O livre-arbítrio é conceituado como a capacidade que temos de tomar decisões e de decidirmos as nossas ações segundo nossa própria vontade, elevando-se a liberdade de escolha.
A inviolabilidade do direito à vida e à liberdade é garantida pela Constituição Federal logo no caput do seu artigo 5.º, mas a polêmica se encontra na seguinte pergunta: quando se trata de uma pessoa doente, até que ponto pode ser considerado seu livre arbítrio para decidir sobre sua saúde, sua vida e sua morte?
Evidencia-se que, normalmente, no final da vida do paciente, quando são adotadas decisões médicas urgentes, as mesmas acabam sendo decididas com a participação de terceiros que, por vezes, desconhecem a vontade do sujeito.
Desse modo, considerando a necessidade de disciplinar a conduta do profissional médico sobre a relação médico-paciente e a autonomia do paciente que, mesmo ciente de todos os riscos, pode escolher por quais procedimentos passar, o Conselho Federal de Medicina disciplinou a Resolução nº 1.995/2012 sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes.
As diretivas antecipadas de vontade preveem um “conjunto de desejos, prévia e expressamente manifestados pelo paciente, sobre cuidados e tratamentos que quer, ou não, receber no momento em que estiver incapacitado de expressar, livre e autonomamente, sua vontade.”
Podem prever desde os procedimentos e tratamentos que o paciente deseja ou não ser submetido, dispor sobre casos de doação ou não de órgãos e tecidos, destinação do próprio corpo e até constituir mandato duradouro para terceiro para que lhe represente e tome as medidas necessárias para que sua vontade seja considerada, no caso de se encontrar em situação terminal.
Desta maneira, estando o paciente consciente e lúcido no momento da realização do documento, a sua vontade deve ser respeitada, não podendo responsabilizar o médico por qualquer falta ética a respeito, visto que o próprio paciente se torna responsável pelas consequências que suas decisões podem lhe causar.
O conteúdo desse documento ora questionado busca proteger a dignidade do paciente terminal, tendo como suporte legal o artigo 15 do Código Civil: “Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica”.
À vista disso, a Lei 8.080/90, que dispõe sobre as ações e serviços de saúde prevê em seu artigo 7.º que as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) devem obedecer aos princípios da preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral (inciso III) e do direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde (inciso V), tudo de forma a assegurar o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dentre os países que aceitam as diretivas encontramos a Itália e Portugal. O Código de Ética Médica da Itália prevê que “o médico, se o paciente não está em condições de manifestar sua própria vontade em caso de grave risco de vida, não pode deixar de levar em conta aquilo que foi previamente manifestado pelo mesmo”. Sendo, assim, dever ÉTICO do profissional atender as diretivas. No mesmo sentido o Código de Ética Médica de Portugal diz que “a atuação dos médicos deve ter sempre como finalidade a defesa dos melhores interesses dos doentes, com especial cuidado relativamente aos doentes incapazes de comunicarem a sua opinião, entendendo-se como melhor interesse do doente a decisão que este tomaria de forma livre e esclarecida caso o pudesse fazer”.
