O presente artigo científico aborda a colisão de princípios constitucionais e ambientais existentes entre os direitos do cidadão e do meio ambiente que estão inseridos na discussão da revitalização da rodovia 319, que liga Manaus a Porto Velho e a praticamente 30 (trinta) anos encontra-se em condições de trafegabilidade precárias, não permitindo que a capital amazonense tenha ligação terrestre com o centro-sul do país, além de impedir o desenvolvimento daquela região, o que impossibilita o cumprimento de objetivos fundamentais previstos na Constituição Federal.
A rodovia BR 319 foi inaugurada no ano de 1976 no período do regime militar, quando o principal objetivo do Estado era integrar a Amazônia ao restante do território brasileiro e consequentemente preencher aquele vazio demográfico existente na região. No entanto, após alguns anos da inauguração e sem que fossem efetuadas as manutenções devidas, a rodovia tornou-se intrafegável, trazendo mais uma vez o isolamento àquela área.
Com a promulgação da Constituição cidadã de 1988 o Direito Ambiental passou a ser tratado com mais prioridade, sendo reafirmada a importância social que o meio ambiente possui e o tornando um limitador da atividade econômica. Por esta razão, muitos impasses ambientais passaram a balizar a recuperação da rodovia 319, que após um longo período de abandono, a partir do ano de 2005, quando finalmente o governo passou a realizar ações voltadas para as obras, o seu andamento teve que ser suspenso para que fossem cumpridas as exigências da Política Nacional do Meio Ambiente.
A partir de então, a rodovia passou a enfrentar infinitas discussões que impediram a sua recuperação até os dias atuais, o que manteve o isolamento de Manaus em relação a malha rodoviária brasileira e impossibilitou a garantia do desenvolvimento daquela região e redução da desigualdade regional.
Com este trabalho pretende-se identificar a possível sobreposição de direitos do meio ambiente em relação ao direito do cidadão que estão inseridos no longo impasse da recuperação da rodovia Manaus x Porto Velho, posto que o Estudo de Impacto Ambiental exigido para o andamento da obra foi rejeitado e submetido à infinitas adequações que impedem a sua conclusão, além de apontar as principais consequências decorrentes da sua intrafegabilidade e propor a aplicação da Lei de Colisão de Robert Alexy como forma de solução do conflito, .
Desta forma, a presente pesquisa apresenta a seguinte estruturação: além destas considerações iniciais, apresenta na seguinte seção a pesquisa bibliográfica efetuada, bem como os objetivos desta, tanto o geral quanto os específicos. Na seção referências bibliográficas, faz uma demonstração sucinta dos principais autores que possuem trabalhos nesta temática. Por fim, nas considerações finais faz-se uma exposição das principais implicações da seara ora estudada.
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A RODOVIA 319
- ASPECTOS HISTÓRICOS DA RODOVIA MANAUS X PORTO VELHO – BR 319
A BR 319 é uma rodovia federal com extensão de 877 (oitocentos e setenta e sete) km que foi construída com o objetivo de ligar a capital do estado do Amazonas a capital do estado de Rondônia, tendo o seu projeto sido elaborado no período em que o Estado desejava interligar essa região ao planalto central brasileiro, “além de vertebrar o restante do território amazônico, articulando-o ao restante do país em uma rede rodoviária, promovendo a circulação no interior do território e nas fronteiras” (OLIVEIRA, 2014, p. 112).
A rodovia foi construída entre os anos de 1969 e 1976 e após a sua inauguração permitiu o acesso da capital da Zona Franca às rodoviárias de Porto Velho, Cuiabá, Brasília, Porto Alegre e São Paulo. Além do transporte de passageiros, foi possível durante o período de trafegabilidade o transporte de alguns insumos destinados à fabricação de produtos no Polo Industrial e Área de Livre Comércio de Manaus (OLIVEIRA; NOGUEIRA, 2016).
A rodovia manteve-se transitável por pelo menos 10 anos, no entanto, devido a ausência de manutenção o acesso tornou-se completamente dificultoso até que no ano de 1988 fossem totalmente suspensos os serviços de transporte de ônibus, o que caracterizou a total intrafegabilidade da rodovia.
A partir de meados da década de 90 aconteceram várias tentativas fracassadas de reabertura ao tráfego por meio de programas de infraestrutura, tais como os planos plurianuais-PPA, dos quais, de acordo com Oliveira e Nogueira (2016), abrangiam: Brasil em Ação (1996-1999), Avança Brasil (2000-2003), Plano Brasil de Todos (2003-2007), Programa de Aceleração do Crescimento-PAC 1 (2007-2010) e PAC 2 (2011-2014).
