O principio da insignificância e a sua inaplicabilidade junto ao Estatuto do Desarmamento.

A periculosidade real atinente aos delitos de perigo abstrato

16/08/2018 às 15:23
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Estatuto do desarmamento. Crimes de perigo abstrato. Principio da insignificância. Ativismo. Precedentes. Munições de festim.

RESUMO

O presente artigo tem por escopo apresentar uma abordagem em visão técnica positivista que aclara sobre a inaplicabilidade do princípio da insignificância nos delitos de perigo abstratos, com enfoque no estatuto do desarmamento, precisamente nos crimes de porte/posse de munições de ‘festim’, em uma crítica ao ativismo judicial que corrobora em, cada vez mais, afastar a incidência da lei strito senso, onde o judiciário se reveste de princípios de ampla aplicabilidade e fundamentação esparsa com forma de obter um falso overruling no caso concreto. Criando, assim, assaz instabilidade jurídica e uma gama de precedentes cuja vinculação é descaracterizada a cada caso.

Palavras – chave: Estatuto do desarmamento. Crimes de perigo abstrato. Principio da insignificância. Ativismo. Precedentes. Munições de festim.  

ABSTRACT

The purpose of this article is to present a positivistic technical view that clarifies the inapplicability of the principle of insignificance in abstract crimes of danger, focusing on the disarmament status, precisely in the crimes of possession / possession of 'festim' ammunition, in a critique of judicial activism which increasingly corroborates the incidence of strict law, where the judiciary is broadly applicable in sparse reasoning with a way to obtain an overruling in the concrete case. In this way, creating legal instability and a range of precedents whose linkage is discharged in each case

Keywords: Status of disarmament. Abstract danger crimes. Principle of insignificance. Activism. Precedents. Ammunition for a feast.

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como principal objetivo demonstrar, de forma técnica, uma visão que segue a linha positivista, ao exaltar a imperiosidade da norma legal no sistema jurídico brasileiro. É importante destacar que além da lei formal existem outras formas de complementar o ordenamento jurídico, bem com as decisões judiciais. Outros institutos como a analogia, costumes e os princípios gerais do direito são necessários para melhor funcionamento do sistema jurídico pátrio.

Fato é que no direito penal, por se tratar de seara cuja as consequências adstritas do descumprimento de seu corpo normativo são demasiadamente graves, capaz de suspender até o direito fundamental que coaduna na liberdade. Há necessidade de atenção especial em seu processo legislativo, que nos moldes da carta magna, é de competência privativa da União. Tão logo, o motivo de exclusiva atenção e rigor na ordem criminal se perfaz pelos bens jurídicos aqui tutelados, haja vista ser considerado direito público, tutela os interesses de toda uma coletividade.

Destarte a evolução da criminologia, hoje o direito penal é embasado no caráter repressivo e preventivo da norma. Ora como forma de desestimular o ato delituoso, ora como meio de impedir sua atuação de forma prévia ou até mesmo sua reiteração. Por oportuno, um meio de prevenção a delitos graves, criou-se os delitos de perigo abstrato, onde o legislador presume perigo ao bem jurídico e pune o ato, antes que possa ocorrer exaurimento de uma conduta que pode gerar outra bem mais grave.

Assim sendo, com o passar do tempo, se consolidou o entendimento da inaplicabilidade do princípio da insignificância nos delitos de crime abstrato, uma vez que a lesão ao bem jurídico é presumida, o que guarda afronto claro a aplicabilidade do princípio da insignificância.

Todavia, em evento recente o Supremo Tribunal Federal modificou o entendimento e passou a aceitar tal forma de exclusão da tipicidade no estatuto do desarmamento, em decisão de um Habeas Corpus, em clara afronta a norma legal especial, lei 10.826/2003 – Estatuto do desarmamento.

Data vênia o entendimento do egrégio tribunal, parece haver um ativismo judicial perigoso que pode vir a caracterizar seria ultraje a separação dos poderes, ao tirar do legislador sua presunção legal de perigo atinente aos crimes de perigo abstrato.

