Da verdade sabida em Direito Administrativo

* Texto produzido em coautoria com o Professor José Maria Pinheiro Madeira (Procurador do Legislativo (apos.) - Mestre em Direito do Estado - Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais)

Resumo:


  • As condições iniciais da Administração Pública brasileira vêm passando por reformulações ao longo dos últimos vinte anos, buscando atualizar conceitos e corrigir imperfeições para aprimorar a gestão dos bens públicos.

  • O exercício do poder disciplinar pelos administradores públicos é essencial para punir condutas irregulares de servidores, garantindo a regularidade das atividades estatais e servindo de exemplo para os demais funcionários.

  • O direito de defesa é um princípio fundamental no processo administrativo disciplinar, sendo necessária a ampla defesa e o contraditório para garantir a legalidade das punições aplicadas, não sendo mais aceitável o critério da "verdade sabida" na imposição de penalidades.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Ao longo dos últimos vinte e poucos anos, com a mudança do cenário sociopolítico brasileiro, por conta da retomada da democracia no país em 1985, a Administração Pública vem se reformulando, buscando rever e atualizar conceitos.

  1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Ao longo dos últimos vinte e poucos anos, com a mudança do cenário sociopolítico brasileiro, por conta da retomada da democracia no país em 1985, a Administração Pública vem se reformulando, buscando rever e atualizar conceitos, corrigir imperfeições em seus regulamentos, no sentido de acompanhar, pari passu, as normas e princípios preconizados pela Carta Magna vigente, tendo sempre como objetivo precípuo aperfeiçoar a gestão dos bens e interesses públicos, seja através da prestação de serviços, seja por sua organização interna, ou até pela intervenção no campo privado, se necessário for, visando proteger e assegurar o bem-estar comum.

Para que os fins colimados pelo Estado sejam alcançados, porém, inúmeras e complexas são as tarefas administrativas, as quais são executadas por uma gama de agentes, de categorias e espécies diversas, espalhados por diferentes órgãos, de todas as esferas de Poder. Em assim considerando, o ordenamento jurídico brasileiro confere àquele cuja função é gerir os bens e interesses da coletividade certos atributos especiais, porquanto preposto do Estado, constituindo-se essa supremacia nos denominados poderes administrativos (vinculado, discricionário, hierárquico, disciplinar, regulamentar e de polícia), que são prerrogativas indispensáveis à consecução dos fins públicos, pacificamente reconhecidos pela doutrina e jurisprudência como verdadeiros instrumentos de trabalho da autoridade pública, que deve utilizá-los subordinando-se aos mandamentos nucleares que norteiam o Estado Democrático de Direito, sobretudo aos princípios basilares da Administração Pública, insculpidos no art. 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

A partir daí, quando as condições exigidas por lei legitimar uma ação, a autoridade administrativa fica obrigada a agir, com todos os meios a seu alcance, em favor da coletividade, ainda que beneficie, de forma imediata, o Estado, exercendo os poderes proporcionais e adequados ao encargo que lhe foi confiado, que são poderes-deveres irrenunciáveis de seu titular. Portanto, o administrador público não tem o direito de silenciar ou de se omitir, sob o pretexto de que a lei eventualmente lhe atribua uma margem de discricionariedade, que lhe permite decidir com prudência o momento de agir, pois a omissão ou o silêncio geram responsabilidades, tanto para a autoridade quanto para o Poder Público.

Assim, dentre as prerrogativas especiais outorgadas aos administradores públicos, esse trabalho objetiva apreciar, brevemente, o exercício do poder disciplinar, em especial, por se tratar de um instrumento fundamental à própria organização administrativa, resultante do sistema hierárquico, comumente utilizado para, em última instância, através de procedimento apuratório justo, a Administração punir a conduta funcional irregular de servidores que a ela se vinculam, ao fugirem de seus mandamentos legais, até porque a regularidade da execução das atividades do Estado restaria comprometida se aqueles que agem em nome dele e a ele se ligam por um vínculo especial de sujeição de natureza institucional incorressem, de forma impune e sem controle, em condutas ilícitas, afrontando os princípios da legalidade, da moralidade, da probidade e de outros preceitos informadores da condigna gestão da res publicae, que são determinantes de parâmetros da conduta funcional aos servidores públicos, de sorte que a punição dos infratores acaba se tornando exemplo para os demais servidores, além de preservar os interesses da Administração Pública e da sociedade.