Dentre estes programas, o que apresentou maior visibilidade e possibilidade de efetiva recuperação da rodovia foi o PAC 1, que deu origem à contratação das empresas que dariam início à regeneração da rodovia em julho de 2005, com base em um Plano de Controle Ambiental elaborado pela Universidade Federal do Amazonas.
Conforme o previsto, as obras da BR 319 tiveram início naquele ano, mas foram suspensas por uma liminar[1] concedida pelo Tribunal Regional Federal da 1ª região ao Ministério Público Federal que havia ajuizado uma Ação Cautelar objetivando que o Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) e as empresas contratadas não iniciassem as obras enquanto não atendessem aos requisitos exigidos pela legislação ambiental brasileira, além de sustentar que a Portaria Interministerial n. 273, referente ao Programa Nacional de Regularização Ambiental de Rodovias Federais, não estava sendo aplicada naquela situação.
Destarte, a justiça determinou a obrigatoriedade de licenciamento ambiental para o Segmento central da BR-319, que compreende o trecho entre o km 250 e 655,7 da rodovia, o que fez o DNIT mais uma vez contratar a Universidade Federal do Amazonas para elaborar o Estudo Prévio e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA). No entanto, segundo Bernard et al. (2009), em setembro de 2008, o Ministro Carlos Minc do Meio Ambiente (MMA) assinou a portaria n. 295, de 22.09.2008 para suspender por 60 dias o processo de licenciamento e criou o Grupo de Trabalho-GT BR-319 que recebeu a incumbência de “definir, planejar e apresentar medidas preventivas a serem adotadas em relação aos impactos derivados do empreendimento, para impedir o desmatamento e a descaracterização do Bioma Amazônia ao longo da estrada”.
A partir da conclusão do Grupo de Trabalho da BR 319, seguiu-se a elaboração do EIA/RIMA do trecho central da rodovia, conforme as orientações do GT, todavia, a cada tentativa de finalização do estudo este era indeferido pelo IBAMA, o qual determinava a necessidade de novas adequações. Contudo, no ano de 2014, o Instituto de Proteção Ambiental do Amazonas - IPAAM emitiu Licença Ambiental Única autorizando a manutenção da rodovia pelo período de um ano, o que deu início mais uma vez às obras e reavivou a esperança na população amazonense e rondoniense de que finalmente o segmento central seria recuperado (OLIVEIRA; NOGUEIRA, 2017).
Foi neste momento que, de forma sucinta, o tráfego de veículos voltou a circular na rodovia, e, inclusive, foi retomado o serviço de transporte rodoviário[2]. Entretanto, o Ministério Público Federal novamente interviu no andamento das obras com a propositura de uma nova Ação Civil Pública[3] requerendo a suspensão imediata de qualquer intervenção que estivesse sendo realizada na rodovia, o que ocasionou novas paralisações, mas que posteriormente pôde ser retomada[4].
Numa das decisões que suspendeu o embargo das obras da rodovia o Presidente do Tribunal[5] afirmou:
"A grave lesão à ordem econômica também está presente. É que além de não serem desprezíveis os gastos já despendidos pelo DNIT para a sua realização, a paralisação da obra impõe grande prejuízo financeiro decorrente da inoperância de máquinas, dos canteiros e da mão de obra contratada"
Outrossim, na mesma decisão, o Presidente ainda destacou que a obra “permitirá o desenvolvimento socioeconômico da região, porquanto a rodovia atenderá a necessidade de escoamento da produção amazonense e rondoniense e a locomoção mais segura da população”.
Não obstante a liberação das obras, a ausência do Estudo de Impacto Ambiental impossibilita a efetiva recuperação da rodovia, pois, enquanto carece de tal estudo, os licenciamentos ambientais até então concedidos autorizam somente obras de manutenção.
Logo, levando-se em conta que o trecho central não possui revestimento asfáltico, o qual possui uma extensão de mais de 400 km, a situação se torna ainda mais agravada durante o inverno amazônico, quando atoleiros predominam em praticamente todo o percurso e submetem os que tentam transitar na rodovia a terríveis adversidades, não permitindo que os que necessitam dela trafeguem com o mínimo de dignidade[6].
