Sistemas processuais penais:

análise sobre o sistema inquisitório, acusatório e misto

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31/08/2018 às 18:25
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A análise apurada dos Sistemas Processuais Penais deve ser realizada com latente precisão, vez que só a compreensão dos seus conceitos, poderá demonstrar a natureza inquisitorial do atual Sistema Processual brasileiro.

INTRODUÇÃO

O Sistema Processual Penal é tema bastante debatido na doutrina especializada, seja por conta de seus aspectos diferenciadores, quanto pelo melhor sistema a ser aplicado na órbita processual penal.

De todo modo, independentemente do sistema a ser reconhecido pela doutrina, é importante que a diferenciação entre o inquisitório, acusatório e o “misto” seja devidamente esclarecida. O próprio entendimento do real significado de sistema, deve ser esclarecido, já que influencia na compreensão da matéria aqui debatida.

Como é sabido, há sistemas em todos os ramos do saber, o que proporciona uma melhor compreensão e esquematização do conhecimento. O sistema jurídico, como bem reforça Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, “é o conjunto de temas colocados em relação por um princípio unificador, que forma um todo pretensamente orgânico, destinado a uma determinada finalidade”[1]. Para a compreensão de sistemas, portanto, deve existir um princípio norteador, algo que une outras matrizes em volta de si, como o Sol une todos os demais planetas, formando o sistema solar.

Por conseguinte, os sistemas processuais penais, de igual forma, têm como o seu sol norteador a “gestão da prova”, ou seja, é através da gestão da prova e de sua interpretação que concluiremos que determinado sistema é inquisitivo, acusatório ou misto(?).[2]

Ocorre que, os sistemas processuais penais não são puros, necessitando para a sua conceituação a compreensão de seus princípios centrais e norteadores, e somente através dessa análise que haverá o entendimento do sistema processual vigente.[3]

Assim sendo, a diferenciação destes dois sistemas processuais “faz-se através de tais princípios unificadores, determinados pelo critério de gestão da prova. Ora, se o processo tem por finalidade, entre outras, a reconstituição de um fato pretérito, o crime, mormente através da instrução probatória, a gestão da prova, na forma pela qual ela é realizada, identifica o princípio norteador”.[4]

Portanto, o presente trabalho tem a intenção de abordar os sistemas processuais penais, de forma sumária, tendo como enfoque o Sistema acusatório e o pretenso “sistema misto”, inclusive com a apresentação de alguns dos problemas que a prática processual penal tem enfrentado na atualidade.

Ademais, temos a pretensão de abordar breves linhas a respeito da crise do Estado de Direito, muito bem abordado por Rui Cunha Martins na sua obra “A hora dos cadáveres adiados: corrupção, expectativa e processo penal”,  e sua correlação com a crise do Direito brasileiro, que acaba por incidir na própria noção de sistemas processuais penais.


1. Sistema inquisitório

Após o Édito de Milão, no ano de 313, o Império Romano não mais passou a perseguir os Cristãos, e devolveu os bens que até então haviam sido apreendidos, inclusive reestabeleceu os locais de culto da nova religião. Desde então, houve um fortalecimento da Igreja católica, principalmente com o Concílio de Nicéia, local onde foi discutida várias crenças da religião, o que unificou os Cristãos, que passaram a ter um mesmo credo e igual ritual.

Durante toda a alta idade média, a Igreja Católica se tornou instituição essencial e fundadora das estruturas feudais, assumindo caráter político ativo por toda a Europa. Neste período a “Igreja, com a conversão de Constantino (312 D.C.), passa a ser a mais importante aliada do Poder e, por estratégia, depois do primeiro mosteiro fundado por São Bento em Subiaco, começa a preparar seus membros a partir da patrística agostiniana, toda fundada em Platão e, portanto, dentro do padrão fornecido por uma verdade calcada em um mundo hipostasiado.”[5]

Ocorre que, a partir do ano 1000, em virtude do comércio que estava a florescer no continente, surgem determinados confortos que em momento pretérito não existiam. Por conta disso, o indivíduo medieval, antes recluso nos feudos, começa a modificar a sua visão e a buscar conforto em bens materiais e facilidades, trazidas pelas caravanas de mercadores, muito comum no período.[6]

Com essa modificação social, a Igreja católica nota que não possui mais o controle sobre a vida do indivíduo medieval, necessitando encontrar outro meio de voltar a ter total autoridade sobre a sociedade e, ao mesmo tempo, manter o seu fortalecimento político frente aos futuros Estados soberanos.