  1. O LEGÍTIMO DIREITO DE DEFESA E A FIGURA DA VERDADE SABIDA

Regidos pela Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, os servidores públicos civis federais são submetidos a um regime disciplinar próprio, cujos deveres e obrigações nela constantes devem ser respeitados e cumpridos, sob pena de estarem os infratores sujeitos às sanções cabíveis.

Sendo assim, ao tomar ciência de irregularidades funcionais no serviço público, a autoridade administrativa tem o dever de promover sua apuração imediata, instaurando sindicância ou processo administrativo disciplinar, para que seja investigada a existência ou não da infração e sua autoria, no mínimo, assegurando ao acusado a oportunidade de ampla defesa (art. 143, caput, da Lei nº 8.112/90), procedimentos cautelares tais que projetam, com legitimidade, o legal exercício do poder disciplinar pela autoridade.

Nesse sentido, apreciando-se o julgamento do Recurso em Mandado de Segurança nº 825-0/SP pelo Superior Tribunal de Justiça, o Ministro-Relator Hélio Mosimann bem acentua que, na perquirição da transgressão funcional, o princípio da legalidade deve ser observado e a regra da plenitude da defesa preservada, pois que, sem possibilidade de defesa, a punição administrativa é nula, porquanto afronta a garantia constitucional do devido processo legal, que assegura o contraditório e a ampla defesa, princípios agasalhados nos incisos LIV e LV, do art. 5o da CF/88, que limitam o exercício do poder disciplinar, vale dizer, como assim preleciona o sempre acatado Hely Lopes Meirelles[1]:

“A apuração regular da falta disciplinar é indispensável para a legalidade da punição interna da Administração. O discricionarismo do poder disciplinar não vai ao ponto de permitir que o superior hierárquico puna arbitrariamente o subordinado. Deverá, em primeiro lugar, apurar a falta, pelos meios legais compatíveis com a gravidade da pena a ser imposta, dando-se oportunidade de defesa ao acusado. Sem o atendimento desses dois requisitos a punição será arbitrária (e não discricionária), e, como tal, ilegítima e invalidável pelo Judiciário”.

Outra não é a visão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, que dessa forma se pronunciou na seguinte ementa:

“Servidor público municipal. Infração disciplinar. Pena de suspensão. Nulidade do procedimento administrativo. Desrespeito ao contraditório e a ampla defesa. Servidor municipal de Porto Alegre punido com pena de suspensão por dois dias em procedimento administrativo em que não lhe foi assegurado o contraditório e a ampla defesa. As garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa devem ser efetivas, ouvindo-se as testemunhas arroladas na defesa e permitindo-se a contradita daquelas anteriormente ouvidas. Nulidade do procedimento administrativo decretada. Apelação desprovida. Sentença mantida em reexame necessário. (TJ/RS, 3a Câmara Cível, Apelação e Reexame Necessário nº 70005479985, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino)”.

Por via lógica, depreende-se, então, que a quem não se der conhecimento do que está sendo acusado e, por conseguinte, a oportunidade para aduzir as justificativas circunstanciais da falta cometida ou defender-se da imputação irrogada, esse alguém legalmente não pode ser punido, por mais suave que seja a reprimenda. Portanto, nenhuma penalidade pode ser imposta a alguém, quer seja no campo judicial, administrativo ou disciplinar, sem a necessária amplitude de defesa, e se o for, a pena será nula ou anulável.

Pois levando em conta o mandamento capital do direito de defesa consignado na Constituição Cidadã de 1988, é que não mais se adota o critério da verdade sabida como meio sumário à aplicação de penalidades administrativas, sendo esta prática inadmissível no Direito Processual Disciplinar, ainda que, com base naquele instituto, bastava a autoridade competente ter conhecimento ou presenciar uma conduta funcional irregular de servidor para, na qualidade de administrador dos interesses da Administração e da coletividade, aplicar a pena ao infrator, de imediato ou logo após a ocorrência da falta, consignando no ato punitivo as circunstâncias em que a mesma foi cometida ou presenciada, assim exercendo a prerrogativa a ele conferida de disciplinar seus subordinados, agindo com discricionariedade ao livremente julgar e aplicar a penalidade por conveniência e oportunidade.