2 PRINCIPIO DA INSIGNIFICÂNCIA E O CRIME DE PERIGO ABSTRATO

Antes de adentrar ao mérito da inaplicabilidade do princípio da insignificância junto ao delito de posse de arma/munição/acessório em desacordo com a restrição legal, é imperioso discriminar a incidência e natureza jurídica do principio da insignificância, bem como tratar do que é de fato um crime de perigo abstrato. De forma que fique mais clara a relação conflituosa de tais institutos.

Destarte que o princípio da insignificância ou de bagatela, causa supralegal de exclusão de tipicidade, amplamente aceito pelos tribunais brasileiros, teve sua inserção no direito penal por Claus Roxin. Fundado no brocado minimis non curat praetor, corrobora em uma abstenção do estado em agir em crimes cuja lesão jurídica não seja relevante e/ou significativa. Fato é, que o direito penal se molda no sentido de ser a última ratio. Tão logo, deve prevalecer sempre o referencial de intervenção mínima do Estado, buscando proteger apenas os bens mais importantes existentes na sociedade.

Sendo certo que é de assaz importância a aplicação do princípio de bagatela também quando se destaca adequação social do fato, ora, a sociedade está em constante mudança e desenvolvimento, seria impossível impor ao legislador que acompanhe rigorosamente o processo de desenvolvimento da população. Tendo em vista que o Código Penal brasileiro é de 1941, antes mesmo da carta magna nacional, é indiscutível que alguns delitos ali previstos já não demostram mais razão de existência.

Em suma, o principio da insignificância, apesar de não estar positivado na legislação brasileira, é de assaz importância como forma de atualização e contemporaneidade dos tipos penais, e certamente corrobora na intervenção mínima do Estado quando conjugado ao estudo criminológico e social.

 Uma vez que, há um fato típico, não se discute se houve realmente um delito ou não, mas sim se a intervenção do estado convém ao ato/fato humano. Por obvio, a análise de sua aplicabilidade decorre da sensibilidade que requer cada caso concreto, sem deixar de observar que como direito público, o direito penal sempre deve presar pela consciência geral da sociedade, a fim de evitar absolutismos ou demais abusos por parte do Estado.

É uníssono que para aplicação de tal princípio se faz necessária a cumulação de quatro requisitos, já assinalados pelo Supremo Tribunal Federal, conforme ilustra o precedente abaixo do egrégio tribunal:

Ementa: PENAL E PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. FURTO (ART. 155, § 1º, DO CP). REINCIDÊNCIA NA PRÁTICA CRIMINOSA. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. EXISTÊNCIA DE CIRCUNSTÂNCIA JUDICIAL DESFAVORÁVEL. CRIME COMETIDO DURANTE O REPOUSO NOTURNO. FIXAÇÃO DA PENA PRIVATIVA DE LIBERDADE EM PATAMAR ACIMA DO MÍNIMO LEGAL. POSSIBILIDADE. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS A QUE SE NEGA PROVIMENTO. 1. O princípio da insignificância incide quando presentes, cumulativamente, as seguintes condições objetivas: (a) mínima ofensividade da conduta do agente, (b) nenhuma periculosidade social da ação, (c) grau reduzido de reprovabilidade do comportamento, e (d) inexpressividade da lesão jurídica provocada. 2. A aplicação do princípio da insignificância deve, contudo, ser precedida de criteriosa análise de cada caso, a fim de evitar que sua adoção indiscriminada constitua verdadeiro incentivo à prática de pequenos delitos patrimoniais. 3. O valor da res furtiva não pode ser o único parâmetro a ser avaliado, devendo ser analisadas as circunstâncias do fato para decidir-se sobre seu efetivo enquadramento na hipótese de crime de bagatela, bem assim o reflexo da conduta no âmbito da sociedade. 4. In casu, o recorrente foi condenado pela prática do crime de furto (art. 155, § 1º, do Código Penal) por ter subtraído um aparelho celular avaliado em R$ 159,00 (cento e cinquenta e nove reais). 5. Ocorre que a conduta do recorrente, como narrada na denúncia, não pode ser considerada como inexpressiva para fins penais, nem há de ser qualificada como sendo de menor afetação social. Isso porque, durante o período do repouso noturno, o recorrente entrou em um dos quartos do Hotel Renascer e subtraiu um aparelho celular. Destaca-se que a vítima encontrava-se no interior do quarto no momento do furto. 6. Ademais, trata-se de condenado reincidente na prática de delitos contra o patrimônio. Destarte, o reconhecimento da atipicidade da conduta do recorrente, pela adoção do princípio da insignificância, poderia, por via transversa, imprimir nas consciências a ideia de estar sendo avalizada a prática de delitos e de desvios de conduta. 7. Por outro lado, a existência de circunstância judicial desfavorável justifica a imposição da pena privativa de liberdade em patamar acima do mínimo legal. Com relação ao quantum da reprimenda, verifica-se que “a dosimetria da pena submete-se a certa discricionariedade judicial. O Código Penal não estabelece rígidos esquemas matemáticos ou regras absolutamente objetivas para a fixação da pena. Cabe às instâncias ordinárias, mais próximas dos fatos e das provas, fixar as penas. Às Cortes Superiores, no exame da dosimetria das penas em grau recursal, compete precipuamente o controle da legalidade e da constitucionalidade dos critérios empregados, com a correção apenas de eventuais discrepâncias gritantes e arbitrárias nas frações de aumento ou diminuição adotadas pelas instâncias anteriores. Não se mostra hábil o habeas corpus para revisão a respeito, salvo se presente manifesta ilegalidade ou arbitrariedade” (RHC 114966, Primeira Turma, Relatora a Ministra Rosa Weber, DJ de 08.05.13). Precedentes: RHC 112.940, Primeira Turma, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJ de 26.03.06; RHC 113.313, Primeira Turma, Relator o Ministro Dias Toffoli, DJ de 02.05.13; HC 114.481, Segunda Turma, Relator o Ministro Ricardo Lewandowski, DJ de 15.02.13; HC 108.381, Primeira Turma, Reltor o Ministro Dias Toffoli, DJ de 23.05.12. 8. In casu, o quantum da pena privativa de liberdade foi fixado acima do mínimo legal em razão dos maus antecedentes do recorrente, bem como devido ao fato de o crime ter sido cometido durante o período do repouso noturno. 9. Recurso ordinário em habeas corpus a que se nega provimento.

(STF - RHC: 115505 DF, Relator: Min. LUIZ FUX, Data de Julgamento: 11/06/2013, Primeira Turma, Data de Publicação: DJe-123 DIVULG 26-06-2013 PUBLIC 27-06-2013) (grifo nosso)

Tão logo, verificados os requisitos de admissibilidade do princípio em consonância ao caso concreto sua aplicação se completa para garantir o estado democrático de direito ao preservar a primeira dimensão dos direitos e garantias fundamentais, onde ressalta o dever de abstenção do Estado.

Acerta assim, o doutrinador Damásio E. de Jesus ao advertir que:

Hoje, adotada a teoria da imputação objetiva, que concede relevância à afetação jurídica como resultado normativo do crime, esse princípio apresenta enorme importância, permitindo que não ingressem no campo penal fatos de ofensividade mínima. (EVANGELISTA DE JESUS,2013, p. 53)

 Resta evidenciado que o princípio da insignificância se inteira com o agrupamento dos requisitos acima relatados, todavia, há delitos que não aceitam a aplicabilidade por sua natureza em si ou pela abrangência de reprovabilidade social. Um exemplo de tal resistência a aplicação do princípio da insignificância pelos tribunais superiores ocorre com os delitos de perigos, onde conforme será explicitado a seguir, é dispensada para tal a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado e se configura pela simples exposição ao fato delituoso.

É imperioso destacar que os tipos penais estudados no ordenamento jurídico pátrio sofrem uma classificação doutrinaria, de modo a facilitar o estudo e a classificação dos delitos levando em conta uma série de fatores como por exemplo, forma de consumação, bem jurídico afetados, dentre outros motivos que aproximam ou afastam algumas infrações umas das outras.

