Onde está o humano, o(a) Outro(a) sumiu?
Em entrevista de 2018, Giorgio Agamben – filósofo italiano – declarou que crise e economia são as rodas da atualidade. Ao ouvir “crise”, o cidadão (qual?) deve reagir prontamente em sinal assertivo: “Irei obedecer”. A crise é o poder e o poder é a capacidade de gerar crise – esta é nossa conclusão inicial.
Emprestando Agamben para falar com Agamben (2004), diríamos ainda que a crise não só é permanente como se agudiza acentuadamente e assim a crise excepcional – por sua magnitude na escala que põe em escombros o IDH (índice civilizatório) –, antes provisória, passageira, temporária – como crise cíclica do capital ou da assimetria do poder: Estado de Exceção como remédio jurídico –, agora se perfaz determinante, impositiva de regras porque a crise é a regra.
A crise não é mais uma exceção que visitava o sistema político-econômico – ainda que com regularidade. Hoje, a crise é a regra que determina ao poder a imposição de regras excepcionais. As modalidades tanto são do passado quanto do futuro: Impeachment, Golpes de Estado e contragolpes, Estado Policial – transformação do abuso de poder em crime de calúnia contra o poder –, compra da “imprensa livre” pelo mercado especulativo, criminalização dos políticos e da Política (Polis), ocorrência crescente de presos políticos, totalitarismo econômico global (IBM, Facebook, Google, Apple, Amazon), terceirização total (uberização) como “nova” servidão voluntária (La Boetie, 1986), trabalho intermitente ou análogo à escravidão, agrotóxico como tempero de arroz e feijão, revisionismo/retorno como farsa (Fake News), ditadura judicial: reversão dos princípios do Direito Ocidental.
Era de direito sectário.
Sob um conceito dos anos 1930, de Antonio Gramsci (2000), vivemos sob um severo “cesarismo regressivo”: talvez o pior da história. É tão grave a situação global e nacional que, quem olha para a realidade ou para o passado não encontra nada – ou está predisposto a nada ver: o presente é uma mentira, um pesadelo que consumiu qualquer perspectiva e do qual conta-se os dias para acabar; o passado é negado porque não somos racistas, nem xenófobos, muito menos machistas e/ou fascistas. Mesmo que se defenda publicamente o linchamento e a tortura.
(Nunca houve guerra civil, porque somos um povo pacífico moldado pela miscigenação: não tivemos genocídio, nem estupro étnico. Nossa guerra é assimétrica, não é distopia, porque não entendemos que nos recusamos a entrar em simetria com o real).
O futuro, que a Deus pertence – mas que está guardado ao “homem de bem”: descontadas a sonegação, a evasão fiscal e a misoginia –, não existe porque estamos em curva descendente. Em ditos populares: acabaram com o país em dois anos.
Quem não vê é quem não consulta os cadernos de economia, pois descobriria que milhões e milhões de euros estão sendo remetidos para o mundo todo, em especial para Portugal: nossos milionários e bilionários, vendendo o país, estão comprando bons nacos para seus filhos viverem no mundo civilizado.
Os nacionais pagam à vista. Também esperam vender à vista, sobretudo depois do apoio que deram ao 2016, porque com o dólar dissolvendo o real esperam não perder o que conseguiram. Os dois mundos se reencontram, mas a República viverá em qual: real ou virtual?
Para quem fica por aqui, 2016 é uma odisseia que não termina. Nunca terminará, uma vez que é o ano de nossa entrada triunfal na crise permanente: “orai e obedecei”. Não que já não estivéssemos em crise, mas é que em 2016 entramos com os dois pés – como se diz na briga de rua que veio parar dentro de casa.
Para efeito de comparação final, lembremos que os mais otimistas à época (incluso o articulista) diziam que, em 20 anos, o país conseguiria se recuperar do golpe sofrido. Hoje, o mais cético (incluso o articulista) tem certeza de que o Mal não tem limite. O otimista (incluso o articulista) passou a acreditar que, se não descermos muito mais a ladeira, a lareira do fogo eterno é capaz de não queimar até o fim.
Nos trocadilhos da crise permanente, o povo (incluso o articulista) queda atordoado pela velocidade com que o caos passou da teoria à prática e se transformou de exceção em regra. Para resgatar uma linguagem antiga, a crise permanente grudou como “segunda pele”.
Agora realmente podemos dizer que somos atávicos.
Construímos uma bela genética do crime, da crise e da exceção (que é regra). Por fim, como ainda não inventamos uma “democracia adstringente”, nossa pele seguirá sendo uma carapaça.
Referências Bibliográficas
AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. (Org. Carlos Nelson Coutinho). V. 2. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2000.
LA BOETIE, E. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1986.