Entende o conceituado administrativista Hely Lopes Meirelles[2], entretanto, que “esse meio sumário só é admissível para as penalidades cuja imposição não exija processo administrativo disciplinar”, sobretudo quando a pena é menos gravosa, como a suspensão inferior a trinta dias, considerando como verdade sabida, inclusive, a infração de notoriedade irretorquível, ou seja, quando é pública e notória, divulgada pela imprensa ou por outros meios de comunicação de massa, não obstante dever-se assegurar ao acusado a possibilidade de defesa, mas sem necessidade de formalismos.

Essa doutrina foi utilizada, aliás, nos termos do voto do Ministro Assis Toledo, relator no Recurso Especial nº 62.298-0, de Minas Gerais, julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, 5a Turma, em 22/03/1995, cuja ementa enuncia:

“Administrativo. Servidor. Pena Disciplinar de Suspensão inferior a trinta dias. Desnecessidade de processo preliminar para aplicação de pena de suspensão inferior a trinta dias, nos termos da lei, na hipótese de verdade sabida. Recurso conhecido e provido”. (grifo do original). (RT 716: 317).

Nessa mesma esteira, Diogenes Gasparini[3] observa, também, que o egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo vinha julgando como válida, em alguns casos, a punição administrativa com base na verdade sabida, entendendo que o instituto teria sido recepcionado pela Constituição de 1988, conforme consta no Boletim de Direito Administrativo nº 8, de agosto de 2003, p. 682, in verbis: “Punição administrativa. Princípio da verdade sabida. Recepção pela Constituição Federal.”

A esse respeito, vale destacar que a Lei nº 10.261, de 28 de outubro de 1968, que criou o Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo, previa e regulava, de fato, em seu art. 271, o instituto da verdade sabida, critério que poderia ser aplicado naquele Estado na repressão de delitos de menor gravidade, a exemplo da pena de suspensão que não excedesse a noventa dias, por mais incrível que pareça, salvo se, pelas circunstâncias da falta, fosse conveniente a instauração de sindicância ou processo administrativo. No sentido de atualizar preceitos, e acompanhar a moderna processualística disciplinar, porém, a Lei Complementar nº 942, de 6 de junho de 2003, alterou diversos dispositivos da Lei nº 10.261/68, a eles dando nova redação, como no caso do art. 271 do referido diploma, o qual foi regulamentado pelo Decreto nº 54.050, de 20 de fevereiro de 2009, com o seguinte teor: “Os procedimentos disciplinares punitivos, não regulados por lei especial, serão realizados pela Procuradoria Geral do Estado e presididos por Procuradores do Estado confirmados na carreira e designados pelo Procurador Geral do Estado.”

Assim, atualmente, em se tratando da figura da verdade sabida, anote-se como a jurisprudência vem se manifestando nos nossos Tribunais:

“ATO ADMINISTRATIVO – Suspensão de servidor público – Nulidade – Inexistência de regular procedimento administrativo ou sindicância – Violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa – Art. 5o, LV da Constituição Federal – Princípio da verdade sabida – Não receptividade – Recursos não providos (TJ/SP, Apelação Cível nº 146.793-5-1, 1a Câmara de Direito Público, Relator: Roberto Bedaque).

ANULAÇÃO DE ATO JURÍDICO. APLICAÇÃO DE PENA DISCIPLINAR. CRITÉRIO DA "VERDADE SABIDA". O critério da "verdade sabida" pereceu, definitivamente, com o advento da Constituição Federal de 1988, não mais se concebendo a imposição de pena disciplinar, por mais branda que seja, sem a garantia do contraditório e da ampla defesa. (TJ/SC, 1a Câmara de Direito Público. Apelação Cível nº 2009.011517-8/SC, Relator: Juiz Newton Janke).

APELAÇÃO CIVIL EM MANDADO DE SEGURANÇA – SERVIDOR MUNICIPAL – PENA DE ADVERTÊNCIA APLICADA INDEPENDENTEMENTE DE PROCESSO ADMINISTRATIVO – IMPOSSIBILIDADE – LESÃO AO ART. 5o, INCISO LV, DA CARTA MAGNA – APELO E REEXAME NECESSÁRIO DESPROVIDOS. Em face da garantia do contraditório e da ampla defesa, há necessidade de processo administrativo, para a incidência de penalidade, inclusive de advertência. Inobservada essa regra o ato impositivo é nulo (TJ/SC, ACMS nº 2001.025781-5, Rel. Des. Francisco Oliveira Filho).