Destarte as rotulações doutrinarias das características mais importantes resta salientar sobre a divisão dos crimes entre aqueles denominados de crimes de perigo e os crimes de dano, que são discriminados conforme o resultado aferido ao bem jurídico tutelado, ou que podem vir a acontecer.

Sobre os crimes de dano acentua Guilherme Nucci (2017) serem aqueles que se consumam com a efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, trata-se então de um real prejuízo, material e perceptível pelos sentidos humanos, como por exemplo o crime de homicídio, art. 121 do código penal. Em contrassenso deve-se analisar os crimes de perigo como aqueles formalmente tipificados, uma vez que não trazem efetivo decréscimo material, agindo de meio preventivo ao delito mais grave.

De forma bem simples e didática, o doutrinado Guilherme Nucci disserta sobre a importância de punir os crimes de perigo:

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A razão de se punir os crimes de perigo é a mesma que um pai possui em relação ao seu filho pequeno desobediente: evitar maiores e mais graves problemas. Se o Estado punir o perigo gerado, tende a evitar punir, no futuro, o dano. (SOUZA NUCCI,2013, p. 403)

A doutrina ainda discrimina o perigo de dano em dois grupos, conforme esclarece Rogerio Sanches (2018), quais sejam: a) Perigo de perigo concreto, onde a modalidade exige que haja uma efetiva comprovação de risco para o bem jurídico, o que ocorre por exemplo no crime de explosão, art. 251 do Código Penal. b) Perigo de dano abstrato ou presumido, onde o legislador já pressupõe perigosa a ação, dispensado a demonstração de efetivo perigo ao bem jurídico tutelado, exemplo disso são as leis 11.343/06 (Lei de Drogas), 10.826/03 (Estatuto do Desarmamento) e 9.605/98 (Crimes Ambientais).

Destarte que para o estudo em apresso se faz necessária atenção especial aos crimes de perigo abstrato, tão logo, objeto do presente artigo tem direcionamento especial a lei 10.826/2003 – Estatuto do desarmamento, em que pese os delitos ali elencados foram apreciados como principal objetivo de prover a paz social e presar pela segurança pública do Estado.

3 ESTATUTO DO DESARMAMENTO

 O Estatuto do Desarmamento, disciplinado na Lei 10.826/2003 assevera sobre registro, posse e comercialização de armas de fogo e munição, além de instituir o Sistema Nacional de Armas – SINARM e crimes sobres a irregularidades, proibições ou desídias com o material bélico ali evidenciado. A referida lei trouxe a vedação expressa ao cidadão comum para que tenha porte e posse de armas de fogo, onde agora é exclusiva de apenas algumas classes funcionais.

Antes de adentrar ao mérito da referida lei, se perfaz necessário um breve relato histórico de sua origem. De modo que na década de 90, não havia efetiva preocupação com a segurança pública, e sim com a segurança nacional e com fortalecimento das industrias bélicas, o Brasil eclodiu em um problema social grave que envolveu crescimento em progressão geométrica de crimes violentos originados por armas de fogo. Assim, a população ansiava por uma medida pública que solucionasse e restringisse o uso de armas de fogo pela sociedade. Em 1997, surge então o SINARM, administrada pela polícia federal que tinha como fim reger informações sobre a armas de fogo, bem como tipificar em crime algumas condutas que anteriormente eram consideradas contravenções penais. Todavia, o registro e porte de arma de fogo, continuava sobe competência das policiais estaduais.

A população ainda insatisfeita com as medidas pouco eficazes tomadas por parte do estado, em 2003 eclodiu a ‘Marcha silenciosa’ com sapatos das diversas vitimas de arma de fogo, em frente ao congresso nacional. Tão logo, os políticos atendendo aos anseios sociais, criaram uma comissão mista, de onde surgiu o Estatuto do Desarmamento. Entretanto, a forte influência das grandes industrias bélicas trabalharam fortemente para que não chegasse o fim o trâmite do referido estatuto.

