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Pneus para queimar ou para rodar?

30/07/2018 às 18:30
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Não interessa, ao menos neste rápido comentário, o debate sobre as motivações eleitoreiras, a demagogia, os efetivos objetivos desses arautos; a estultice é sinalizada quando o tema já vem conjugado com a ordem de queimar pneus.

No agitado abril de 2018, repetiram-se os discursos incentivando a invasão e a apropriação de imóveis, tema que é importantíssimo para cada brasileiro e especialmente caro aos estudiosos da constituição, do direito civil e, óbvia e particularmente, da legislação imobiliária.

Não interessa, ao menos neste rápido comentário, o debate sobre as motivações eleitoreiras, a demagogia, os efetivos objetivos desses arautos; a estultice é sinalizada quando o tema já vem conjugado com a ordem de queimar pneus.

Esses discursos ainda seguem ideários totalitários que morreram – ou deveriam ter morrido – no século passado, exatamente por terem como denominadores comuns as mentiras, a tirania, os crimes inumanos, não funcionarem em benefício do povo de qualquer prisma. Somente mereceriam depósito em museus: que sejam recordados para que os malfeitos não se repitam.

Especificamente quanto à habitação nas cidades, a incitação às invasões – grita clássica desses potentados – não resultou em algo positivo. Ora, qual o meio melhor – factível, pacífico, coerente com os anseios sociais – de incrementar o acesso à moradia? Penso que encontramos, no Brasil, a resposta eficaz e inteligente.

Pesquisemos: essas ideias violentas já tinham sido expostas (não, esses discursos não são novos!) podendo ser lembrado o pensar de Engels que, em 1873, achava que o combate à falta de moradias “só poderá ser feito mediante a expropriação dos atuais possuidores, ou então mediante a acomodação, nessas casas, de trabalhadores sem teto ou trabalhadores aglomerados nas moradias atuais”[1].

Nada diferente das invasões disparadas por “Movimentos”[2] no centro de São Paulo, repelidas por meio de ações de reintegração então movidas pelos proprietários e que mais recentemente motivaram ações possessórias contra os invasores remanescentes, intentadas pelos próprios Movimentos[3]! 

Aliás, o autor alemão dizia que: “Está claro como a luz do sol que o Estado atual não pode nem quer remediar o flagelo da falta de moradias. O Estado nada mais é que a totalidade do poder organizado das classes possuidoras, dos proprietários de terras e dos capitalistas em confronto com as classes espoliadas, os agricultores e os trabalhadores. O que não querem os capitalistas individuais (e são só eles que estão em questão aqui, dado que, nesse assunto, o proprietário de terras também aparece, em primeira linha, em sua qualidade de capitalista) tampouco quer o seu Estado”[4].

A prática brasileira mostrou quão torta era essa visão: Estado, capitalistas, moradores, sociedade tiveram, sim, interesse em solucionar a questão. Melhor que isso, por aqui se seguiu caminho frutuoso, conseguindo-se nortear as atividades imobiliárias com bom arcabouço legal.

É fácil provar essa afirmação lembrando a nossa tradição legislativa, visível na sequência de constituições e no Código Civil de 1916, prevendo a aquisição da propriedade por ato entre vivos primordialmente, mas também por usucapião, privilegiada a posse que, além de longa, fosse tranquila, possível naquele código – como no atual – a soma do período do possuidor atual ao do antecessor: é a consolidação da propriedade imóvel de maneira pacífica.

O Código Civil de 2002 não descurou do apego à paz realizada pela legalidade, mas evoluiu, exigindo o exercício do direito de propriedade consoante as finalidades sociais e econômicas, com respeito ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e artístico, sem permitir abusos e sempre atentando às necessidades e aos anseios sociais. Foi acrescido – realce neste voo sobre as opções nacionais – pela Lei 11.481/07, no que diz com a concessão de uso especial para moradia e do direito real de uso.

Este o sucesso conduzido no País: a liberdade e o incentivo, conjugados com a certeza de que cada ato ou contrato se espraia socialmente, por isso merecendo os adequados cuidados. Nessa lógica, o hoje ministro Edson Fachin expôs, tratando do Código Civil de 2002: “Sabe-se que quem contrata não apenas contrata com quem contrata, e que quem pactua não avença tão-somente o que contrata; há uma transformação subjetiva e objetiva relevante nos negócios jurídicos. O novo Código traz a função social do contrato e os princípios de probidade e boa-fé”[5].

Ao longo da história mudaram as necessidades das pessoas, os métodos construtivos, os hábitos, as economias, as características dos negócios, e “com o agravamento do problema habitacional, a superposição de unidades residenciais, profissionais e comerciais e a proliferação crescente de edifícios em regime condominial nas capitais e no interior, todos estavam conscientes da necessidade de um provimento urgente...”, constatou Caio Mario da Silva Pereira[6], concluindo, acerca da Lei 4.591/64: “A nova lei reguladora do Condomínio e Incorporações veio preencher lacuna sempre lamentada e imprimir sistema e ordem à matéria. Todos sentiam a falta, todos reclamavam. E a todos veio a nova lei atender”.

Foi, realmente, perfeita ilustração do êxito que alcança lei que atenda adequadamente ao querer das pessoas, sem foguetório. Prova-se: essa legislação já completou 50 anos e resiste incólume e em funcionamento, como a sociedade deseja.

