Crimes dolosos e a competência da Justiça Militar da União

16/08/2018 às 18:21
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Este trabalho analisa a questão referente as recentes modificações na competência da Justiça Militar. Que levaram para o âmbito da Justiça Militar da União, a competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida, praticados por militar

Apesar de as Forças Armadas (FA) serem consideradas a Instituição com maior credibilidade perante a nação (ver Pesquisa Datafolha em https://www1.folha.uol.com.br/poder/2017/06/1895770-forcas-armadas-lideram-confianca-da-populacao-congresso-tem-descredito.shtml), vem sendo incessantemente alvo das mais variadas investidas depreciadoras, por parte de certos setores.

Como é sabido, as Forças Armadas, vem sendo cada vez mais acionadas para diversas missões para a “...defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem...” (Constituição Federal, art. 142).

A lista de missões é vertiginosa, tais quais: a) intervenção federal decretada no Rio de Janeiro; b) Operação Acolhida na fronteira com a Venezuela (Força-Tarefa Logística Humanitária em Roraima); c) fronteiras secas com os demais países sul-americanos por meio da implantação do Sistema de Monitoramento das Fronteiras (SISFRON); d) no auxílio aos Estados e Municípios na erradicação do mosquito da dengue, proteção em grandes eventos como Copa do Mundo e Olimpíadas; e) também nos períodos eleitorais.

Atualmente, um dos focos da artilharia contra a instituição castrense, são ações judiciais que vem sendo movidas para retirar da Justiça Militar da União, a competência para o processo e julgamento de crimes dolosos contra a vida de civis, praticados por integrantes das Forças Armadas, quando estiverem engajados nas operações militares indicadas na recente alteração legislativa.

Modificações que foram implementas no final de 2017 (Lei n° 13.491/17), exatamente para atribuir a Justiça Militar o julgamento de militares das Forças Armadas, nestas condições. Cujos dispositivos de interesse para esta análise, são abaixo transcritos, constantes do Código Penal Militar:

DECRETO-LEI Nº 1.001, DE 21 DE OUTUBRO DE 1969.

Crimes militares em tempo de paz

Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:

...§ 1o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares contra civil, serão da competência do Tribunal do Júri

§ 2o Os crimes de que trata este artigo, quando dolosos contra a vida e cometidos por militares das Forças Armadas contra civil, serão da competência da Justiça Militar da União, se praticados no contexto:     

I – do cumprimento de atribuições que lhes forem estabelecidas pelo Presidente da República ou pelo Ministro de Estado da Defesa;   

 II – de ação que envolva a segurança de instituição militar ou de missão militar, mesmo que não beligerante; ou      

III – de atividade de natureza militar, de operação de paz, de garantia da lei e da ordem ou de atribuição subsidiária, realizadas em conformidade com o disposto no art. 142 da Constituição Federal e na forma dos seguintes diplomas legais: 

a) Lei no 7.565, de 19 de dezembro de 1986 - Código Brasileiro de Aeronáutica; 

b) Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999;        

c) Decreto-Lei no 1.002, de 21 de outubro de 1969 - Código de Processo Penal Militar; e        

d) Lei no 4.737, de 15 de julho de 1965 - Código Eleitoral.   

Antes de prosseguir, é preciso relembrar que uma modificação significativa, já havia sido feita no Código Penal Militar, ainda em 2011, ao ter atribuído a Justiça Militar a competência para o julgamento de eventuais acusações, decorrentes da aplicação da chamada Lei do Abate de aeronaves consideradas hostis (ou Tiro de Destruição). Prevista no art. 303, do Código Brasileiro de Aeronáutica. Com esta modificação de 2011, a redação do parágrafo único do art. 9°, do CPM, havia sido definida da seguinte forma. Que foi mantida na redação da nova lei acima referida.

Outro esclarecimento importante, é que esta alteração aqui abordada, diz tão e somente a Justiça Militar da União, competente para o processo e julgado de militares das Forças Armadas (Exército, Marinha e Aeronáutica). Deixando de fora os militares dos Estados (Policiais e Bombeiros) que por expressa disposição legal, continuam passíveis de serem julgados perante o Tribunal do Júri, nos crimes dolosos contra a vida

De acordo com as normas processuais e constitucionais, em regra, as pessoas que cometam crimes dolosos contra a vida (ex: homicídio) são submetidas a julgamento perante o Tribunal do Júri. Cuja composição é formada por sete jurados que integram o denominado Conselho de Sentença (leigos, escolhidos dentre os membros da sociedade), sob a presidência de um Juiz Togado de carreira.