Assim, no meio deste contexto histórico, surge a Inquisição. Por critérios eminentemente políticos, o papa Inocêncio III baixa a bula Vergentis in senium “em 1199, equiparando o crime de heresia ao de lesa majestade, historicamente o mais grave dos crimes”[7], na tentativa de garantir a manutenção do seu poder frente às demais instituições do período.[8]

Importante anotar, que a Inquisição nos moldes como conhecemos hoje, não surgiu de um ato autônomo e imediato de algum governante papal. Ela foi progressivamente assumindo espaço no medievo, através de vários atos realizado por inúmeros governantes. Talvez, o principal ato da Inquisição, tenha sido promovido pelo papa Lúcio III, que deu origem ao ad abolendam, ato que possibilitou com que os inquisidores perseguissem aos hereges, não necessitando mais de eventual notitia criminis. Assim, com a possibilidade de perseguir o herege, a Inquisição foi moldada, e a busca da verdade se tornou o seu lema.

Nota-se que no período, não existia qualquer codificação que possibilitasse com que o investigador-juiz chegasse ao conhecimento da realidade, ou seja, não se fazia presente um Código de Processo Inquisitorial que indicasse o método a ser utilizado pelo inquisidor à busca da verdade. Assim, em toda o continente europeu, surgiram certos repertórios, que concederiam um norte para o inquisidor. O Malleus Maleficarum (1486), de Heinrich Kramer e James Sprenger é o mais conhecido dessas “codificações”, trazendo a mulher como manifestação do diabo (bruxa)[9].

No entanto, independente da fonte a ser bebida, nota-se que o Processo Inquisitorial possui a mesma característica norteadora de todo o sistema, qual seja, a concentração da gestão da prova nas mãos do inquisidor. Esse colhia os depoimentos testemunhais, as provas materiais, interrogava o condenado e o condenada. O herege, neste sistema, é mero objeto de prova, o qual detém a verdade de um crime, e sua confissão deve ser alcançada a qualquer custo, mesmo ao ônus de tortura.[10]

A tortura, no período, não servia somente para a busca da verdade, ou seja, para a confissão do acusado. Com a dor há a expiração dos pecados e a purificação do pretenso herege, sendo que somente através da dor extrema os pecados daquele que está sendo torturado irão ser redimidos. A fogueira, portanto, além de uma condenação cruel, é necessária para a purificação do condenado.

De todo modo, apesar das várias críticas levantadas pela doutrina a respeito do Sistema Inquisitório, principalmente pela concentração de poder nas mãos do inquisidor, existem vantagens aparentes no sistema, já que o “o juiz poderia, mais fácil e amplamente informar-se sobre a verdade dos factos – de todos os factos penalmente relevantes, mesmo que não contidos na 'acusação' –, dado o seu domínio único e omnipotente do processo em qualquer das suas fases”[11]

Por fim, é importante notar, que o sistema inquisitório ainda continua nos ordenamentos jurídicos ao redor do mundo. Como os sistemas penais não são puros, há certos predicados inquisitoriais em grande parte dos sistemas do globo. No Brasil, inclusive, há posição de que o “sistema processual penal brasileiro é, na essência, inquisitório, porque regido pelo princípio inquisitivo, já que a gestão da prova está, primordialmente, nas mãos do juiz.”[12]


