltar o advento da Guerra Fria na qual o continente americano (e forçosamente o Brasil) estava inserido a época. De 1961 a 1964 houve a intensificação da denominada bipolaridade confrontativa indireta, conduzindo o mundo ao auge da confrontação leste-oeste, cabendo destacar como momento de extrema tensão o episódio da crise dos mísseis em Cuba em outubro de 1962. O malgrado acordo Kennedy-Khrushov permitiu também a irradiação do comunismo pelas Américas, ampliando, sobremaneira, o risco em relação ao Brasil. Este perigo ficou materializado na infiltração política no seio das Forças Armadas com vistas a cooptação, divisão e quebra da hierarquia e disciplina.
No decorrer da turbulência própria do início da década de 1960, o Tenente-Coronel Leônidas voltou a servir sob as ordens de Castello Branco no Estado-Maior do Exército. Assim, como Oficial de Estado-Maior, e, portanto, discípulo castellista (e de seus ideais democráticos), contribuiu, no contexto do movimento contra-revolucionário de 1964, para que fosse evitada a implantação de uma nova ditadura em nosso País, por meio da introdução de um regime totalitário, de feição comunista, numa espécie de reedição do Estado Novo, com novas bases ideológicas, mas com o mesmo viés antidemocrático. Novamente recorro às recordações do próprio General Leônidas sobre aquela época:
E todos sabem muito bem que o General Castelo jamais tinha participado de uma revolução. O General Castelo foi um homem legalista a vida inteira. Então, eu me perguntei e dei a resposta: por que o General Castelo concordou em liderar a Revolução de 64? O primeiro motivo foi o problema da quebra da hierarquia e da disciplina. Enfim, isso foi o último momento. A verdade é que a Revolução de 64 não foi política, foi uma revolução ideológica. E foi por isso que ele ingressou na Revolução de 64. Esse é o meu ponto de vista. Se fosse uma revolução política, eu tenho certeza de que ele seria contra, como foi contra sempre. Mas quando ele viu que o problema não era político-partidário, e sim um problema ideológico, e que a ideologia que iria se implantar no Brasil era contra as nossas características, contra as características do nosso povo, dos nossos desejos, ele tomou para si a responsabilidade e o fez de maneira bastante prudente, na minha opinião.
Ainda no calor dos acontecimentos de março de 1964, o Tenente-Coronel Leônidas seguiu para a Vila Militar do Rio de Janeiro sob o Comando do General Orlando Geisel. No entanto, seus mais relevantes serviços foram prestados na Casa Militar do Presidente Castello Branco. Ainda neste enfoque, o Coronel Leônidas compôs o núcleo articulador que deu a direção institucional ao movimento ao lado de nomes como Geisel, Adhemar de Queiroz, Golbery e Ivan Mendes.
Deste modo, esteve ao lado de Castello e de seu braço direito, Ernesto Geisel (então General de Brigada e Chefe da Casa Militar), em diversos desafios que o movimento cívico-político-militar de 1964 impunha ao governo eleito (indiretamente) pelo Congresso Nacional (legitimado pelas mesmas urnas que havia igualmente concedido ao Presidente Jânio Quadros – com seu mote "varre-varre vassourinha" alusivo à desenfreada corrupção relativa à era Vargas e a seus herdeiros políticos – a mais expressiva votação da história do Brasil), como a edição das Leis nº 4.898/65 (Lei contra o Abuso de Autoridade) e 4.717/65 (Lei contra a corrupção e que inaugurou a denominada Ação Popular em nosso país).
Com efeito, é possível asseverar que o então Cel Leônidas testemunhou e participou de várias das medidas que contribuíram para a consolidação da estabilidade institucional que o Brasil passou a ostentar a partir de então. Uma delas nos lembra o insuspeito jornalista A. C. Scartezini (Rara Lição da Ditadura, O Globo, 22 mai. 2015, p. 19):
ao assumir o poder, o Marechal Castelo Branco providenciou uma reforma nas Forças Armadas que criou a chamada expulsória (compulsória): a partir dos 70 anos, os militares passam à reserva automaticamente. Além da idade, duas providências abreviaram a carreira de generais: nenhum oficial podia ser general por mais de 12 anos; e cada um dos três graus do generalato devia renovar anualmente um quarto de seu quadro. [...] Os coronéis deviam permanecer na patente por pelo menos sete anos, mas não mais do que nove. A ideia era castrar (impedir) o amadurecimento de lideranças (políticas) internas entre militares.