Não somente nessa esfera do progresso das relações imobiliárias tivemos a adequada atenção legal. Tínhamos um problema: “Após um saudável período de equilíbrio, em que predominou o sistema de livre mercado, preconizado pelo Código Civil, seguiu-se uma fase de forte dirigismo, em que o Estado, através da Lei nº 1.300/50, praticamente paralisou o setor, graças às restrições que impôs aos locadores. Bastou, entretanto, que o choque do petróleo, na década de 1970, voltasse a alimentar a inflação, e adiar os nossos sonhos de ingresso no Primeiro Mundo, para que o Estado voltasse a intervir no mercado, já agora com a Lei nº 6.649/79, que procurava compensar a fraqueza econômica do locatário, tornando-o juridicamente forte”, escreveu Sylvio Capanema de Souza[7].

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O desequilíbrio consequente foi danoso (recordam-se os imóveis trancados, os dramas da locação) e a situação teve solução uma década depois, quando, superando a intervenção cujos efeitos claudicavam, a Lei 8.245/91 corporificou alentado desenvolvimento jurisprudencial e a boa doutrina, a resultar no diploma que melhor funcionou ou, mais exatamente, que melhor permitiu a operação das locações (alcançado, por conseguinte, o seu objetivo social), a ponto de nessas décadas ter exigido, tão somente, acréscimos pontuais, modernizadores.

Note-se que essa lei que organizou e incentivou as locações se contrapôs diametralmente ao que era imaginado século e meio atrás naquela borbulhante Europa, desta vez por Mulberger: “Sendo assim, a abolição da moradia de aluguel é uma das aspirações mais fecundas e grandiosas que brota do seio da ideia revolucionária e deve se tornar uma exigência de primeira grandeza por parte da democracia social”[8].

Mais recentemente, se vê nesse passeio sobre as soluções alcançadas pela nossa legislação imobiliária, tivemos a Lei 13.465/17, trazendo importantíssimos instrumentos de regularização fundiária e instituindo o direito de laje, o condomínio urbano simples, o condomínio de lotes, o loteamento de acesso controlado, novamente entregando à sociedade o que ela buscava.

A linha de pensamento e de desenvolvimento expressos na boa legislação nacional trouxe resultados palpáveis, como mostram os números ainda anteriores aos últimos e fortes programas de desenvolvimento habitacional. É o que se conclui do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)[9].

De fato, o censo constatou que em 2010 existiam 57,3 milhões de domicílios particulares, contra 44,7 milhões em 2000. Ou seja, a quantidade de domicílios cresceu 28%, crescimento de enorme relevância quando visto que correspondeu a mais que o dobro do crescimento da população: 12,3% na década. Isso significa que mais gente pôde morar adequadamente.

Decorrência – também – da boa legislação mencionada, naquela década a quantidade de apartamentos subiu 43%; as moradias classificadas como “de favor” caíram de 10% para 8% – mais pessoas deixaram de depender de terceiros; os domicílios alugados somaram 10,5 milhões – retratando o cumprimento ao preceito constitucional do direito à moradia.

Na verdade, seguimos hoje – ainda bem, e a estatística documentou o êxito – nosso próprio e efetivo querer – em vez de copiar os alheios, sendo curioso anotar que, em 1869, mesma época dos estrangeiros antes mencionados, José de Alencar disse: “Um código Civil não é obra da ciência e do talento unicamente; é, sobretudo, a obra dos costumes, das tradições, em uma palavra, a civilização, brilhante ou modesta, de um povo”[10].

É natural concluir que o pensar e o agir mais cautelosos e orientados em moldes realmente mais favoráveis à sociedade trouxeram muito mais benefícios que os discursos estridentes: usar os pneus para rodar, e não para fazer fumaça, se mostrou muito bom.


NOTAS

[1]ENGELS, Friedrich. Sobre a questão da moradia (“Zur wohnungsfrage”). trad. Nép. 3LS, ob. it.elio Schneider, 1ª ed., São Paulo: Boitempo, p.56, 2015.

[2] Um depoimento: foram várias as invasões em São Paulo seguidas do aluguel, pelos “Movimentos”, das unidades que eram entregues precariamente e em condições insalubres (os prédios estavam às vésperas de serem reformados). Os aluguéis não foram baratos (afinal, eram imóveis bem localizados) e poucos inquilinos sabiam que os contratos verbais seriam rompidos abruptamente, no dia da reintegração de posse judicialmente ordenada...

[3] A desocupação do Cambridge. O Estado de S. Paulo, São Paulo, 29 mar. 2018, p. A3.

[4] ENGELS, op. cit., p.100.

[5] FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil Brasileiro. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, p. 331, 2003.

[6] SILVA PEREIRA, Caio Mario. Condomínio e incorporações. 10ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 9 – prefácio à segunda edição, 1999.

[7] SOUZA, Sylvio Capanema. A lei do inquilinato comentada. 8ª ed., Rio de Janeiro: Forense, p. 3, 2012.

[8] MULBERGER, apud ENGELS, op. cit. p. 3.

[9] www.ibge.gov.br/estatísticas.

[10]ALENCAR, 1869 apud BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil comentado. Edição histórica, Rio de Janeiro:Ed. Rio, 1976.

Sobre o autor
Jaques Bushatsky

Advogado e administrador de empresas. Fundador e diretor da Mesa de Debates de Direito Imobiliário (MDDI). Integrante do Conselho Jurídico do Secovi-SP. Com mais de 30 anos de experiência, é especialista nas áreas de Condomínio e Locação. É sócio da Advocacia Bushatsky.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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Artigo selecionado para a Revista Debate Imobiliário, edição inaugural, publicada pelo IBRADIM - Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário (SP).

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