A corrupção na/da política

Quem for santo(a), que atire a primeira pedra.

02/08/2018 às 14:20
Leia nesta página:

Sem política, boa ou má, resta apenas o fascismo - que é a negação do animal político. Deste modo, corrompe-se o ser humano como ser social. Isto é, desnaturalizado - isolado da política -, o animal político é dessocializado e abatido como presa dócil.

O país vive em meio a uma onda de denúncias e de caça às bruxas na seara política. A corrupção é tão grande, como é noticiado e como vemos ou ouvimos em situações comuns do dia a dia, que até pensamos que seja a normalidade da política. Isso porque nós confundimos algumas coisas, ainda que acertemos em outras.
Primeiro o que acertamos: de fato, a cultura política nacional – outras também – é recheada de corrupção. Tanto no Estado quanto na vida comum do homem médio. E, por isso, sentimos e pensamos que a corrupção “na” política leva a uma espécie de corrupção “da” política, isto é, como se por derivação de sua natureza (ou de alguma morbidade intrínseca) a política, inevitavelmente, levasse à corrupção do espaço público, do Estado, das leis, das pessoas e das instituições.
Neste caso, o senso comum traz a legenda: “você é contra porque não está lá”; “político é farinha do mesmo saco”; “quero ficar longe da política”. O que não contabilizamos aqui é o fato de que, mesmo supostamente “longe da política”, no trabalho, nas casas, na rua, o cidadão pratica muita corrupção.
Exemplo: se cidadão sonega impostos ou para seu carro em vaga especial destinada a idosos ou deficientes físicos, ele não pratica aí uma corrupção do espaço público – além de graves violações legais? Este é o sentido do que se denomina de cultura política: a corrupção como chaga ou endemia.
Portanto, precisamos fazer desde já uma separação entre o joio e o trigo: a corrupção “na” política é esta que vemos diariamente, que retira recursos da saúde e da educação pública, que desvia a merenda escolar, que mata, destrói a vida pública.
A corrupção “da” política começa com a (vã) suposição de que podemos viver sem “fazer-política”, como se não fôssemos animais políticos, como se houvesse um só dia em que mulheres e homens, jovens e idosos, não fizessem política ao discutir, por exemplo, quem lavará a louça, o horário de retornar para casa depois da balada, o conteúdo e a forma da aula praticada: quem fala e quem (só) ouve?
Esta ideia de que somos animais políticos, por essência e excelência, está baseada na negociação e na atribuição de alguma modalidade de organização mínima e obrigatória à sociabilidade, na fixação de regras e de normas de direcionamento do espaço público – mas também da vida privada.
Desse modo, uma vez que não há instância nenhuma de organização social que não seja politizada – até mesmo partidarizada, no sentido de “tomar este ou aquele partido das coisas” –, equivale a dizer que a tal corrupção da política pode gerar o pior dos regimes ou sistemas políticos; exatamente quando alguns poucos incutem nos demais a pressuposição de que os melhores ou os escolhidos devem cuidar da política, relegando aos demais a obrigação de meramente cumprir os destinos traçados.
A corrupção da política, nesta fase, ainda nos acomete de outra atrocidade quanto à natureza da política e da condição humana: afinal, se somos todos animais políticos, isto implica em que somos dotados de subjetividades, de atributos “inerentes” à espécie humana – no caso, a dotação política – e que, ao nos manifestarmos, externalizando pretensões e vontades, politicamente interferimos nos pensamentos, desejos e nas (re)ações dos outros. Os gregos da política clássica denominavam esta participação como garantia de ingressar no Banquete dos Deuses.
Então, pode-se esperar que os demais façam o mesmo conosco: interferindo em nossa subjetividade, ao externalizarem suas pretensões por meios de ações individuais ou associadas repercutem em outras implicações políticas. Ou seja, a objetividade, que é o resultado da expressão das subjetividades já expostas através de ações políticas, resulta de uma conjunção de subjetividades (vontades e determinações políticas independentes) que se chocam ou se aglutinam. Mesmo sabendo que as pretensões políticas não são cópia e xerox umas das outras.
A esta confluência da política que existe em cada um(a), ao se aproximar de um interesse ou valor relevante para todos (nem que seja um), além de ser a base da cultura política, dá-se o nome de intersubjetividade, pois, já não somos um só: inter = entre.
Ainda que discordemos de alguns enlaces, afazeres, regras, valores ou interesses políticos, experimentamos a mesma realidade da política. Basta lembrarmos, também, que o legislador é uma expressão da política e que, bom ou mau, produzirá a lei que atinge a todos – para o bem e para mal, o direito é a política (corrupta ou não).
Gostando ou não da política que temos, dos políticos que formamos ou elegemos, estamos todos no mesmo barco. Aliás, os gregos antigos chamavam este barco de Polis e seu condutor de Kybernets ou timoneiro.
Assim, se é ruim a realidade política que criamos para nós mesmos, ao longo de muito tempo, é preferível pensar que tivemos o direito de “fazer-política” (autonomia) e que “sem-a-política” (como se fosse possível) só haveria o caminho da heteronomia; basicamente quando um ou alguns poucos (de)mandam e a imensa maioria obedece.
Historicamente, este é o caminho mais rápido e fácil para o fascismo, uma forma política em que mais se degenera a política, até que o “fazer-política” se ausente da pretensão humana da imensa maioria. Para a política como extensão do humano, ao contrário, cabe muito bem o ditado popular: “ruim com, pior sem”. Corrupta ou não, a política determina a inclusão ou a exclusão, o acesso ou a negação.
Por isso, os mesmos gregos do Kybernets associavam a política à liberdade, porque, por pior que fosse (ou seja), sem liberdade só existe a negação da política – e sem a política há a negação do humano.
O fascismo, o arbítrio, a heteronomia desnaturalizam aquilo que o ser humano (ser social) tem de mais precioso, que é o “fazer-política”, dizendo o que quer (ou não), sob a condição ou determinação de ser o único animal político conhecido no Universo.
Enfim, se até mesmo a luta entre os deuses (e demônios) pelos rumos da Humanidade é uma luta política, sem a política não há deuses e muito menos banquete para o povo. A negação à/da política, então, é a pior corrupção possível, uma vez que corrompe o que há de fundamental ao ser humano: o “fazer-se, fazendo política”.
Vinício Carrilho Martinez
Professor Associado da Universidade Federal de São Carlos – DEd/UFSCar
 

Sobre o autor
Vinício Carrilho Martinez

Pós-Doutor em Ciência Política e em Direito. Coordenador do Curso de Licenciatura em Pedagogia, da UFSCar. Professor Associado II da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Departamento de Educação- Ded/CECH. Programa de Pós-Graduação em Ciência, Tecnologia e Sociedade/PPGCTS/UFSCar Head of BRaS Research Group – Constitucional Studies and BRaS Academic Committee Member. Advogado (OAB/108390).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!
Publique seus artigos