Não sem motivo, o movimento de 1964 marca o ocaso de uma longa tradição histórica brasileira de envolvimento das Forças Armadas na evolução política nacional. Neste sentido, a marca deixada pelo governo Castello é sintetizada na sua célebre frase ao deixar a presidência: "encontrei impasses e deixei opções para o Brasil".
Ao final do governo Castelo, o Coronel Leônidas volveu-se às lides típicas da carreira militar, tendo sido adido militar na Colômbia, comandante uma unidade de artilharia e cursado a Escola Superior de Guerra. Galgou o generalato em meados da década de 1970.
Como General, Leônidas foi Chefe do Estado-Maior do I Exército (atual Comando Militar do Leste), Comandante Militar da Amazônia e Comandante do III Exército (atual Comando Militar do Sul). Nesta última função foi convidado por Tancredo Neves, - o grande conciliador do Brasil - , para ser Ministro do Exército no primeiro governo civil desde 1964.
Àquela altura, como reconhecido e respeitado líder do Exército Brasileiro, Leônidas foi, ao mesmo tempo, eleito por e eleitor de Tancredo, confiante que estava nas credenciais democráticas do futuro Presidente e, sobretudo, na capacidade de liderança do novo estadista em conduzir a nação para além da crise que se aprofundava ao final da gestão do Presidente Figueiredo.
Foi também nesta circunstância que o General Leônidas demonstrou estar à altura das responsabilidades que lhe foram incumbidas. Fruto de sua formação e sua vivência, atuou com efetiva liderança no momento do impasse instalado após a morte de Tancredo, tendo sido o fiador político da posse de Sarney, completando, assim, a obra castellista que sempre pugnou por um civil no poder.
Como Ministro do Exército do governo Sarney, encontrou uma conjuntura claramente negativa, segundo se infere de seu próprio relato:
[...] ressentimentos, frustrações em relação ao Exército quando pingam recursos orçamentários para o Exército, negando ao Exército recursos compatíveis com as dimensões do Brasil, com a responsabilidade da instituição. [...] E só temos um Exército direitinho, arrumado, operacional, dentro das nossas limitadas responsabilidades, porque a nossa gente é muito competente.
No entanto, mesmo diante de um contexto desfavorável sob o ponto de vista político e financeiro, o Ministro Leônidas conduziu, tal qual Castello, transformações estratégicas que modernizaram e prepararam a Força Terrestre para o século XXI. Dentre as quais, destacam-se a criação do Curso de Política Estratégia e Alta Administração do Exército (CPEAEx - curso no qual tive a honra de lecionar já na terceira turma, em 1990), e da Escola de Administração do Exército (EsAEx - escola pioneira no ingresso do segmento feminino na carreira do Exército Brasileiro), a duplicação da Academia Militar das Agulhas Negras (AMAN), a implantação da Aviação do Exército e o Sistema de Guerra Eletrônica, além dos projetos Calha Norte e Força Terrestre 90, bem como a modernização dos uniformes da Força Terrestre.
Com certeza, a visão institucional, sempre norteada pelos valores democráticos e consonantes com os mais legítimos interesses nacionais, legados da administração do General Leônidas, contribuíram para que o Exército Brasileiro sempre tenha figurado entre as instituições mais confiáveis segundo a própria percepção da população brasileira.
Assim, recorro a uma expressão de Bertold Brecht, do gosto do meu amigo General Leônidas: "a verdade é filha do tempo". O tempo trará o distanciamento histórico necessário para a leitura científica deste rico período da história política do Brasil que, em última análise, legou as circunstâncias que tornaram o General Leônidas o líder que foi, merecedor da alcunha de "general-estadista" por parte do atual Comandante do Exército, Gen Villas Bôas. Deste modo, concluo a presente homenagem com um pedido e esclarecimento do próprio Leônidas Pires Gonçalves:
Eu peço sempre que a sociedade brasileira nos faça justiça, porque nunca admitimos ditaduras no Brasil, quer de direita, quer de esquerda. Por isso que nós participamos da derrubada do Dr. Getúlio e depois participamos também da derrubada do Jango, com seus auxiliares e colaboradores.
Nota
[i] Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/a-camara/conheca/historia/historia/historiaoral/Memoria%20Politica/Depoimentos/leonidas-pires-goncalves/texto>. Acesso em 10 jun. 2015.