2.2 - O ISOLAMENTO DO AMAZONAS DA MALHA VIÁRIA BRASILEIRA
O estado do Amazonas é o maior estado do país em extensão territorial, com uma área de 1.559.159,148 km e uma população aproximada de 4.063.614 habitantes. Entretanto, esta extensão dificulta o acesso entre os seus 63 municípios e o restante do país, pois tem como seu principal meio de transporte o fluvial, em razão da abundância de rios na região e a escassez de rodovias no estado (SILVA; SILVEIRA, 2012).
Conforme dados do Wikipédia[7], o Amazonas tem o total de 10 (dez) rodovias, das quais 5 (cinco) são estaduais e 5 (cinco) são federais, estando entre estas a BR 319. Além disso, a capital Manaus concentra boa parte da riqueza e infraestrutura do estado, além disso, com mais de 4 milhões de habitantes ou cerca de 2% da população brasileira, é o segundo estado mais populoso da Região Norte e o décimo terceiro mais populoso do Brasil. No entanto, apenas dois de seus municípios possuem população acima de 100 mil habitantes: Manaus, a capital é sua maior cidade com 2,1 milhões de habitantes em 2017, concentrando 52% da população do estado, e Parintins, com cerca de 114 mil habitantes.
Este quantitativo não é significativo para interligar as cidades de um estado tão extenso, e, neste sentido, Dayana Rolim (2015) afirma que o Amazonas é um estado isolado geograficamente e isso reflete na situação de pobreza existente nos municípios:
O Amazonas é considerado um Estado isolado geograficamente, por possuir apenas uma única rodovia que faz a ligação de sua capital às demais regiões do país. Contudo, a BR 319, que liga Manaus a Porto Velho é intrafegável, mantendo o isolamento do Estado via terrestre. Nesse cenário, poucos municípios do Estado têm ligação com a capital Manaus via terrestre, tendo a grande maioria o acesso a bens e serviços dificultado por viagens de barcos que podem durar até dezenove dias. Tais distintivos fazem com que a maioria dos municípios tenha alto percentual de pessoas ainda na situação de extrema pobreza. O Estado do Amazonas também carece de investimentos em educação, saúde e infraestrutura, os quais são indicadores de medidas de pobreza. Desse modo, analisa-se que devido as suas dimensões geográficas e pela renda altamente concentrada na capital Manaus, nota-se a formação de agrupamentos de municípios pobres rodeados por pobres e ricos (...)
Percebe-se que a falta de ligação da capital Manaus com outros municípios impede uma melhor distribuição de riqueza, ao considerar que o Amazonas é o estado com a quarta pior distribuição de renda do país.
No caso específico da 319, a sua trafegabilidade pode contribuir com o desenvolvimento dos municípios que fazem parte da sua área de influência, além de oportunizar a mobilidade regional até a cidade de Porto Velho, a partir da qual existe ligação com todo o restante do país.
3. ASPECTOS JURÍDICOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS EM CONFLITO
3.1 O DIREITO AO DESENVOLVIMENTO
O direito ao desenvolvimento nacional é um objetivo fundamental da República Federativa do Brasil que tem previsão constitucional no artigo 3º da Constituição Federal. Este objetivo associado a outro objetivo fundamental, qual seja o de "erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais", previsto no inciso seguinte do mesmo diploma legal, podem atuar de maneira recíproca com a finalidade de alcançar os seus propósitos.
Conforme Peixinho e Ferraro (2002, p.10), o artigo 3º da Constituição “não determina quais os contornos do desenvolvimento almejado pelo constituinte originário, ou ainda, quais os instrumentos para efetivá-lo e nem como os cidadãos podem exigir-lhe o cumprimento”.
Todavia, neste sentido, o mesmo autor esclarece:
O Estado é, sem dúvida, o principal personagem no plano da efetivação dos direitos coletivizados, impondo-se-lhe a criação de condições materiais nas quais os indivíduos exerçam, na plenitude, a solidariedade, não mais considerada a tensão dicotômica indivíduo-Estado, mas, e isso é relevante pontuar, o Estado solidarista, postado ao lado dos indivíduos e responsável por fazer existir e – fundamentalmente – prover as condições materiais, por meio de políticas públicas, a fim de tornar disponíveis os meios indispensáveis à subsistência material indispensável à cidadania concreta. (grifo nosso)
Desta forma, o direito ao desenvolvimento depende de prestações positivas do Estado para o alcance de seus objetivos, podendo ser inseridas nestas prestações a promoção de políticas públicas e sociais que favoreçam o bem estar da sua população.
Neste mesmo sentido, Paulo de Bessa Antunes (2017) afirma que:
Os Estados devem tomar, em nível nacional, todas as medidas necessárias para a realização do direito ao desenvolvimento e devem assegurar, inter alia, igualdade de oportunidade para todos, no acesso aos recursos básicos, educação, serviços de saúde, alimentação, habitação, emprego, e distribuição equitativa de renda.
