O trabalho artístico infantil e as consequências escondidas na glamourização

20/09/2018 às 01:42
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O presente artigo aborda o trabalho artístico infantil, destacando as possíveis consequências na vida de crianças e adolescentes que precocemente são induzidas no meio artístico.

Algumas vezes nos deparamos com crianças excepcionais, com níveis de Quociente de Inteligência (QI) acima da média, elas demonstram naturalmente maior preferência por atividades intelectuais, sendo certo que tal excepcionalidade não é o principal problema na vida das crianças. Segundo a psicóloga Carmen Mendoza, o contexto social e educacional despreparado para receber e estimular crianças talentosas, é o fator primordial para o problema. (CAVALCANTE, 2011)

Para a psicanalista Ana Maria Lencarelli, “o talento incomum na pouca idade constitui um perigoso desvio do desenvolvimento normal por levar a criança a fazer algo inadequado para a infância, sendo esta uma das formas de inclusão na vida adulta que vão custar caro”.

Alguns exemplos emblemáticos que causaram abalos psíquicos em crianças, durante uma das cenas que participaram, vieram a público anos depois e o depoimento de alguns, demonstraram o quão difícil é a vida dos artistas mirins. Um desses relatos é do ator Felipe Paulino, na época com 8 anos. Ele contou que o trauma após interpretar o menino atingido por um projétil de arma de fogo o perseguiu até a adolescência e acrescentou:

Filmar aquela cena foi um dos grandes traumas da minha vida. A preparadora de elenco fazia uns exercícios muito loucos para que eu tivesse medo do Leandro Firmino (ator que interpretou o personagem Zé Pequeno). A gente não podia almoçar junto, me deixavam em um quarto escuro, acendiam a luz de repente e o Leandro estava lá. Aquilo ficou na minha mente por muito tempo. (MARQUES, 2017)

A carreira artística não traz somente glamour. Segundo GRUNSPUN, o cantor americano Robert Blake, que começou sua carreira com dois anos de idade, teria relatado:

Eu não era um astro infantil. Eu era um trabalhador infantil. De manhã, minha mãe me entregava para o estúdio da MGM como um cachorrinho em confiança… eu era como a maioria dos artistas mirins. Eu interpretava porque me mandavam. Eu não gostava. Não era um modo de se viver. (GRUNSPUN, apud OLIVA, 2010, p. 140/141)

Para o referido autor, “forçar um garoto para ser artista é uma das piores coisas que podem acontecer a uma criança. Obriga-as a serem adultos quando ainda são crianças”.

Como também não podia deixar de mencionar, a história da precoce Maísa Silva, que estreou aos três anos de idade e aos sete já tinha uma rotina de adulto, pela manhã apresentava o Bom Dia e CIA, saindo da emissora diretamente para a escola, muito paparicada, rapidamente passou a fazer participações em outros programas de televisão, local esse onde protagonizou uma cena lamentável de choro e gritos, demonstrando está desorientada, e mais ao pleitear o colo da mãe, a mesma foi rejeitada e obrigada a retornar ao palco do Programa Silvio Santos, visto existir um contrato a ser respeitado.

Para o procurador do trabalho Rafael Dias Marques,

o trabalho artístico precisa ser bem incorporado pela psique infantil, principalmente quando sabemos que muitas carreiras são fugazes e elas podem se frustrar. Há crianças que choram, outras que somatizam, confundem os papéis. Muitas vezes as pessoas só conseguem ver o lado da fama e esquecem o custo que isso pode ter, porque prejuízos não acontecem de imediato. Eles vão sendo acumulados e começam a aparecer na vida adulta. (MARQUES, 2017, online)

De acordo com o psiquiatra Mario Louzã (2016), um dos problemas de atores mirins é se deslumbrar com a fama. Assim, uma criança famosa terá que lidar com o fato de ser reconhecida e admirada por todos, ao mesmo tempo em que deve cumprir todas as etapas da vida de qualquer outra criança. Caso a criança fique muito vidrada com o narcisismo, que é natural tanto da idade quanto da fama, ela corre o risco de tornar o convívio insuportável com ela mesma, passando a ser sistematicamente ignorada pelas demais crianças. Segundo ele, o sucesso relâmpago também é prejudicial, momento em que a criança pode desenvolver problemas mentais ou emocionais.