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Servidor Público – Aplicação da pena de repreensão – Critério da verdade sabida – Inadmissibilidade – Violação do art. 5o, LV, da Constituição Federal – Garantia do contraditório e ampla defesa a todo e qualquer procedimento administrativo – Recursos improvidos. (TJ/SP, Apelação nº 145.965-5-0, 1a Câmara de Direito Público, Relator: Castilho Barbosa).

Mandado de Segurança - Oficial de justiça - Não cumprimento de mandado de intimação em processo-crime sob alegação de ausência de recursos financeiros para despender com transporte - Requerimento pleiteando o uso de veículo do Tribunal de Justiça - Não apreciação do pedido - Aplicação sumária de pena de advertência - Inexistência do contraditório e da ampla defesa - Impossibilidade de aplicação da chamada "Verdade Sabida" - Segurança concedida para anular a penalidade imposta (TJ/SC, MS nº 01.011382-1, Relator: Des. João Martins).

APELAÇÃO CÍVEL – ADMINISTRATIVO – PROCEDIMENTO – SERVIDOR PÚBLICO – SUSPENSÃO – PRINCÍPIO DA VERDADE SABIDA – INEXISTÊNCIA DIANTE DA NOVA CONSTITUIÇÃO – PRINCÍPIO DA AMPLA DEFESA E CONTRADITÓRIO NÃO OBSERVADOS – DECISÃO REFORMADA – RECURSO PROVIDO. É nula a suspensão de servidor público aplicada sem a prévia efetivação de sindicância ou processo administrativo disciplinar, conforme o caso, na esfera administrativa, acrescida sempre da garantia de ampla defesa. (TJPR, Apelação Cível nº 0157818-7, 7a Câmara Cível, Relator: Prestes Mattar).

Mandado de segurança. Pena disciplinar. Cerceamento de defesa. Crítica via imprensa. Verdade sabida. Conhecimento direto. Estatuto dos funcionários públicos municipais de São Paulo. A notícia veiculada em jornal não importa em conhecimento direto do fato, ante a notória possibilidade de distorções. Por isso, não se convoca o instituto da verdade sabida para fugir à imposição constitucional da ampla defesa. Recurso provido. (STJ, 2a T., Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº 825/SP, Relator: Min. Hélio Mosimann)”.

E é esse também o entendimento doutrinário, que é uníssono em afirmar ser inconcebível a aplicação de pena pelo critério da verdade sabida em um Estado Democrático de Direito, porquanto contraria a norma prescrita no art. 5o, LV, da Constituição Federal de 1988, que exige o contraditório e a ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, também nos processos administrativos, embora Maria Sylvia Zanella Di Pietro[4] aponte, por oportuno, que “mesmo antes da atual Constituição, já se entendia que o princípio da ampla defesa, previsto no artigo 153, § 16, para o processo penal, era aplicável às esferas civil e administrativa”.

Odete Medauar[5], por sua vez, ao se referir ao exercício do poder disciplinar pela autoridade, enfatiza que:

“[...] a garantia constitucional da ampla defesa veda a imposição de penas, sem a intermediação de processo (que pode ser simples). A ideia de que o contraditório e a ampla defesa só devem existir para apuração de condutas passíveis de penas graves, enquanto outras penas seriam aplicadas sem processo, deixa de prevalecer à vista do disposto no inc. LV do art. 5o da Constituição Federal. Portanto, não há de se admitir a punição pelo critério da "verdade sabida", em virtude do qual se conferia à autoridade o poder de aplicar, de imediato, penas leves (exemplo: repreensão e suspensão curta), quando tivesse conhecimento direto da falta cometida”. [...] (grifos da autora).

Ainda a respeito, vale transcrever a pontual observação de José Armando da Costa[6], que alerta:

“Embora a dinâmica da pública administração moderna e o princípio hierárquico requeiram que certos atos, por questão de oportunidade, sejam realizados de forma emergencial, vale contraditar, por outro lado, que é bastante temerário, sob o ponto de vista jurídico, deixar a sorte do funcionário, que também necessita de garantias legais para exercer suas funções (finalidade publicística de grande relevo), ao inteiro dispor do chefe de sua repartição. A simples probabilidade de que tais punições possam ser frutos de mera perseguição pessoal, já põe por terra toda a conveniência de se adotar esse sistema, além de predominar sérias e procedentes dúvidas sobre sua constitucionalidade”.