2. Sistema Acusatório

O sistema acusatório, bem como o sistema inquisitório, esteve presente em diversos momentos históricos. Nota-se que no período grego e romano, o sistema acusatório se fez presente. Nos Tribunais atenienses, a prova era colhida pela acusação e pela defesa, separadamente, para somente após isso existir um julgamento por um colegiado de julgadores populares, previamente escolhidos[13]; já em Roma, o processo acusatório também encontrou local fértil, existindo uma separação marcante entre àquele que acusa, defende e decide, tendo seu declínio no período do Império e a usurpação de poderes por parte dos magistrados. [14]

Esse sistema, tem como enfoque principal, a gestão da prova realizada pelas partes (acusação e defesa-acusado) e a análise probatória realizada pelo julgador, que não possui qualquer relação com a feitura da prova. Há, aqui, um do Juiz que aguarda a prova, sendo que “o processo, destarte, surge como uma disputa entre as partes que, em local público (inclusive praças), argumentavam perante o júri, o qual, enquanto sociedade, dizia a verdade, vere dictum”.[15]

O princípio dispositivo, portanto, é àquele que prepondera nesse sistema, haja vista que toda a instrução da prova deve ser trazida pelas partes e analisada pelo magistrado, que assumiria um caráter de terceiro imparcial[16].

Nota-se que no Sistema acusatório, em decorrência do afastamento da instrução probatória pelo juiz, as partes possuem maior responsabilidade frente a realização de provas no processo, pois somente essas têm o dever de demonstrar os fatos que efetivamente ocorreram, com o fim de que o magistrado dê a decisão mais equânime.[17]

Com as três funções dos sujeitos da relação processual delimitadas (juiz, acusador e defensor-acusado) o contraditório, em seu aspecto formal e substancial, encontra lugar fértil para florescer, devendo apenas o Poder Público possibilitar que exista paridade de armas entre a acusação e a defesa. Um dos meios de alcançar a paridade de armas, é através da dialética no processo penal, buscando a “necessidade de se construir um terreno fértil para que o réu tenha condições de falar e possa realmente ter fala. Ou seja, adotar uma ética liberatória do processo penal e não violar a era da escuridão, com um juiz inquisidor”[18].

Portanto, o Sistema acusatório, essencialmente, é aquele em que a atividade investigativa e de colheita de provas está nas mãos das partes interessadas e o magistrado somente tem como único foco organizar a relação processual, bem como julgar o processo com base naquilo que chegou ao seu conhecimento. Em suma, o juiz é investido de inatividade probatória, somente estando apto a julgar no momento oportuno.


3. Sistema Misto (?) e o Código de Processo Penal brasileiro

Como já foi abordado neste trabalho na sua introdução, não existem sistemas puros, somente determinados sistemas que são identificados por seu princípio norteador, como o princípio inquisitivo (sistema inquisitório) e o dispositivo (sistema acusatório). Portanto, seguindo essa lógica, todos os sistemas são mistos, e por falta de um princípio unificador, o que a doutrina chama de “sistema misto” termicamente não pode ser considerado nem sistemas.[19]

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O que a literatura chama de “sistema misto”, adveio com o Código Criminal Francês de 1808, o código de Napoleão. Nele houve separação dos sujeitos da relação processual, tendo uma fase meramente inquisitorial (juiz de instrução) e outra processual, realizada com o respeito ao contraditório e a ampla defesa, ao melhor estilo inglês.

Esse procedimento, todavia, assumia caráter meramente retórico, e tinha como único foco iludir a população e atribuir uma roupagem democrática, para um regime eminentemente ditatorial. Jacinto Coutinho assim aborda:

“No fundo, toda a prova produzida na primeira fase de persecução, em regra por um juiz instrutor, na investigação preliminar puramente inquisitorial, era usada na fase processual, por exemplo por sua leitura no chamado jugement. A sessão virava, como era sintomático, teatro, não raro pantomima; puro embuste; e os discursos, pomposos e longos, inflação fonética. As cartas do jogo já estavam marcadas e para desdizer isso era preciso desacreditar figura democrática do juiz instrutor, tão inquisidor quanto qualquer outro que, na história, ocupou aquele lugar.”[20]

Existia, assim, uma separação somente formal entre a atividade investigativa, realizada pelo juiz-instrutor, e a atividade julgadora. O Código de Napoleão influenciou grande parte dos Código Processuais penais europeus, entre eles o Códice Rocco, da Itália fascista de 1930 que, por sua vez, literalmente serviu de base para o Código Processual Penal brasileiro de 1941.