Diante das adversidades, em 2005, o Brasil presenciou seu primeiro referendo popular – previsto no Estatuto do Desarmamento, que tinha como objeto a aplicação do artigo 35 da lei, que determina a proibição do comercio de armas de fogo para civis. As campanhas se dividiram entre o “SIM” e “NÃO”, prevalecendo então a negativa para o comercio livre dos artefatos bélicos.

Em suma, o estatuto do desarmamento tem por escopo a restrição de acesso de armas de fogo pela população, controle daquele equipamento bélico em circulação no país e ainda tipifica delitos na seara criminal pertinentes ao uso de tal artefatos. Destarte dentre todas as atribuições da lei 10.826/2003, o objeto em estudo se resguarda em seus artigos 12 e 13, que dissertam sobre a proibição do porte/posse de munições de armas de fogo, conforme pode se verificar a baixo:

Art. 12. Possuir ou manter sob sua guarda arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, em desacordo com determinação legal ou regulamentar, no interior de sua residência ou dependência desta, ou, ainda no seu local de trabalho, desde que seja o titular ou o responsável legal do estabelecimento ou empresa: Pena – detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

 Art. 14. Portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar: Pena – reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa. (BRASIL, 2003)

Haja vista que o bem jurídico tutelado pela referida lei converge na segurança pública, e é uníssono da doutrina que se trata de delitos de perigo abstrato, resta identificar quais objetos além das armas de fogo estão tipificados como sendo também de perigo. Ora o próprio legislador assim já o fez nos artigos antecedentes, aos dissertar sobre as munições e acessórios.

Destarte que a munição é a forma de condução de um projetil envolto em um cartucho junto a demais propelentes em um tubo chamado estojo, que reage pela explosão de gases no interior da arma de fogo, o que causa por fim o disparo, que nada mais é que o lançamento do projetil. E acessório é qualquer objeto que vise facilitar a utilização do uso da arma de fogo.

Visto isso, corrobora o entendimento do STF (HC-113295) na transcendência da mera proteção a incolumidade pessoal e enfatizou na objetividade jurídica da norma penal em comento pautada na segurança coletiva revestida pelo acentuado crime de perigo abstrato.

Tão logo, a controvérsia paira ao adentrar em casos em que haja envolvimento da denominada ‘munição de festim’, que é a munição sem projetil, usualmente utilizada em apresentações militares, combates simulados ou para demais efeitos especiais de encenações de disparos em geral, como aqueles feitos em teatros ou intervenções cinematográficas. Por obvio, não arremessa projetil – porque ali é inexistente, todavia mantém os demais processos de um disparo normal, ou seja, ocorre a explosão de gases, o que em curta distância é capaz de causar lesões e dependendo do local atingido pode ser até grave. Ora se a ideia de criar uma lei de perigo abstrato é justamente para prevenir o delito de dano, não há motivos para desconsiderar a munição e festim do conjunto de artefatos considerados proibidos pela norma especial.

Por outra monta, é irrelevante tentar demonstrar a real lesividade do objeto supramencionado, uma vez que a lei penal impera sobra os princípios da legalidade e exclusividade da proteção dos bens jurídicos.

Acentua a constituição federal ante ao principio da legalidade em seu art. 5ª, XXXIX, a existência do crime apenas quando houver previa cominação legal. O texto supremo ainda assevera sobre a competência privativa da União a fim de legislar em matéria penal, em seu art. 22, I. De tal modo, instituído pelo legislador competente os tipos penais são pautados pela proibição de comportamentos que de alguma forma tenham o condão de expor a perigo ou de fato lesionem bem jurídicos relevantes, não cabendo de forma alguma a criminalização de qualquer ato que não seja por lei estrito senso, e o mesmo ocorre quando o assunto é abolitio criminis.