Nesse sentido, então, Romeu Bacellar Filho[7] foi preciso em suas palavras, ao dizer que se formou um consenso doutrinário sobre a inconstitucionalidade da verdade sabida, pois “a Constituição de 1988 exige, incondicionalmente, o processo (procedimento em contraditório) para a aplicação de sanção disciplinar de qualquer espécie e seja qual for o conjunto probatório, que a administração pública disponha para tanto.”

Diante do exposto, verifica-se que idênticas são as visões doutrinária e jurisprudencial acerca do mecanismo da verdade sabida à aplicação de penalidades, podendo-se assim afirmar que sua existência é incabível, nos dias atuais, em face da garantia constitucional do contraditório e da ampla defesa em qualquer processo, não podendo prevalecer, pois, na Administração Pública tal procedimento para infligir punição prevista em norma estatutária a servidor público, seja do âmbito federal, estadual ou municipal.

  1. Entendimento Atual do Pretório Excelso

Informativo n° 524 - Imposição Sumária de Penas e Direito à Defesa Prévia


              Por entender caracterizada a ofensa aos princípios da ampla defesa e do contraditório (CF, art. 5º, LV), o Tribunal julgou procedente pedido formulado em ação direta proposta pela Confederação Brasileira de Trabalhadores Policiais Civis - COBRAPOL para declarar a inconstitucionalidade dos §§ 2º, 3º, 4º, 5º e 6º do art. 43 da Lei 2.271/94 (Estatuto da Polícia Civil), que, ao disporem sobre as penas disciplinares, preveem que "as penas de repreensão e suspensão, até cinco dias, serão aplicadas de imediato pela autoridade que tiver conhecimento direto de falta cometida", e que "o ato punitivo será motivado e terá efeito imediato, mas provisório, assegurando-se ao funcionário policial civil o direito de oferecer defesa por escrito no prazo de três dias". Considerou-se que os dispositivos impugnados afrontam a prerrogativa constitucional que assegura a qualquer servidor público o direito de ser ouvido previamente ao ato veiculador de sua punição disciplinar, ainda que desta resulte, por aplicação do critério da verdade sabida, a imposição de sanção administrativa revestida de menor gravidade, como ocorre com a repreensão e a suspensão funcional por até cinco dias. Asseverou-se não ser admissível que o Estado, em tema de restrição à esfera jurídica de qualquer cidadão e de seus servidores, exerça a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, de modo a desprezar, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, visto que o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida imposta pelo Poder Público de que resultem, como no caso, consequências gravosas no plano dos direitos e garantias individuais exige a observância da garantia do devido processo. Alguns precedentes citados RMS 22789/RJ  e MS 21254/DF (DJU de 2.8.91). ADI 2120/AM, rel. Min. Celso de Mello, 16.10.2008. (ADI-2120).

Importa ainda fazer menção ao importante trecho da ADI n° 2120/AM, abaixo transcrito, tendo em vista que é um precedente de nossa Corte Maior que aniquila o critério da verdade sabida.

“ADI 2120 MC / AM - AMAZONAS
MEDIDA CAUTELAR NA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO

Decisão

DESPACHO: (...)

O tema ora em exame nesta sede processual revela-se impregnado de inquestionável relevo jurídico-constitucional, especialmente se se tiver presente que o Supremo Tribunal Federal já reconheceu, a propósito da matéria em análise, que a garantia do "due process of law", considerada a norma inscrita no art. 5º, LV, da Constituição da República, aplica-se aos procedimentos administrativos de caráter disciplinar:

"RESTRIÇÃO DE DIREITOS E GARANTIAS DO 'DUE PROCESS OF LAW'.