A psicanalista Tania Coelho dos Santos (2011), salienta que o tema deve ser amplamente discutido, pois não podemos deixar que os pais usem o talento dos filhos como um produto, levando-os bruscamente para o mercado artístico. Ressalta que em sua experiência clínica, muitas vezes, recebeu mulheres jovens que se tornaram, prematuramente, modelos no mercado da moda, por instigação de seus pais. Ademais,

nunca recebi um único caso proveniente de uma família abastada. Elas provinham de famílias pobres que esperavam que o sucesso da filha bonita trouxesse benefícios para seus pais e irmão. Por essa razão, foram entregues às agências de modelo que as enviaram para o exterior com 14 anos de idade. Essas meninas sofreram muito com a separação precoce e muitas desenvolvem sintomas psicológicos graves. Nesses casos, o laço entre o trabalho artístico da jovem e a ambição familiar é especialmente claro. (SANTOS, apud CAVALCANTE, 2011)

De tal feita, é evidente que a precocidade no meio artístico pode causar danos irreparáveis na vida de crianças e adolescentes, visto que muitas além de sofrer com as pressões do set de gravação, ainda tem de conviver com a pressão familiar, de que seu trabalho é que sustenta a casa. Ademais são expostas a ambientes que vão de encontro com a moral e os bons costumes, participando de cenas inapropriadas, em período noturno e até mesmo insalubre.

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Assim é importante destacar que, não podemos permitir que crianças e adolescentes se transformem em previdência privada dos pais, nem que sua espontaneidade seja um meio de negócio para as grandes produtoras, visto que assim sua dignidade, seus direitos adquiridos na Constituição da Republica Federativa do Brasil, estarão sendo gravemente violados. A arte deve ser desenvolvida a fim de expor o talento de forma sadia, educacional, como uma demonstração das habilidades naturais.

Investir nas habilidades artísticas das crianças deve ser sinônimo de estudo, explorar sua desenvoltura para o lazer social, como uma brincadeira, o trabalho precoce só atrapalha, e faz com que os traumas perpetuem ao longo de sua vida.

A criança terá direito a receber educação capaz de promover a sua cultura geral e capacitá-la a um senso de responsabilidade moral e social, e a tornar-se um membro útil da sociedade, com oportunidade para brincar e divertir-se. 


Referências

BRASIL. Ministério Público do Trabalho. Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente. Disponível em: <http://www.mpt.gov.br/câmaraArquivos/CCR109472012201.pdf> Acesso em: 20 mar. 2018.

CAVALCANTE, Sandra Regina. Trabalho infantil artístico: do deslumbramento à ilegalidade. São Paulo: LTR, 2011.

JUNQUEIRA, Camila. Atores mirins revelam depressão e traumas. Psiquiatra explica por que isso acontece. Disponível em: <https://www.vix.com/pt/entretenimento/538240/atoresmirinsrevelamdepressaetraumas-psiquiatra-explica-por-que-isso-acontece>. Acesso em: 04 jun. 2018.

MARQUES, Raquel. Os limites do trabalho infantil artístico. Disponível em: <http://www.chegadetrabalhoinfantil.org.br/noticias/materias/os-limites-trabalho-infantil-artistico/. Acesso em: 16 mai. 2018.

______. O que é trabalho infantil. Disponível em:<http://portal.mpt.mp.br/wps/portal/portalmpt/mpt/sala-imprensa/mpt> Acesso em: 06 mai. 2018.

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