A teoria do venire contra factum proprium consiste na vedação do comportamento contraditório. Apesar de não termos disposição explícita no Código de Defesa do Consumidor, tal teoria, a luz dos princípios norteadores de consumo, é aceita pelos Tribunais. Por ela, proíbe-se o comportamento inesperado, que viola a boa-fé objetiva, causando surpresa na outra parte.
Trata-se da proibição comportamento inesperado, que viola a boa-fé objetiva, causando espanto e surpresa na outra parte. Embora seja mais frequente por parte dos fornecedores, é praticável pelo consumidor, em tese, também.
Atende-se, em apertada síntese, do dever de não agir em contradição com os seus atos. A aplicação da teoria do Venire Contra Factum Proprium pode ocorrer em situações negociais diferenciadas e variadas.
Segundo Paulo Lôbo, um exemplo é quando uma parte, intencionalmente ou não, faz crer à outra que determinada formalidade não é necessária, incorrendo em contradição com seus próprios atos quando, mais tarde, pretende amparar-se nesse defeito formal para não cumprir sua obrigação; quando, apesar da nulidade, uma parte considera válido o ato, dele se beneficiando, invocando a nulidade posteriormente por deixar de interessá-la.
O Código de Defesa do Consumidor, em seu artigo 4º, inciso III, positivou o princípio da boa-fé como uma regra de conduta nas relações de consumo. A boa-fé objetiva, como regra de conduta, é caracterizada como um dever de agir respeitando certos padrões de honestidade e lealdade, com a finalidade de não frustrar a confiança da outra parte, mantendo o equilíbrio nas relações consumeristas.
A boa-fé objetiva é, talvez, o princípio máximo orientador do CDC. Trata-se do dever imposto, a quem quer que tome parte na relação de consumo, de agir com lealdade e cooperação, abstendo-se de condutas que possam esvaziar as legítimas expectativas da outra parte. Daí decorrem os múltiplos deveres anexos, deveres de conduta que impõem às partes, ainda na ausência de previsão legal ou contratual, o dever de agir lealmente.
O princípio da boa-fé possui fundamentação constitucional, pois decorre dos princípios fundamentais da solidariedade e da dignidade da pessoa humana, sendo um instrumento jurídico a ser utilizado na eliminação das desigualdades encontradas nas relações de consumo, assim a Constituição Federal, em seu artigo 170, estabeleceu princípios e normas com a intenção de coibir e reprimir os abusos praticados no mercado de consumo.
A boa-fé objetiva atua ainda como um dos princípios norteadores da atividade econômica, uma vez que é refletida em aspectos econômicos e sociais do contrato, onde se busca respeitar a autonomia da vontade que está atrelada aos efeitos sociais que serão produzidos, permitindo, assim, o restabelecimento da igualdade e do equilíbrio entre consumidor e fornecedor. A boa-fé objetiva apresenta-se como ferramenta para viabilizar a harmonização e o equilíbrio contratual. Sobre outro aspecto, o princípio incide nas relações consumeristas como norma limitadora dos direitos subjetivos, com a intenção de coibir as chamadas cláusulas abusivas.
Podemos observar umas das hipóteses mais frequentes da teoria. Não pode o fornecedor, modificando as expectativas legitimamente estabelecidas, alterar o padrão de comportamento de modo abrupto, causando surpresa e perplexidade. Trata-se de velho conhecido do direito civil tal instituto.