Além dos objetivos citados, que fazem parte do rol da República Federativa do Brasil, o direito ao desenvolvimento também é considerado um direito humano, tendo sido reconhecido por meio da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento de 1986, na qual as Nações Unidas consideraram que a pessoa humana era “o sujeito central do desenvolvimento e deveria ser participante ativo e beneficiário do direito ao desenvolvimento” (FERREIRA; CASTRO. 2004, p. 31-32), além de considerar “o direito ao desenvolvimento é um direito humano inalienável em virtude do qual toda pessoa humana e todos os povos estão habilitados a participar do desenvolvimento econômico, social, cultural e político, a ele contribuir e dele desfrutar, no qual todos os direitos humanos e liberdades fundamentais possam ser plenamente realizados”.
O Brasil é signatário da Declaração sobre o Direito ao Desenvolvimento e de muitos outros tratados internacionais que visam possibilitar o alcance da dignidade da pessoa humana, o que faz concluir que a Constituição de 1988 reconhece e garante o direito ao desenvolvimento como um direito fundamental, além deste estar incluído num dos seus objetivos fundamentais.
3.2 O DIREITO AO MEIO AMBIENTE SADIO
O meio ambiente, de acordo com a concepção de José Afonso da Silva (2013) é a “interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”.
A partir desta concepção, entende-se que o meio ambiente sadio é aquele em que os recursos estão em equilíbrio e são capazes de mediar as interações dos elementos bióticos e abióticos de maneira igualitária.
Em linhas gerais, o meio ambiente sadio é aquele em que os recursos ambientais estão em equilíbrio, permitindo a qualidade de vida de todas as espécies.
O direito ambiental é um ramo do direito que contém um conjunto de regras que regulamentam a proteção e o uso do meio ambiente, e considerando o desenvolvimento da proteção ambiental no Brasil, o meio ambiente sadio passou a ser tutelado, contando com previsão no ordenamento jurídico brasileiro no título VIII - Da ordem Social - Capítulo VI da Constituição Federal, especificamente em seu artigo 225, no qual o caput prevê:
Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as gerações presentes e futuras.
Partindo da análise deste dispositivo, feita por Telma Chiuvite (2010), entende-se com o termo “Todos” que o direito ao meio ambiente é um direito difuso que tem como titulares um número de pessoas indeterminadas, para as quais é garantido o equilíbrio ecológico, havendo a imposição de limitações aos seus usuários que não podem utilizar o meio ambiente ao seu bel-prazer, por se tratar de um bem de uso comum do povo.
Seguindo a análise, cabe à própria coletividade e ao poder público a imposição de limitações que garantam a preservação do meio ambiente para às presentes e futuras gerações, que são sujeitos de direitos indeterminados e devem ser atingidas pelo caráter difuso da prerrogativa.
O direito ambiental brasileiro é regido por muitos outros diplomas normativos, e estes são regidos por princípios que tentam assegurar a efetiva manutenção do meio ambiente sadio, e como forma de apresentá-los destacam-se aqueles que possuem relação direta com o objetivo deste trabalho.
Telma Chiuvite (2010) apresenta os referidos princípios da seguinte maneira:
- Princípio do desenvolvimento sustentável: este procura compatibilizar o desenvolvimento econômico-social e preservação da qualidade do meio ambiente. “Assim, para alcançarmos o desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deve consistir parte integrante do processo de desenvolvimento”.
- Princípio do poluidor pagador: este, na sua vertente preventiva, considera que “deve o poluidor arcar com as despesas de prevenção dos danos ao meio ambiente, oriundos do desenvolvimento da sua atividade”.
- Princípio da prevenção precaução: o direito ambiental brasileiro reconhece na atualidade a distinção entre os dois princípios, mas que tem finalidades idênticas, quais sejam: buscar prevenir a ocorrência do dano ambiental, sendo este um dos pontos mais importantes do Direito Ambiental, diante da complexidade da reparação do dano ao meio ambiente.
O princípio da prevenção trata de riscos ou impactos já conhecidos e impõe medidas de proteção antes da implementação de empreendimentos e atividades que causem danos ambientais, devendo haver uma atuação antecipada, enquanto o princípio da precaução será invocado para a proteção ambiental no caso de riscos ou impactos desconhecido.