Sendo que estes jurados não precisam justificar seus votos/decisões (decisão tomada mediante a resposta a quesitos previamente formulados), e inclusive sendo secreta e sigilosa a resposta dada a estes quesitos. E cujo veredito é soberano, não podendo ser modificado sequer pelas Cortes Recursais que, quando muito, podem anular o julgamento, mas não reverter o veredito (CF, art. 5°, XXXVIII). Não se podendo nem mesmo saber quais foram os motivos e fundamentos, que levaram este jurado a condenar, ou absolver, o acusado.

Os detratores da Justiça Militar, ao que parece, desconsideram o fato de que esta Corte Castrense também tem formato assemelhado ao Júri. No caso da Justiça Militar da União, responsável pelo julgamento dos membros das Forças Armadas, os militares são julgados pelas Auditorias Militares, compostas por cinco membros, sendo um deles um Juiz-Auditor de carreira, concurso e não pertencente as Forças Armadas (escabinato). Como estabelece a Lei n° 8.457/92:

Art. 16. São duas as espécies de Conselhos de Justiça:

a) Conselho Especial de Justiça, constituído pelo Juiz-Auditor e quatro Juízes militares, sob a presidência, dentre estes, de um oficial-general ou oficial superior, de posto mais elevado que o dos demais juízes, ou de maior antigüidade, no caso de igualdade;

b) Conselho Permanente de Justiça, constituído pelo Juiz-Auditor, por um oficial superior, que será o presidente, e três oficiais de posto até capitão-tenente ou capitão.

...

Art. 33. O ingresso na carreira da Magistratura da Justiça Militar dar-se-á no cargo de Juiz-Auditor Substituto, mediante concurso público de provas e títulos organizado e realizado pelo Superior Tribunal Militar, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil, em todas as suas fases.

A própria composição das Cortes Militares, portanto, já evidencia que não procedem as insinuações de ser uma justiça corporativista, que não promoveria a punição dos militares que, porventura, tiverem praticados condutas ilegais. Não apenas por ser um órgão colegiado, mas precipuamente porque tem como um de seus julgadores um Juiz civil, concursado, não pertencente as fileiras militares.

Analisando ainda sob outro ângulo, não se pode conceber como o Tribunal do Júri (civil), composto por pessoas leigas da sociedade, poderia ter condições de avaliar os complexos meandros de tomadas de decisões, inerentes uma ocorrência em que resultasse o óbito de pessoas que tiverem partido para o enfrentamento contra as Forças Armadas. Aliado aos segredos de Segurança Nacional, ou de estratégias operacionais, que poderiam ficar expostos em um julgamento como este, pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri. Posto que assuntos sensíveis inevitavelmente teriam que ser revelados (como referentes a capacidade operacional das tropas envolvidas), para se avaliar os procedimentos executados pelos militares envolvidos na operação.

Bem assim, o fato de o militar engajado em operações de alto risco (como as decorrentes de Operações de Garantia da Lei e da Ordem, e da Intervenção Federal no Rio de Janeiro), poder ser julgado perante a Justiça Militar, certamente lhe confere a tranquilidade psicológica para se lançar na missão. Sabendo que sua conduta será auditada sim, e os eventuais desvios de conduta punidos com rigor. Mas com base na legalidade, e por seus pares, que compreendem as inúmeras contingências que ocorrem no teatro de operações, e não sujeito a um julgamento potencialmente permeado por concepções ideológicas que poderiam, em alguns casos, prejudicar a isenção de julgamento se conduzissem as decisões no Conselho de Sentença. Ainda mais se estes jurados estiverem sob a ameaça, daqueles contra os quais as Forças Armadas foram empregadas. Que podem cobrar destes jurados um determinado veredito, sob pena de consequências a eles mesmos, e seus familiares.