De todo modo, quando analisado o referido estatuto e interpretado nos moldes constitucionais coaduna a visível preocupação em tutelar a paz social e a segurança pública. Sendo certo que ainda que a causa supralegal de exclusão da tipicidade não tenha o poder de abolir crimes, apenas afastar sua incidência no caso concreto, o que muitas vezes se opõem em circunstâncias costumeiras da sociedade que passam a tolerar determinados comportamentos antes repudiados. Entretanto, é sabido que nenhum costume tem poder de descriminar, devendo então o legislador mudar a ótica criminal a partir de lei, ao relatar o fato social de novo modo, se assim desejar. Data vênia, aos entendimentos firmados em afastar a culpabilidade nos delitos já positivados, não seria possível afastar a incidência criminal em crimes de perigo abstrato, onde o legislador trabalha com hipóteses que consubstanciam  o crime sem que haja o efetivo dano, reafirmando a presunção legal de perigo.

4 PRECEDENTES E CONTROVÉRSIAS EXISTENTES

Em breve analise aos precedentes dos tribunais superiores, se confirma uma mudança no entendimento através dos tempos, que a priori se desempenhava com um parecer de maior positivismo aos poucos foi perdendo espaço para um parecer mais ativista. Tal mudança na visão jurisprudencial pode se dar pela maior incidência de delitos da mesma natureza o que acaba por banalizar uma conduta ou pelo evoluir da sociedade contemporânea.

Fato é, que o simples mudar de entendimento da sociedade não é capaz de mudar a norma legal, senão por processo legislativo apropriado, como ocorreu por exemplo a abolição do crime de adultério.

 Veja abaixo os últimos precedentes quando ao assunto, o que demonstra em curto lapso temporal uma brusca mudança no modo de tratar um assunto tão polêmico no Brasil, o que certamente reveste assaz instabilidade jurídica.

Segundo o julgado do HC 148801, o Ministro relator Dias Toffoli confirma a importância de afastar o princípio da insignificância nas infrações penais de dano abstrato, trás assentado entendimento do egrégio em abster a utilização do princípio em apresso nos delitos aferidos no estatuto do desarmamento e ainda ressalva a importância de análise do caso concreto, conforme atesta ementa abaixo, publicado no Diário oficial em outubro de 2017:

Decisão: Vistos. Habeas corpus, com pedido de liminar, impetrado em favor de André Luiz Scaff, apontando como autoridade coatora a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça, que negou provimento ao agravo regimental no AREsp nº 1.096.631/MS, Relator o Ministro Reynaldo Soares da Fonseca. Os impetrantes sustentam, em suma, a atipicidade da conduta descrita no art. 12 da Lei nº 10.826/03, que foi imputada ao paciente, em face do princípio da insignificância. Segundo a defesa, a apreensão de 16 (dezesseis) munições de arma de fogo calibre .38, desacompanhadas de qualquer arma de fogo que pudesse tornar útil o uso dos projéteis, não ofereceria perigo ao bem jurídico tutelado pela norma penal em questão. Requer o deferimento da liminar para suspender “o andamento do processo n. 0021984-71.2016.8.12.0001, em trâmite na 4ª Vara de Campo Grande (MS) (...)”. No mérito, pleiteia a concessão da ordem para que seja trancada a ação penal à qual responde o paciente na origem. Examinados os autos, decido. Transcrevo a ementa do aresto questionado: “AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. INVASÃO DE COMPETÊNCIA DO STJ. SUM. 123/STJ. DIVERGÊNCIA NÃO DEMONSTRADA. ACÓRDÃO PARADIGMA PROFERIDO EM HABEAS CORPUS. POSSE ILEGAL DE MUNIÇÃO DE USO RESTRITO. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CRIME DE PERIGO ABSTRATO. 1. Inexiste invasão de competência do STJ nos casos em que o Tribunal a quo analisa previamente a suposta violação da legislação federal no momento do exame de admissibilidade do recurso especial, pois tal procedimento está amparado pela Súmula n. 123/STJ, sendo a afronta à lei federal requisito constitucional para a interposição do mencionado recurso 2. Nos termos da jurisprudência desta Corte, acórdão proferido em habeas corpus, mandado de segurança e recurso ordinário, por não possuir a mesma extensão almejada no recurso especial, não serve de paradigma para fins de divergência jurisprudencial, ainda que se trate de dissídio notório. 3. Esta Eg. Corte entende ‘ser inaplicável o princípio da insignificância aos crimes de posse e de porte de arma de fogo, por reconhecer-lhes a natureza de crimes de perigo abstrato, independentemente da quantidade da munição apreendida e se esta encontrava-se ou não acompanhada da arma. Entendimento que atrai o óbice da Súmula n. 83 deste Superior Tribunal’ (AgRg no AREsp 644.499/MG, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, Quinta Turma, julgado em 23/06/2015, DJe 04/08/2015). 4. Agravo regimental a que se nega provimento” (anexo 7). Essa é a razão pela qual se insurge o impetrante. Como visto o aresto questionado se alinha à jurisprudência da Corte, segundo a qual, o porte ilegal de arma e munições é crime de perigo abstrato, cuja consumação independente de demonstração da potencialidade lesiva da arma ou das munições (v.g. RHC nº 123.533/MS-AgR, Segunda Turma, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJe de 22/10/14). Perfilhando esse entendimento: “HABEAS CORPUS. PORTE ILEGAL DE MUNIÇÃO. ALEGAÇÃO DE ATIPICIDADE. CRIME DE MERA CONDUTA. ORDEM DENEGADA. 1. O tipo penal do art. 14, da Lei n 10.826/03, ao prever as condutas de portar, deter, adquirir, fornecer, receber, ter em depósito, transportar, ceder, ainda que gratuitamente, emprestar, remeter, empregar, manter sob guarda ou ocultar arma de fogo, acessório ou munição, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal e regulamentar, contempla crime de mera conduta, sendo suficiente a ação de portar ilegalmente a munição. 2. Objetiva-se, assim, antecipar a punição de fatos que apresentam potencial lesivo à população, prevenindo a prática de crimes. Precedentes. 3. Ordem denegada” (HC nº 119.154/BA, Segunda Turma, Relator o Ministro Teori Zavascki, DJe de 11/12/13). Ademais, o caso não comporta a flexibilização desse entendimento, pois, diferentemente do paradigma citado pela defesa (HC 133.984/MG, Segunda Turma, Relatora a Ministra Cármen Lúcia, DJe de 2/6/16), no qual o agente infrator foi surpreendido trazendo consigo 1 (um) cartucho apenas de arma de fogo calibre .40, na hipótese dos autos, o paciente foi denunciado pela conduta tipificada no art. 12 da Lei nº 10.826/03, em razão de ter sido apreendido em sua residência 16 (dezesseis) munições de arma de fogo calibre .38. Ante o exposto, nos termos do art. 21, § 1º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, nego seguimento ao presente habeas corpus, ficando, por consequência, prejudicado o pedido de liminar. Publique-se. Brasília, 10 de outubro de 2017. Ministro Dias Toffoli Relator Documento assinado digitalmente)(grifo nosso)

Não obstante em dezembro do mesmo ano, o STF publica entendimento diverso no HC 149.450, trazendo a incidência do princípio a insignificância no delito de posse de munição de calibre restrito, onde por ser tratar de munição de festim, o egrégio atesta ausência de periculosidade do mesmo, logo sem ofensa ao bem jurídico. Esclarece breve resumo abaixo do despacho em apreço;

EMENTA: Estatuto do Desarmamento. (Lei nº 10.826/2003). Posse de munição de uso restrito (art. 16) desacompanhada de arma de fogo compatível com a sua utilização (fuzil). Constatação pericial de que referida munição constituía simples festim. Princípio da ofensividade e Direito Penal. “Nullum crimen sine injuria”. O debate em torno dos crimes de perigo abstrato. Doutrina. Comportamento do agente que não caracterizou, no caso, situação de perigo concreto. Fundamento suficiente para a concessão da ordem de “habeas corpus”. Existência, no entanto, de entendimento desta Corte diverso em tema de crimes de perigo abstrato. Princípios da fragmentariedade e da intervenção mínima do Direito Penal. Incidência, na espécie, do postulado da insignificância, que se qualifica como causa supralegal de exclusão da tipicidade penal em sua dimensão material. Precedentes do Supremo Tribunal Federal, inclusive em matéria concernente ao Estatuto do Desarmamento. “Habeas corpus” não conhecido. Ordem concedida “ex Supremo Tribunal Federal. Consequente absolvição penal do paciente (CPP, art. 386, III). (grifo nosso)