A respeito da aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável, a Constituição Federal de 1988, no artigo 225, inciso V, prevê que para assegurar o direito a um meio ambiente equilibrado o Poder Público deverá “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem o risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente”. Ainda, o artigo 170, VI da CF, ao tratar da ordem econômica, determina que deverão ser observados os princípios do meio ambiente, “inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços (...)”.
Um exemplo da atuação antecipada do princípio da prevenção é a necessidade de realização prévia do Estudo de Impacto Ambiental para obras ou atividades causadoras de significativa degradação do meio ambiente, exigência esta que consta no artigo 225, parágrafo 1º, IV da Constituição Federal. Outro exemplo é a preocupação em prevenir o dano ambiental com a realização do licenciamento ambiental previsto na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente - Lei 6.938/81.
O que diz respeito ao princípio da precaução o Princípio 15 da Declaração do Rio de 1992 determina:
Princípio 15 - Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental.
Desta forma, o princípio da prevenção não deverá deixar de ser aplicado ainda que haja dúvidas da ameaça de danos ao meio ambiente, cabendo ao interessado provar que as intervenções pretendidas não trarão consequências indesejáveis.
3.3 O CONFLITO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS
Conforme explicitado, o direito ao desenvolvimento e o direito ao meio ambiente sadio são garantias asseguradas ao cidadão pelas previsões normativas do ordenamento jurídico brasileiro, e estes são reconhecidamente direitos fundamentais que tentam viabilizar o alcance do princípio da dignidade da pessoa humana que é um dos basilares da República Federativa do Brasil.
O projeto de implantação da rodovia 319 no interior da Amazônia, além do objetivo de interligar dois estados, tinha como propósito proporcionar o desenvolvimento daquela região, e consequentemente possibilitar o alcance mínimo das políticas públicas e sociais prestadas pelo Estado.
Considerando a época em que foi projetada e inaugurada, reconhece-se que naquele período não havia uma preocupação tão significativa com o meio ambiente, embora existissem alguns diplomas normativos que o tutelassem de forma pontual.
Tais diplomas geralmente exerciam um controle legal de atividades exploratórias e protegiam somente certas categorias de recursos naturais, não sendo suficientes para garantir a proteção integral necessária à manutenção da qualidade de vida de todos os seres envolvidos naquela interação.
Não existem dados oficiais dos impactos causados ao meio ambiente com a abertura da BR 319 na década de 70, mas, considera-se necessário esclarecer que uma parcela de degradação ocorreu no período da sua construção e no decorrer dos anos a partir da instalação de pequenos núcleos populacionais que se sentiram atraídos pela proposta do governo de integrar aquela região.
Todavia, com a impossibilidade de trafegar pela rodovia após breves 10 anos da sua inauguração, somente um dos objetivos da implantação foi alcançado, com um sensível povoamento daquela área que era um vazio demográfico.
A intrafegabilidade da BR 319 ocorreu no final da década de 80 e coincidiu com a promulgação da Constituição Cidadã que incluiu o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental. Ao mesmo tempo, a referida Constituição incluiu entre os seus objetivos fundamentais a garantia do desenvolvimento nacional, erradicação da pobreza e da marginalização e redução das desigualdades sociais e regionais.
Por razões de cunho político e administrativo, a recuperação da BR 319 ocorreu inicialmente em seus dois extremos no final da década de 90 e início dos anos 2000, contemplada pelos programas Brasil em Ação, Avança Brasil e Brasil para Todos, todos do governo federal que tinham como finalidade fortalecer os eixos de integração do país e garantir o desenvolvimento das regiões selecionadas (OLIVEIRA; NOGUEIRA, 2016).
Enquanto os extremos da rodovia 319 puderam ser recuperados e o seu tráfego mantido, as chuvas torrenciais durante o inverno amazônico comprometiam ainda mais o trecho central e reafirmava o seu isolamento, além de comprometer a qualidade de vida daqueles que optaram em construir sua história naquele entorno.[8]
Quando finalmente o Programa Brasil para Todos, que tinha a mesma finalidade dos programas mencionados, contemplou a recuperação do trecho central da BR 319, o que permitiria mais uma vez a interligação dos estados do Amazonas e de Rondônia e o favorecimento do alcance das metas do programa, a questão ambiental passou a protagonizar as paralisações da obra para que fossem cumpridas as determinações do direito ambiental, especificamente no que tange à obrigatoriedade de apresentação do Estudo Prévio de Impacto Ambiental para avaliar a viabilidade do empreendimento. (OLIVEIRA; NOGUEIRA, 2016).