Nesse sentido, as jurisprudências dos Tribunais coadunam com esse posicionamento:
APELAÇÃO CÍVEL. PROCESSUAL CIVIL. CIVIL. CONSUMIDOR. PLANO DE SAÚDE. SÚMULA 469 STJ. PLANO COLETIVO CONTRATO CELEBRADO COM INOBSERVÂNCIA AO NÚMERO MÍNIMO DE TITULARES. RESCISÃO. IMPOSSIBILIDADE. PROIBIÇÃO DO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM. DESLIGAMENTO DE TITULARES. MANUTENÇÃO DO PLANO. RESCISÃO APÓS LONGO PERÍODO. IMPOSSIBILIDADE. SUPRESSIO. BOA-FÉ OBJETIVA. SEGURANÇA JURÍDICA. CONTRATO MANTIDO. RECURSO IMPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. 1. "Aplica-se o Código de Defesa do Consumidor aos contratos de plano de saúde". (Súmula 469 STJ). 1.1. In casu, as autoras, ora apeladas, são consumidoras pois assinaram um contrato de adesão ao plano de saúde e utilizam o serviço como destinatárias finais (art. 2º CDC) e a ré, ora apelante, é fornecedora, porquanto desenvolve atividade de prestação de serviços no mercado de consumo, mediante remuneração (art. 3º CDC). 2. O caso deve ser analisado à luz do princípio da boa-fé objetiva que orienta os contratos civis e consumeristas, aplicando-se os institutos da supressio e da proibição do venire contra factum proprium. 2.1. A proibição do venire contra factum proprium ou teoria dos atos próprios visa proteger a parte contra aquele que deseja exercer um status jurídico em contradição com um comportamento assumido anteriormente. 2.2. O instituto da supressio decorre do princípio da boa-fé objetiva e significa o desaparecimento de um direito, não exercido por um lapso de tempo, de modo a gerar no outro contratante a expectativa de que não será mais exercido. 3. No caso em análise, em que pese haver no contrato realizado entre as partes a previsão de rescisão no caso de o número de titulares se tornar inferior a cinco, o contrato já foi celebrado com um número reduzido de titulares, de modo que não pode o apelante, mais de quatro anos depois, desejar rescindir unilateralmente o contrato, uma vez que o instituto do venire contra factum proprium veda atitudes contraditórias que quebre o princípio da confiança que deve existir nas relações contratuais. 4. De igual forma, não pode o apelante rescindir o contrato em razão do reduzido número de titulares se durante sua execução ocorreram sucessivos desligamentos de titulares e este concordou com a manutenção do plano de saúde. A fim de manter a segurança jurídica da relação jurídica deve ser aplicado o instituto da supressio, pelo qual não pode a parte exigir uma obrigação em sua forma original, se não a exigiu durante um longo período de tempo, gerando na outra parte a real expectativa de que seu direito não seria exigido. 5. A luz do princípio da boa-fé objetiva e de seus desdobramentos consubstanciados nos institutos da proibição do venire contra factum proprio e da supressio, tem-se por suprimido o direito do apelante na rescisão do contrato com fundamento no item 5 da cláusula 15.2 que dispõe sobre o número mínimo de titulares para manutenção do plano de saúde. Com efeito, o contrato entabulado entre as partes deverá ser mantido nas exatas condições vigentes. 6. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA. (Acórdão n. 928319, Relator Des. ALFEU MACHADO, Revisor Des. RÔMULO DE ARAÚJO MENDES, 1ª Turma Cível, Data de Julgamento: 16/3/2016, Publicado no DJe: 13/4/2016).
"Seguro-saúde. Cobertura. Cirrose provocada por vírus "C". Exclusão. Precedentes. Adqurida a doença muito tempo após a assinatura do contrato, desconhecida do autor, que, em outra oportunidades, obteve tratamento com reembolso, diante de situação semelhante, não há fundamento para a recusa da cobertura, ainda mais sendo de possível contaminação em decorrência de tratamento hospitalar, ocorrendo a internação diante de manifestação aguda, inesperada” (STJ, RESp. 255.065, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, j, 05/04/01, p, DJ 04/06/01).
Segundo, Anderson Schreiber tem por pressupostos do instituto versado: a) um “factum proprium”, ou seja, uma conduta inicial; b) a legitima confiança de outrem na conservação do sentido objetivo desta conduta; c) um comportamento contraditório com este sentido objetivo; d) um dano, ou, pelo menos, um potencial dano a partir da contradição.
A proibição do venire contra factum proprium ou teoria dos atos próprios visa proteger a parte contra aquele que deseja exercer um status jurídico em contradição com um comportamento assumido anteriormente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Paulo Lôbo. Obrigações; São Paulo: Saraiva, 2011;
Anderson Schreiber A proibição de comportamento contraditório: a tutela da confiança e “venire contra factum proprium”. Rio de Janeiro: Renovar, 2005 e
Felipe Peixoto Braga Netto Manual de direito do consumidor à luz da jurisprudência do STJ. Editora JusPodivm, 2014.