Dava vênia a elucidação do ilustríssimo Ministro, na fundamentação pertinente a decisão do ‘writ’, onde o mesmo reconhece haver diversos precedentes do mesmo tribunal em sentido diverso do seu entendimento, ao dissertar sobre o motivo de incidência do princípio da insignificância nos delitos de perigo abstrato não trouxe motivo que efetivasse overruling. Parece equivocado o conceito de perigo abstrato ao acentuar na mesma decisão que:

“Essa é a razão pela qual poder-se-ia não invocar como fundamento para a concessão da ordem de “habeas corpus” a inconstitucionalidade da regra penal que tipifica os delitos de perigo abstrato, pois – segundo penso –, sem que o agente crie ou faça instaurar, com o seu comportamento, situação de perigo real, descaracteriza-se, por completo, qualquer possibilidade, por remota que seja, de risco concreto ao bem jurídico penalmente tutelado.” (HC 149450.Rel. Min. Celso de Mello)

Sobre o crime de delito abstrato é pacifico dentre os doutrinadores, dentre eles, Rogério Sanches (2018), que leciona em seu manual de direito penal que os crimes de perigo abstrato ou presumido independem de comprovação de dano, pois depende da própria lei o apresso da periculosidade da conduta.

Em suma, fica a instabilidade jurídica revelada pela constante mudança no entendimento jurisprudencial, e apesar do julgado acima não vir em forma de precedente vinculante, fato é que diversos outros tribunais já estão aderindo a referida decisão. Há de se considerar o efeito progressivo que se resulta desse ativismo judicial e o perigo salutar em descumprir mandamento legal sobressaindo por princípios abstratos.

5 CONCLUSÃO

Em virtude dos fatos apresentados, é cediço dizer que o emprego da causa supralegal de exclusão da tipicidade é de assaz importância no sentido de adequar a norma ao mundo real, sempre em apreço as peculiaridades do caso concreto. Todavia ao afastar a incidência da norma tem que existir razoabilidade e pertinência com o ordenamento jurídico vigente. Sob pena de incorrer em afronta a separação dos poderes constitucionalmente estabelecidos.

Conexa a análise das recentes mudanças de parecer quando a incidência do princípio da insignificância nos crimes de perigo abstrato, se remonta nos delitos do estatuto do desarmamento, em que há presunção legal de perigo. Meio este que o legislador criou como forma de coibir ações que possam ressaltar demais delitos mais graves.

Fato é que a comercialização de artefatos bélicos ilegais no Brasil é um ilícito de extrema preocupação para comunidade nacional, dentre as guerras civis urbanas que existem em confrontos diários dos órgãos de segurança pública contra facções criminosas, não parece salutar tentar discriminar qualquer tipo de lei que traga abstenção de algum equipamento bélico as pessoas, uma vez que qualquer margem de liberalidade sem dúvidas será meio de impunidade aqueles intimamente ligados aos delitos de grande porte.

Ao considerar os fatores históricos, a própria criminologia prevê a necessidade de punição de delitos menores em detrimento de futuras incitações a crimes de maior relevância, o que ocorre quando se remete a teoria das janelas quebradas.

Em suma, é necessário estabelecer limites a atuação ativista para não correr o rico de haver um judiciário legislando conforme cada caso concreto, resguardar e precisão de precedentes vinculantes a fim de afirmar pela estabilidade jurídica. Não obstante a necessidade da ordem jurídica ser criada para paz e o convívio social e tendo que se adequar a evolução dos povos, a competência para tal é dos representantes do povo, legitimamente eleitos, que tem a prerrogativa de alterar a norma legal a fim de qualquer adequação necessária.

6 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

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Sobre a autora
Gabriela Pacheco Brandão

1] Bacharel em direito pela faculdade Multivix. Pós-graduada em Ciências Criminais pela Universidade Candido Mendes. Pós-graduada em Direito Aplicado pela Escola de Magistratura do ES. Pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal pela FAVENI.

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