O EIA encontra previsão normativa no artigo 225, parágrafo 1º, IV da CF 88, que determina a realização prévia do referido estudo para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação ao meio ambiente. Ressalte-se que, de acordo com vários autores, reconhece-se que o próprio nome deixa claro que o estudo é exigido antes da atividade potencialmente impactante ser desenvolvida ou recomeçada, e o estudo deve ser elaborado antes da concessão da licença prévia, como condição de expedição desta.
No caso da recuperação do trecho central da BR 319, a exigência do Estudo Prévio de Impacto Ambiental deu-se após o início das obras, por meio de uma determinação judicial que acabou gerando sucessivas paralisações dos serviços de engenharia, para que fossem atendidas as novas determinações expedidas pela IBAMA, bem como pelo judiciário.
Conforme manifestam algumas fontes, a cada nova tentativa de finalização do relatório uma nova exigência era emitida, o que acabava tornando ineficiente a reunião de esforços para concluí-lo e caracterizava a desproporcionalidade das imposições. (OLIVEIRA, NOGUERA, 2016).
Nessa perspectiva, o Tribunal de Contas da União através de um Acórdão referente à auditoria realizada nas obras da BR 319, após solicitação de controle pelo Senado Federal, determinou que[9]:
o IBAMA, ao definir o Termo de Referência do EIA, procure determiná-lo de forma definitiva, para evitar pedidos de complementações sucessivos, os quais atrasam o desenvolvimento regular do processo de licenciamento, demandando mais recursos financeiros, humanos, patrimoniais e tecnológicos e atrasando a realização de obras necessárias para o atendimento dos interesses da sociedade, nos termos do art. 10 da Resolução Conama n. 271, de 19 de dezembro de 1997.
A despeito da tentativa de cumprimento das exigências do órgão ambiental, este fato contrariava a verdadeira finalidade do estudo, considerando que este nunca pôde ser concluído, mas que em razão de determinações judiciais, foram autorizadas somente obras que pudessem manter minimamente o tráfego.
No entanto, estas obras não são suficientes para preservar a dignidade dos passageiros durante os deslocamentos efetuados, tampouco garantir o desenvolvimento das populações que compõem àquela área de influência, visto que as condições de circulação são praticamente as mesmas da década de 80, não obstante a tentativa de recuperação tenha iniciado há mais de 10 (dez) anos.
Desta forma, a ausência do Estudo Prévio de Impacto Ambiental é consequência das sucessivas exigências do órgão ambiental, que tem como função precípua promover a garantia do meio ambiente sadio, e de maneira eficiente tenta definir as medidas mitigadoras da atividade que poderá ser significativamente degradante. Entretanto, envolvida nesta relação, encontra-se a população que além do direito ao meio ambiente sadio, tem o direito de alcançar o progresso econômico e social que a reabertura da rodovia proporcionaria.
É neste momento que entram em conflito os direitos fundamentais do meio ambiente e do cidadão, que em igualdade de forças merecem que sejam atendidas as sua prerrogativas constitucionais, mas que em razão da impossibilidade, resulta na sobreposição de um direito em relação ao outro, que no caso da BR 319, o direito ao meio ambiente sadio foi colocado espontaneamente em posição prioritária.
3.4 A SOLUÇÃO DO CONFLITO NO CASO DA BR 319
Conforme o que foi apresentado, verificamos a existência de conflito de direitos fundamentais no cenário de recuperação da BR 319, considerando pertinente esclarecer o que são estes conflitos.
Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino (2015, p. 110) afirmam que “ocorre conflito (ou colisão) entre direitos fundamentais, quando, em um caso concreto, uma das partes invoca um direito fundamental em sua proteção, enquanto a outra se vê amparada por outro direito fundamental”.
Consoante à situação fática que se depara no caso do conflito da BR 319, a proteção ambiental, amparada pelo direito ao meio ambiente sadio, tem restringido a realização das obras na rodovia, o que impede a aplicação prática do direito ao desenvolvimento, que também é reconhecidamente um direito fundamental.
No caso concreto vemos que a proteção ao meio ambiente tem sido utilizada de maneira demasiada, sendo considerada isoladamente em relação a outros direitos, visto que outro bem jurídico tem sido sacrificado há anos sem que tenha sido possível alcançar a solução mais adequada ao caso, além de fazer a situação se arrastar por um período considerado desproporcional.
Em do razão do conflito de interesses, para que não haja um sacrifício total de um direito ou outro, entende-se necessário compatibilizar os dois procedimentos, enquadrando-se nesta situação o princípio do desenvolvimento sustentável que tem como finalidade alcançar o desenvolvimento econômico-social juntamente com a preservação do meio ambiente (INSERIR FONTE DESSA INFORMAÇÃO).