- O Estado, em tema de punições disciplinares ou de restrição a direitos, qualquer que seja o destinatário de tais medidas, não pode exercer a sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária, desconsiderando, no exercício de sua atividade, o postulado da plenitude de defesa, pois o reconhecimento da legitimidade ético-jurídica de qualquer medida estatal – que importe em punição disciplinar ou em limitação de direitos - exige, ainda que se cuide de procedimento meramente administrativo (CF, art. 5º, LV), a fiel observância do princípio do devido processo legal. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem reafirmado a essencialidade desse princípio, nele reconhecendo uma insuprimível garantia, que, instituída em favor de qualquer pessoa ou entidade, rege e condiciona o exercício, pelo Poder Público, de sua atividade, ainda que em sede materialmente administrativa, sob pena de nulidade do próprio ato punitivo ou da medida restritiva de direitos. Precedentes. Doutrina. (RTJ 183/371-372, Rel. Min. CELSO DE MELLO) Cabe registrar que essa orientação tem prevalecido nas decisões, monocráticas (RE 172.587/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO) e colegiadas (RTJ 170/163, Rel. Min. MOREIRA ALVES), proferidas no âmbito desta Suprema Corte.

Impende considerar, de outro lado, que parece revelar-se incompatível com o sistema de garantias processuais instituído pela Constituição da República, mesmo tratando-se de procedimento de índole administrativo-disciplinar (CF, art. 5º, LV), a norma que, em incompreensível inversão da fórmula ritual (Lei estadual nº 2.271/94, art. 43, § 3º), culmina por autorizar a antecipação punitiva do servidor público, ainda que a este venha a ser assegurado, em momento ulterior, o exercício do direito de defesa. É preciso observar, tal como corretamente adverte LUCIA VALLE FIGUEIREDO ("Curso de Direito Administrativo", p. 411, item n. 4.2, 4ª ed., 2000, Malheiros), que a defesa, mesmo em procedimento administrativo-disciplinar, "há de ser prévia, e não 'a posteriori'". Essa mesma percepção do tema é revelada, com muita ênfase, pelo magistério da doutrina, como resulta claro das lições de HELY LOPES MEIRELLES ("Direito Administrativo Brasileiro", p. 669, 28ª ed., atualizada por EURICO DE ANDRADE AZEVEDO, DÉLCIO BALESTERO ALEIXO e JOSÉ EMMANUEL BURLE FILHO, 2003, Malheiros); CELSO ANTONIO BANDEIRA DE MELLO ("Curso de Direito Administrativo", p. 296/298, itens ns. 134/137, 17ª ed., 2004, Malheiros); SÉRGIO FERRAZ e ADILSON ABREU DALLARI ("Processo Administrativo", p. 71, item n. 2.8, 1ª ed./3ª tir., 2013, Malheiros); NELSON FIGUEIREDO ("A Eficácia da Ampla Defesa no Processo Administrativo Disciplinar", in "Direito Público - Estudos em Homenagem ao Professor Adilson Abreu Dallari", p. 581/584, 2004, Del Rey); e JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO ("Manual de Direito Administrativo", p. 669/670, item n. 3, 16ª ed., Lumen Juris.

Não custa acentuar, finalmente, considerada a norma inscrita no art. 43, § 2º, da Lei nº 2.271/94 do Estado do Amazonas (fls. 03), que o critério da verdade sabida - adotado pelo preceito normativo em questão - não parece legitimar-se em face do que prescreve, em cláusula subordinante da atividade estatal, o art. 5º, LV, da Constituição da República. Revela-se extremamente expressivo, a esse respeito, o douto magistério de CÁRMEN LÚCIA ANTUNES ROCHA ("Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos", p. 484/485, 1999, Saraiva): "Quanto à apelidada 'verdade sabida' – considerada como a ciência tida diretamente pela autoridade de fato que leve a punir servidor público sem para tanto ouvi-lo, nem permitir a sua defesa, já que a circunstância que conduz à apenação passou-se em sua presença ou com o seu conhecimento imediato -, foi ela aceita por longo período pelos Tribunais. Entretanto, o advento do princípio constitucional do devido processo legal impede que se possa aceitar a 'verdade sabida', porque a punição sem qualquer exigência de apuração da falta, do contraditório ou de formalização do processo agrava, à evidência, o princípio da ampla defesa. Como poderia o interessado alegar qualquer circunstância que atenua ou altera a interpretação de um fato cometido, se a ele não se oferecer a dilação probatória das circunstâncias que constituam, eventualmente, a sua defesa? Como especificar as condições nas quais ocorreu um fato se apenas a afirmação do comportamento é feita unilateralmente pela autoridade? Como demonstrar a distorção, produzida, por exemplo, em notícias veiculadas pela mídia, se não se assegurar a dilação probatória ao interessado? Tem-se, pois, que a denominada 'verdade sabida' não pode ter qualquer aceitação no sistema jurídico vigente, por contrariar, cabalmente, o princípio do devido processo legal e cercear, em sua raiz, a ampla defesa constitucionalmente assegurada." (grifo nosso)