Essa proteção a dignidade da pessoa humana de modo a respeitar o livre arbítrio do próprio individuo sobre sua vida e sua saúde tem sido acolhida pelos tribunais de nosso país, sob a fundamentação de que o limite de atuação do profissional termina quando começa a disposição sobre o próprio corpo e vida do paciente, vejamos alguns casos:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO PRIVADO NÃO ESPECIFICADO. TESTEMUNHA DE JEOVÁ. TRANSFUSÃO DE SANGUE. DIREITOS FUNDAMENTAIS. LIBERDADE DE CRENÇA E DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PREVALÊNCIA. OPÇÃO POR TRATAMENTO MÉDICO QUE PRESERVA A DIGNIDADE DA RECORRENTE. A decisão recorrida deferiu a realização de transfusão sanguínea contra a vontade expressa da agravante, a fim de preservar-lhe a vida. A postulante é pessoa capaz, está lúcida e desde o primeiro momento em que buscou atendimento médico dispôs, expressamente, a respeito de sua discordância com tratamentos que violem suas convicções religiosas, especialmente a transfusão de sangue. Impossibilidade de ser a recorrente submetida a tratamento médico com o qual não concorda e que para ser procedido necessita do uso de força policial. Tratamento médico que, embora pretenda a preservação da vida, dela retira a dignidade proveniente da crença religiosa, podendo tornar a existência restante sem sentido. Livre arbítrio. Inexistência do direito estatal de "salvar a pessoa dela própria", quando sua escolha não implica violação de direitos sociais ou de terceiros. Proteção do direito de escolha, direito calcado na preservação da dignidade, para que a agravante somente seja submetida a tratamento médico compatível com suas crenças religiosas. AGRAVO PROVIDO. (Agravo de Instrumento Nº 70032799041, Décima Segunda Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Cláudio Baldino Maciel, Julgado em 06/05/2010)
APELAÇÃO CÍVEL. ASSISTÊNCIA À SAÚDE. BIODIREITO. ORTOTANÁSIA. TESTAMENTO VITAL. 1. Se o paciente, com o pé esquerdo necrosado, se nega à amputação, preferindo, conforme laudo psicológico, morrer para "aliviar o sofrimento"; e, conforme laudo psiquiátrico, se encontra em pleno gozo das faculdades mentais, o Estado não pode invadir seu corpo e realizar a cirurgia mutilatória contra a sua vontade, mesmo que seja pelo motivo nobre de salvar sua vida. 2. O caso se insere no denominado biodireito, na dimensão da ortotanásia, que vem a ser a morte no seu devido tempo, sem prolongar a vida por meios artificiais, ou além do que seria o processo natural. 3. O direito à vida garantido no art. 5º, caput, deve ser combinado com o princípio da dignidade da pessoa, previsto no art. 2º, III, ambos da CF, isto é, vida com dignidade ou razoável qualidade. A Constituição institui o direito à vida, não o dever à vida, razão pela qual não se admite que o paciente seja obrigado a se submeter a tratamento ou cirurgia, máxime quando mutilatória. Ademais, na esfera infraconstitucional, o fato de o art. 15 do CC proibir tratamento médico ou intervenção cirúrgica quando há risco de vida, não quer dizer que, não havendo risco, ou mesmo quando para salvar a vida, a pessoa pode ser constrangida a tal. 4. Nas circunstâncias, a fim de preservar o médico de eventual acusação de terceiros, tem-se que o paciente, pelo quanto consta nos autos, fez o denominado testamento vital, que figura na Resolução nº 1995/2012, do Conselho Federal de Medicina. 5. Apelação desprovida. (Apelação Cível Nº 70054988266, Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Irineu Mariani, Julgado em 20/11/2013) (TJ-RS - AC: 70054988266 RS, Relator: Irineu Mariani, Data de Julgamento: 20/11/2013, Primeira Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 27/11/2013)
Existe um caso relacionado a um casal de Testemunhas de Jeová que, ao levarem a filha doente ao hospital, optaram por não realizar a transfusão de sangue, o que acabou no falecimento desta. Acontece que após seu falecimento, os pais foram indiciados por homicídio e o Habeas Corpus acabou sendo analisado pelo Superior Tribunal de Justiça (HC 268459 SP 2013/0106116-5).
O STJ acabou reconhecendo a ATIPICIDADE DA CONDUTA dos pais em decorrência da liberdade religiosa que é garantida ao casal e frente a irrelevância do consentimento à situação de risco de vida da filha, vejamos:
(...) No juízo de ponderação, o peso dos bens jurídicos, de um lado, a vida e o superior interesse do adolescente, que ainda não teria discernimento suficiente (ao menos em termos legais) para deliberar sobre os rumos de seu tratamento médico, sobrepairam sobre, de outro lado, a convicção religiosa dos pais, que teriam se manifestado contrariamente à transfusão de sangue. Nesse panorama, tem-se como inócua a negativa de concordância para a providência terapêutica, agigantando-se, ademais, a omissão do hospital, que, entendendo que seria imperiosa a intervenção, deveria, independentemente de qualquer posição dos pais, ter avançado pelo tratamento que entendiam ser o imprescindível para evitar a morte. Portanto, não há falar em tipicidade da conduta dos pais que, tendo levado sua filha para o hospital, mostrando que com ela se preocupavam, por convicção religiosa, não ofereceram consentimento para transfusão de sangue - pois, tal manifestação era indiferente para os médicos, que, nesse cenário, tinham o dever de salvar a vida. Contudo, os médicos do hospital, crendo que se tratava de medida indispensável para se evitar a morte, não poderiam privar a adolescente de qualquer procedimento, mas, antes, a eles cumpria avançar no cumprimento de seu dever profissional. (STJ - HC: 268459 SP 2013/0106116-5, Relator: Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, Data de Julgamento: 02/09/2014, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/10/2014) (ementa editada)
Neste caso em específico, o STJ entendeu que ocorreu a omissão dos médicos responsáveis que deveriam ter avançado com os procedimentos, mesmo diante do não consentimento dos pais, fundamentando que o § 2º do artigo 2º da Resolução CFM nº 1.995/2012 prevê expressamente que:
“O médico deixará de levar em consideração as diretivas antecipadas de vontade do paciente ou representante que, em sua análise, estiverem em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica.
