As relações travadas no âmbito da coletividade, organizada sob o mato de um Estado Democrático de Direito, contam, de forma inconteste, com alguns mecanismos que visam garantir de forma cogente a pacificação social, sendo esta o próprio elemento estruturante que legitima a vida em sociedade. Caso estes institutos basilares sejam feridos em sua essência, correríamos o risco de voltar ao tempo em que prevalecia apenas a “lei” do mais forte, onde a força bruta ditava as regras coletivas.
Um destes instrumentos de segurança jurídica proporcionados pelo órgão constitucionalmente designado para aplicar a jurisdição de forma definitiva é a denominada “coisa julgada”, que nada mais é do que uma garantia explicita de que uma lide resolvida em definitivo pelo judiciário proporcione os efeitos que lhe são próprios, garantindo o mínimo de ordem e bom senso, impedindo rediscussões temerárias sobre temas já pacificados, vedando o próprio retrocesso de direitos assegurados também pela Carta Magna. Vejamos o que a nossa lei fundamental diz sobre o tema:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada;
(...)
Em que pese haver diferenciação entre coisa julgada formal e material, para fins de influência no que tange a direitos alheios, a classificação que importa relaciona-se ao conceito de coisa julgada material, que segundo entendimento predominante, após a vigência do atual Código de Processo Civil é a impossibilidade de se rever entendimento consolidado no caso concreto, com decisão de mérito transitada em julgado. A norma jurídica aplicada e incidente sob aquela situação atrai a incidência da matriz constitucional de sua imutabilidade, visando a estabilidade e segurança jurídica para o caso enfrentado, ou seja, em termos mais simples: a decisão judicial torna-se lei efetiva e intransponível, regulamentando de forma definitiva a situação jurídica que foi debatida em juízo.
Os dispositivos trazidos pelo Código de Processo Civil são de clareza razoável:
Art. 502. Denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso.
(...)
Art. 506. A sentença faz coisa julgada às partes entre as quais é dada, não prejudicando terceiros.
(...)
Desde a vigência do novo diploma é pacífico o entendimento de que, proferida decisão de mérito benéfica a determinados legitimados, os efeitos da decisão proferida em processo sedimentado pela coisa julgada material podem ser expandidos, beneficiando terceiros.
Contudo, por uma questão de lógica e coerência, a extensão “ultra partes” não pode ter aplicação genérica para todas as situações. Por exemplo, se determinada pessoa entende que uma cláusula contratual firmada com uma empresa é nula e tal entendimento vem a ser ratificado em decisão de mérito com trânsito em julgado, o efeito desta decisão não poderá atingir pessoas estranhas que tenham contratos similares, cada contratante tem uma relação ímpar e deverá buscar o que é de direito em ação própria.
Agora imaginemos que a Ação foi movida por uma pessoa que viva em união estável, visando discutir juros moratórios em relação a empréstimo firmado com instituição financeira para o financiamento de imóvel onde reside os conviventes. Mesmo que movida por apenas um dos legitimados, a decisão, acaso favorável, irá abranger o outro, que não participou ativamente da lide, mas que será albergado pelos efeitos benéficos.
Destarte, a extensão automática dos efeitos benéficos de uma decisão esteada pelo manto da coisa julgada material irá atingir aqueles terceiros que poderiam ter participado do processo originário de alguma forma, seja por se tratar de mesma questão de direito ou até mesmo fática, envolvendo os detentores do direito material, autores eventuais, mas que optaram por não ser. Exemplo clássico dessa situação seria o caso envolvendo litisconsórcio facultativo mas unitário, onde a decisão por força de lei deveria ser a mesma para todos. Mesmo no caso em que fosse cabível mera intervenção a título de Assistência Litisconsorcial superveniente ao manejo da ação, o direito uno e indivisível seria aplicado de forma igual a estes terceiros.
Nessa linha de argumentação discorre a nossa corte maior de justiça:
“O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES JUDICIAIS IRRECORRÍVEIS IMPÕE-SE AO PODER PÚBLICO COMO OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL INDERROGÁVEL. A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito. O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República. A desobediência à ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas consequências, quer no plano penal, quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de impeachment), quer, ainda, na esfera institucional (decretação de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios). (RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno) ”.
Nessas situações, pelo próprio princípio da economia processual e da impossibilidade de se decidir de forma diferente para estes “terceiros”, é de ser ampliado os efeitos benéficos da decisão, tendo em vista que apenas por circunstâncias triviais não fizeram parte da lide transitada em julgado, contudo, são detentores dos mesmos direitos sedimentados.
Não há como se reconhecer a pessoas que se encontram numa mesma relação jurídica e fática decisões que sejam contraditórias, pois seria tratar de forma desigual os iguais perante o nosso ordenamento jurídico, situação inaceitável pela Carta Constituinte, tendo em vista princípios primordiais como a dignidade da pessoa humana e a vedação do retrocesso.
A força normativa da Carta Magna garante uma aplicação coerente da legislação infraconstitucional, assim como das próprias decisões judiciais. Portanto, em situações em que o próprio alicerce do direito abriga determinadas pessoas, há de prevalecer a decisão benéfica que já foi pacificada para parte dos detentores que manejaram a ação não mais sujeita a rediscussão, alcançando terceiros com a mesma relação jurídica base, conforme preceito estabelecido no art. 506 do CPC.