Nota-se que tanto o código de Napoleão quanto os seus percursores (CPP-41), foram realizados por regimes ditatoriais, onde a manipulação do procedimento criminal se faz necessário para a própria manutenção do regime.

Como mencionado, a maioria dos doutrinadores brasileiros compreendem que o Código de Processo Penal é misto, vez que separa a atividade investigativa da processual e há uma separação dos sujeitos do processo. De todo modo, essa similaridade com o Direito ditatorial francês, não encontra residência somente em aspectos processuais penais.

A retórica presente no Código Francês, que atribuía caráter fantasioso de respeito ao devido processo legal, igualmente se faz presente no Código processual penal brasileiro. “No fundo, não há diferença excepcional entre eles dado se tratar, sempre, de mecanismo inquisitorial (onde reside o problema): qualquer um que estiver naquele lugar – repita-se – tenderá a fazer o papel de inquisidor, exerça a função que exercer”.[21]

No Brasil, assim como no Código Francês, a fase pré-processual é àquele que realiza a colheita de elementos de informação que, em juízo, na prática, apenas são ratificados, bastando “o belo discurso do julgador para imunizar a decisão. Esse discurso vem mascarado com as mais variadas fórmulas, do estilo: a prova do inquérito é corroborada pela prova judicializada; cotejando a prova policial com a judicializada; e assim todo um exercício imunizatório (ou melhor, uma fraude de etiquetas) para justificar uma condenação, que na verdade está calcada nos elementos colhidos no segredo da inquisição.”[22]

Em suma, parte da doutrina entende que o processo penal brasileiro é misto, por conta da existência de uma fase inquisitorial (pré-processual) e acusatória (processual). Entretanto, não levam em conta que o magistrado tem ampla possibilidade de realizar prova nas duas fases. O poder instrutório do juiz, no país, é amplo e quase irrestrito, situação piorada pela reforma do art. 156 do Código de Processo Penal. Portanto, o mito do sistema misto brasileiro precisa ser superado.

O país não possui um sistema misto, moderno, e de poucos defeitos. Pelo contrário. Ao analisar o princípio norteador do sistema processual penal brasileiro, literários concluem que o chamado “sistema misto” no país tem natureza eminentemente inquisitorial, já que a fase pré-processual que colhe elementos de informação não possui contraditório, como regra, e a fases processual, além de ratificar os elementos investigativos colhidos em sede policial, possibilita com que o magistrado realize provas de ofício.[23]

No Brasil, durante a investigação, a possibilidade de requer eventual medida para coleta de elementos de informação, por parte da defesa, é quase inexistente. A própria divulgação do Inquérito Policial, apenas em 2006 veio a se tornar obrigatória, com a entrada em vigor da Súmula Vinculante 11 do Supremo Tribunal Federal. Veja, a Corte máxima do país precisou realizar uma súmula vinculante para possibilitar, ao menos, com que a defesa tivesse acesso ao auto do Inquérito Policial e com base nesse, o investigado poderia ter conhecimento da acusação. Isso é Sistema Misto?

  Em decorrência disso, que parte da doutrina entende que, em uma análise principiológica, o sistema penal brasileiro é o inquisitivo, ou melhor dizendo, neoinquisitório, já que possibilita a atuação do magistrado na gestão da prova tanto na fase de investigação, quanto na processual, algo inadmissível para um efetivo respeito ao devido processo legal.

Sobre a autora
Dani Alves Silveira

Advogado, possui graduação, pela Universidade Ritter dos Reis e e em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pós-graduado em Direto Criminal pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Mestrando em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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