               Essa correta abordagem constitucional do tema encontra suporte na jurisprudência dos Tribunais (AC 126353/1990-TJSP, Rel.  Des. REBOUÇAS DE CARVALHO - AC nº 594184459/1995-TJRGS, Rel. Des. FLÁVIO PÂNCARO DA SILVA - AC nº 44929/1998-TJSP, Rel. Des. CLÍMACO DE GODOY - AC 145965/2002-TJSP, Rel. Des. CASTILHO BARBOSA - MS nº 596118356/1996-TJRGS, Rel. Des. RAMON GEORG VON BERG - MS nº 597040724/1997-TJRGS, Rel. Des. TAEL JOÃO SELISTRE): "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO ORDINÁRIA. SERVIDOR PÚBLICO. PUNIÇÃO. SINDICÂNCIA. AUSÊNCIA DE CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA. NULIDADE CONFIGURADA. DEVOLUÇÃO DOS VENCIMENTOS DESCONTADOS.

               O princípio constitucional da ampla defesa, do contraditório e do devido processo legal (CF, art. 5º, LV), norma autoaplicável e de eficácia plena e imediata (CF, § 1º do art. 5º), não se compadece com a temática da verdade sabida, da falta provada ou confessada. Impossibilidade de edição de norma inferior, ou de convivência de norma subalterna anterior, contrariando o dispositivo constitucional. Desimporta se se trata de simples sindicância ou de processo administrativo, o fato é que não pode haver punição do servidor sem prévia oportunização de ampla defesa e de contraditório. Mesmo a simples sindicância, se objetivar punir o servidor, o direito à ampla defesa e ao contraditório é inafastável. A simples ouvida do servidor, de forma inquisitorial, na sindicância, não caracteriza defesa, muito menos ampla (...).

______________________

NOTAS


[1] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 38. ed., atual. por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. São Paulo: Malheiros Editores, 2016, p. 122.

[2] MEIRELLES, op. cit., p. 669.

[3] GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 13a. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2013.

[4] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 25. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 522.

[5] MEDAUAR, Odete. Direito administrativo moderno. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 193.

[6] COSTA, José Armando da. Teoria e prática do processo administrativo disciplinar. 5. ed. Brasília: Brasília Jurídica, 2014, p. 82.

[7] BACELLAR FILHO, Romeu Felipe. Processo administrativo disciplinar. 6. ed. São Paulo: Max Limonad, 2012, p. 92.

Sobre os autores
Amanda de Abreu Cerqueira Carneiro

Advogada/RJ – Jornalista – Pós-Graduada em Direito Público e em Direito do Trabalho/Processo do Trabalho/Previdenciário

José Maria Pinheiro Madeira

Mestre em Direito do Estado, Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais, Doutor em Ciência Política e Administração Pública. Curso de pós-graduação no exterior. Procurador do Legislativo (aposentado). Parecerista na área do Direito Administrativo. Examinador de Concurso Público. Membro Integrante da Banca Examinadora de Exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Membro de diversas associações de cultura jurídica, no Brasil e no exterior. Professor Emérito da Universidade da Filadélfia. Professor-palestrante da Escola da Magistratura do Rio de Janeiro - EMERJ - Professor Coordenador de Direito Administrativo da Universidade Estácio de Sá. Professor da Fundação Getúlio Vargas. Professor integrante do Corpo Docente do Curso de Pós-Graduação em Direito Administrativo da Universidade Cândido Mendes, da Universidade Gama Filho e da Universidade Federal Fluminense. Membro Titular do Instituto Ibero-Americano de Direito Público. Membro Efetivo do Instituto Internacional de Direito Administrativo.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

* Texto produzido em COAUTORIA com o Professor José Maria Pinheiro Madeira Procurador do Legislativo (apos.) - Mestre em Direito do Estado e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais.

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