Além disto, em conformidade com a ideia de não ser razoável tornar sem efeito um direito para aplicação de outro, Luís Roberto Barroso (2015) afirma que os “direitos fundamentais não são absolutos e, como consequência, seu exercício está sujeito a limites; e por serem geralmente estruturados como princípios, os direitos fundamentais, em múltiplas situações, são aplicados mediante ponderação”.
Sendo assim, os direitos fundamentais em conflito necessitam de uma ponderação para que se atinjam medidas satisfatórias que reflitam de forma concreta as garantias existentes, e em busca disso podemos socorrer à técnica da ponderação que surgiu no direito alemão e é um método apresentado pela Lei de Colisão de Roberty Alexy na sua obra Teoria de Direitos Fundamentais (2006) que foi formulada a partir da incidência de vários conflitos entre direitos fundamentais no Tribunal Constitucional Federal alemão.
De acordo com o que manifesta Alexy (2006), para alcançar a solução do conflito o Tribunal Constitucional fazia uso do sopesamento dos princípios envolvidos, não permitindo que um dever tivesse prioridade sobre o outro, conforme verificamos:
Essa relação de tensão não pode ser solucionada com base em uma precedência absoluta de um desses deveres, ou seja, nenhum desses deveres goza, ´por si só´, de prioridade. O conflito deve, ao contrário, ser resolvido ´por meio de um sopesamento entre os interesses conflitantes`.
Ainda, de acordo com o mesmo autor, esse sopesamento é necessário, pois “se isoladamente considerados, ambos os princípios conduzem a uma contradição. Isso significa, por sua vez, que um princípio restringe as possibilidades jurídicas de realização do outro” (2006; pg. 97).
A respeito do impasse que ocorre na 319, a contradição está caracterizada na atuação desproporcional da proteção ao meio ambiente que é promovida em detrimento do princípio da dignidade humana, em razão da impossibilidade de se alcançar o desenvolvimento daquela região, que conforme dados oficiais é protagonista das maiores diferenças sociais em comparação aos outros estados do país.
Para se chegar a solução do caso, de acordo com o que estabelece a Lei de Colisão, inicialmente o intérprete deverá estabelecer as relações de precedência que autorizarão, num caso específico, que um direito prevaleça sobre o outro, e para isso deverá fazer o sopesamento para definir qual dos interesses, que de maneira abstrata estão no mesmo nível, tem maior peso no caso concreto.
Ainda, conforme Alexy (2006), essa colisão pode ser resolvida ou por meio do estabelecimento de uma relação de precedência incondicionada ou por meio do estabelecimento de uma relação de precedência condicionada. Isto significa dizer que na relação incondicionada um direito prevalecerá integralmente sobre o outro, o que não será possível, pois esta possibilidade foi descartada pelo Tribunal Constitucional Federal alemão quando afirmou que não há interesse que tenha total precedência sobre o outro, restando ser aplicada a precedência condicionada, que também é conhecida como relativa e se refere ao reconhecimento de maior peso de um dos direitos estritamente naquela situação conflitante.
Para o caso da BR 319, deverá ser avaliado entre o direito ao meio ambiente sadio e o direito ao desenvolvimento qual deste poderá prevalecer sobre o outro sem que se retire a eficácia do que foi preterido.
Considerando o que foi exposto, primeiramente recomenda-se ponderar os procedimentos que estão sendo adotados em função da busca pelo meio ambiente sadio para que se alcance a adequação ao princípio do desenvolvimento sustentável e, a partir dele, cessem as violações à dignidade da pessoa humana que estão ocorrendo há décadas, especificamente a partir do momento que a rodovia tornou-se intransitável.
Por conseguinte, fundamentada na Lei de Colisão, orienta-se reconhecer que o direito ao desenvolvimento, dentro de limitações razoáveis, poderá ter precedência condicionada em relação ao direito ao meio ambiente sadio, com vistas a possibilitar a finalização das discussões que impedem a obtenção de uma solução concreta para o caso e se atinjam os objetivos previstos, quais sejam: o de manter o meio ambiente equilibrado para as futuras gerações e permitir o desenvolvimento econômico e social daquela região.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O desenvolvimento do presente estudo permitiu conhecer as possibilidades de solução para conflitos de direitos fundamentais de acordo com as propostas da Lei de Colisão de Robert Alexy (2006), que através da técnica da ponderação orienta verificar qual direito fundamental pode ter peso maior que o outro num determinado caso concreto.