Em consonância, a Resolução CFM n.º 1931/2009 que aprova o Código de Ética Médica discorre em seu artigo 41 prevê que é vedado ao médico:
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, ade seu representante legal.
Assim, levando em consideração o Código de Ética Médica brasileiro “em situação de risco iminente de morte, o consentimento do paciente e⁄ou familiares é prescindível, sobrelevando-se o valor-matriz vida”, até porque se trata do direito à saúde, preceito de ordem pública e indisponível. (STJ - AgRg no REsp 752.190⁄RS)
Surge aqui uma problemática, cabe ao profissional médico zelar pelo bem-estar dos pacientes, entretanto como se tornar inerte frente a uma situação terminal destes?
Rapidamente passando pelo Biodireito, frisa-se que a eutanásia, também chamada de “suicídio assistido”, é uma prática não aceita no direito brasileiro, visto que o médico provoca a morte do paciente, a seu próprio pedido, por se encontrar em situação terminal ou doença incurável.
Outra possibilidade é a distanásia, onde o médico prolonga os dias de vida do paciente, prolongando o dia da morte e lhe causando também maiores dores. Apesar de ser mal vista, é ainda muito praticada, devido a se aderir a perspectiva de que tudo deve ser feito, mesmo que o tratamento se torne inútil e cause sofrimento ao paciente que encontra em estado terminal.
Sob outro aspecto, a ortotanásia, por não ser conduta tipificada no Código Penal, vem sendo discutida como possível no direito brasileiro, uma vez que a Constituição prevê o direito à vida e não o dever à vida, portanto “diante de dores intensas sofridas pelo paciente terminal, consideradas por este como intoleráveis e inúteis, o médico deve agir para amenizá-las, mesmo que a consequência venha a ser, indiretamente, a morte do paciente.” (VIEIRA, Tereza Rodrigues. Bioética e direito. São Paulo: Jurídica Brasileira, 1999, p. 90.)
Em acordo, a Resolução CFM n.º 1.805/06 prevê, até como forma de não tornar degradante a continuidade de vida do paciente “que ao médico é permitido “limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.”
A verdade é que as diretivas buscam resguardar minimamente o direito do paciente em ter sua vontade atendida, mesmo em situação quando não possa exprimi-la. Doutro lado, deparamo-nos com a questão ética do médico diante de situação que coloca em risco a saúde ou a vida do paciente.
Infelizmente, sabe-se que vivemos numa insegurança jurídica patente e que cada tribunal pode acabar fundamentando suas decisões de acordo com o caso que lhe é apresentado.
Trouxe para análise os posicionamentos dos dois lados, tanto daqueles que não reconhecem o direito do Estado em “salvar a pessoa dela própria”, tendo em vista a dignidade da pessoa humana, quanto daqueles que entendem que o direito a saúde é direito indisponível e tem o profissional o dever de empreender todas as medidas necessárias para salvar, independentemente da vontade do paciente.
Como garantir uma mínima segurança? Se você for o paciente, deixe descrito nas diretivas minuciosamente tudo o que deseja e, principalmente, outorgue o mandato a terceiro de sua inteira confiança. Se você for o médico, utilize-se do prontuário como forma de referenciar todo o ocorrido, em especial a especificação das diretivas. Todos já sabemos e, apesar de termos que colocar na balança os direitos em jogo, não há verdade absoluta quando se trata da vida e morte de uma pessoa.