Aliás, esta possibilidade de tratamento diferenciado acerca da competência jurisdicional, tem assento na própria Constituição Federal. Que fez nítida diferenciação ente militares da União (Forças Armadas) e militares dos Estados (Policiais e Bombeiros). Tanto que no art. 124 foi atribuída a Justiça Militar a competência para o julgamento dos crimes militares, e no parágrafo único, estipulado que cabe a lei definir aquilo que se deve considerar como crime militar. E, no art. 125, §4°, ao tratar das Justiça dos Estados, expressamente submeteu os militares dos Estados ao julgamento perante o Tribunal do Júri, no caso de crimes dolosos contra a vida praticados contra civis.

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Art. 124. À Justiça Militar compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei.

Parágrafo único. A lei disporá sobre a organização, o funcionamento e a competência da Justiça Militar.

Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição.

...

§ 4º Compete à Justiça Militar estadual processar e julgar os militares dos Estados, nos crimes militares definidos em lei e as ações judiciais contra atos disciplinares militares, ressalvada a competência do júri quando a vítima for civil, cabendo ao tribunal competente decidir sobre a perda do posto e da patente dos oficiais e da graduação das praças.

Noutras palavras, se a Constituição Federal fez a distinção entre militares dos Estados e da União, determinando que somente os militares dos Estados é que devem ser submetidos ao julgamento perante o Tribunal do Júri se houver prática de crime doloso contra a vida envolvendo civis, não tendo feita a mesma referência aos militares da União, e se a mesma Constituição Federal delega a lei geral a possibilidade de definição daquilo que venha a ser considerado crime militar, não há como (respeitando os que pensam em contrário) pretender identificar algum traço de inconstitucionalidade nas recentes modificações implementadas no Código Penal Militar, acerca da competência, conforme trecho desta lei acima reproduzido.

Surpreendentemente, os mesmos argumentos que são utilizados por aqueles que vem movendo estas ações (em especial pelo DD. Ministério Público), no qual sustentam haver a inafastabilidade de julgamento perante o Tribunal do Júri dos militares em geral (em razão de um suposto comando constitucional que assim determinaria), são os mesmos argumentos que imporiam a obrigatoriedade de julgamento dos DD. Representantes do Ministério Público perante este Júri.

Ocorre que, tanto a Constituição Federal, como a Lei de regência do Ministério Público da União (cuja prerrogativa também é replicada para seus integrantes dos Estados), afastam da competência do Tribunal do Júri a competência para o julgamento de crimes dolosos contra a vida praticados por integrantes do Ministério Público e do Judiciário. Estabelecendo que são julgados perante os Tribunais Federais ou dos Estados, nos seguintes termos:

Constituição Federal

Art. 96. Compete privativamente: ...III - aos Tribunais de Justiça julgar os juízes estaduais e do Distrito Federal e Territórios, bem como os membros do Ministério Público, nos crimes comuns e de responsabilidade, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral.

Lei Complemantar 75/93

 Art. 18. São prerrogativas dos membros do Ministério Público da União:

...II - processuais: ...c) do membro do Ministério Público da União que oficie perante juízos de primeira instância, ser processado e julgado, nos crimes comuns e de responsabilidade, pelos Tribunais Regionais Federais, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral;

Nem se diga que serão julgados por Órgãos da Justiça Comum (Tribunais), que se distinguiriam de uma Justiça Militar (supostamente protetiva dos seus membros), e por isso se justificaria. A questão de fundo permanece a mesma, a de quererem impor o julgamento pelo Tribunal do Júri de militares das Forças Armadas (que tem a missão constitucional de defesa da Pátria), enquanto estes mesmos defensores do julgamento Tribunal do Júri não aceitam a ele se submeter.

Triste episódio de dois pesos e duas medidas. O que está a revelar que as investidas que vem sendo promovidas contra as fileiras castrenses, podem ter outras motivações, que não as mais virtuosas. O leitor tire suas próprias conclusões.

Sobre o autor
Sérgio de Oliveira Netto

Procurador Federal. Mestre em Direito Internacional (Master of Law), com concentração na área de Direitos Humanos, pela American University – Washington College of Law. Especialista em Direito Civil e Processo Civil. Professor do Curso de Direito da Universidade da Região de Joinville - UNIVILLE (SC).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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