Com o estudo da Lei foi possível compreender que nenhum direito fundamental pode restringir o outro, mas recomenda-se o sopesamento deles e posteriormente a definição daquele que poderá ser colocado em posição de prioridade, mas sem aniquilar a aplicação do outro.
No caso do conflito de direitos fundamentais da BR 319, foi possível identificar que o direito ao meio ambiente sadio estava sendo aplicado de maneira desproporcional no que dizia respeito às demasiadas exigências do Estudo Prévio de Impacto Ambiental, considerando que tais exigências impediam a conclusão do estudo, consequentemente a liberação das obras, além de obstar o exercício do direito ao desenvolvimento.
A impossibilidade de ver a aplicação prática do direito ao desenvolvimento configurou o cenário da área de influência da rodovia que tem praticamente os mesmos moldes de décadas anteriores e pode ter contribuído para os índices de distribuição de renda no estado, visto que o Amazonas tem uma das piores distribuições do país.
Outrossim, as condições de deslocamento na rodovia são extremamente precárias o que impede a efetiva ligação do Amazonas ao estado de Rondônia, a partir do qual se pode ter acesso ao restante do país.
A partir disto, aplicando-se a técnica da ponderação, recomendou-se o uso sensato das previsões normativas do direito ambiental para que fosse possível viabilizar o andamento das obras na rodovia, sem, contudo, dispensar a aplicação do princípio do desenvolvimento sustentável para que em proporções razoáveis se mantivesse a qualidade do meio ambiente.
Desta forma, a proposta inicial do presente trabalho pôde ser alcançada quando identificou as consequências do isolamento geográfico do Amazonas e vislumbrou uma possibilidade de solução para o conflito de direitos fundamentais no caso da BR 319, fundamentada na Lei de Colisão do alemão Robert Alexy, que poderá ser utilizada como parâmetro para a solução de casos semelhantes e para o alcance de medidas justas quando envolver outros interesses conflitantes.
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[1] NOTA À IMPRENSA – SUSPENSÃO DO INÍCIO DAS OBRAS DA BR 319. Disponível em: <http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/docs/nota-a-imprensa-decisao-acp-dnit-br-319>. Acesso em 28.03.2018
[2] APÓS 21 ANOS, TRANSPORTE RODOVIÁRIO PELA BR 319 É RETOMADO. Disponível em http://amazonasatual.com.br/apos-21-anos-transporte-rodoviario-pela-br-319-e-retomado/ Acesso em: 04.04.2018
[3] MPF/AM ACIONA JUSTIÇA PARA SUSPENDER OBRAS DA BR 319 RETOMADAS SEM AUTORIZAÇÃO. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/am/sala-de-imprensa/noticias-am/mpf-am-aciona-justica-para-suspender-obras-da-br-319-retomadas-sem-autorizacao Acesso em: 20.04.2018.
[5] DECISÃO: PRESIDENTE DO TRF1 SUSPENDE LIMINAR QUE PARALISAVA OBRAS DA RODOVIA BR 319. Disponível em: https://trf-1.jusbrasil.com.br/noticias/258830004/decisao-presidente-do-trf1-suspende-liminar-que-paralisava-obras-na-rodovia-br-319 Acesso em 28.04.2018
[6] EXÉRCITO RESGATA 20 PASSAGEIROS APÓS ÔNIBUS PASSAR UMA SEMANA ATOLADO NA BR 319. Disponível em https://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/exercito-resgata-20-passageiros-apos-onibus-passar-uma-semana-atolado-na-br-319-no-am.ghtml Acesso em: 28.04.2018.
[7] WIKIPÉDIA – AMAZONAS. Disponível em: < https://pt.wikipedia.org/wiki/Amazonas> Acesso em: 05.05.2018
[8] G1 PERCORRE BR 319 POR 3 DIAS E MOSTRA A HISTÓRIA DOS SOBREVIVENTES DA RODOVIA. Disponível em: https://g1.globo.com/ro/rondonia/noticia/g1-percorre-transamazonica-por-3-dias-e-mostra-as-historias-dos-sobreviventes-da-rodovia-fantasma.ghtml Acesso em 10.05.2018.
[9] ACÓRDÃO Nº 275/2010 – TCU – PLENÁRIO. Disponível em: <https://contas.tcu.gov.br/sagas/SvlVisualizarRelVotoAcRtf?codFiltro=SAGAS-SESSAO-ENCERRADA&seOcultaPagina=S&item0=45032>. Acesso em: 10.04.2018