SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 OVERRULING E SEUS EFEITOS
3 INTERROGATÓRIO DO RÉU: ART. 400 DO CPP E ART. 302 DO CPPM
4 ESTUDO DE CASO DO HABEAS CORPUS nº 127.900/AM
5 CONCLUSÃO
1 INTRODUÇÃO
O novo Código de Processo Civil (CPC), instaurado pela Lei nº 13.305, de 2015, estabeleceu novos contornos no tocante a aplicabilidade da jurisprudência nos julgados do país. O legislador visou, com esta nova sistemática, atingir os preceitos fundamentais da coerência, estabilidade e integridade. Este procedimento é necessário em países que se utilizam da jurisprudência como fundamento para as decisões judiciais.
Um dos pontos desta nova sistemática trata-se da superação dos precedentes judiciais. Nota-se que, antes da publicação do CPC/15, havia uma postura, por parte dos magistrados, de indiferença em relação aos entendimentos consolidados produzidos pelos tribunais superiores. Esta postura acarretava em insegurança jurídica, haja vista que o jurisdicionado não possuía a certeza de qual era o entendimento firmado sobre o tema em litígio. Nota-se que os próprios tribunais oscilavam no tratamento de sua própria jurisprudência.
Esta incoerência vem sendo combatida pelo CPC/15. Este diploma normativo previu que somente por meio do uso da técnica de superação de entendimento, denominada de overruling, pode ocorrer a modificação da jurisprudência da Corte. Neste sentido este artigo realizará, em um primeiro momento, a descrição e o modo de utilização desta técnica.
Posteriormente, será demonstrado como a modificação ocorrida no Código de Processo Penal (CPP), no tocante ao momento da realização do interrogatório do réu afetou a justiça militar, acarretando na mudança de sua jurisprudência. Assim, será explicado como o Supremo Tribunal Federal (STF), utilizando a técnica do Overruling, no julgado do Habeas Corpus nº 127.900/AM, superou este entendimento, determinando que o interrogatório do réu seja, também na Justiça Militar, o último ato da fase de instrução processual.
2 OVERRULING E SEUS EFEITOS
A jurisprudência, em linhas gerais, pode ser conceituada como a aplicação reiterada de um precedente judicial. Neste mesmo sentido, Ferro (1990, p. 90) conceitua o instituto da jurisprudência como sendo: “o complexo de decisões reiteradas, acerca de determinada matéria, pronunciadas por órgãos colegiados do Poder Judiciário, no efetivo exercício da atividade jurisdicional”.
Estas decisões reiteradas quando utilizadas, por magistrados, como fundamento para a resolução de julgamentos futuros, são consideradas como precedentes judiciais. Assim, a modificação da jurisprudência pode ser considerada como a prolatação de uma decisão judicial - com força de precedente judicial - que superou um entendimento firmado anteriormente por esta mesma corte.
Verificando-se a necessidade de superação de um precedente judicial, o tribunal utilizará a técnica do overruling. Por meio desta técnica, gera-se a invalidade da norma. Segundo Didier Jr. (2012, p. 402) a técnica consiste em: “através da qual um precedente perde a sua força vinculante e é substituído por outro precedente”.
Nesta situação, nota-se que, conquanto os fatos do caso presente sejam semelhantes ao caso paradigma, há outra tese jurídica a ser aplicada ao caso. Deste modo, afasta-se um precedente judicial e, por consequência, adota-se uma nova tese jurídica. Há, neste caso, uma nova realidade advinda de novos casos julgados sobre o tema.
Ocorre que o precedente é integralmente revogado, perdendo sua eficácia vinculante e sendo substituído por outro. Nogueira (2010, p. 236) define o fenômeno como sendo: “Por meio dessa técnica, o Tribunal supera o precedente. Fazer o overruling significa que o Tribunal claramente sinaliza o fim da aplicação de uma regra de direito estabelecida pelo precedente e substitui a velha regra de direito por uma que é fundamentalmente de natureza diversa”.
Por analogia, pode-se relacionar o overruling a situação de uma revogação de uma lei por outra. O próprio órgão jurisdicional que criou o precedente, o substitui por um precedente mais adequado ao caso. De acordo com Rosito (2012, p. 104):
Significa que, ocorrendo mudança na valoração das circunstâncias relevantes de casos similares, o julgador está autorizado a adotar entendimento diverso, desde que assumida a sua devida carga de fundamentação. Neste sentido, é necessária a presença de uma motivação sólida, consubstanciada em argumentos novos relacionados a justificação da superação do precedente.
Ressalta-se que esta mudança de entendimento firma-se em mudanças nas circunstâncias fáticas. Percebe-se que a vinculação do precedente determinada pelo CPC/15 não obsta que um entendimento sedimentado possa ser superado, por meio de uma mutação progressiva de paradigma.
Em que pese a busca da segurança jurídica, celeridade e isonomia, não há como se fossilizar o direito. Este é vivo, não se permite a adoção perpétua de determinado entendimento. Há fatores vigentes que geram a inconveniência na preservação do precedente. Novas condições sociais, politicas, econômicas, autorizam o aperfeiçoamento do precedente.
Desta forma, o método de superação pode ser utilizado tanto para a correção de alguma norma equivocada que foi criada ou fornecer ao magistrado a possibilidade de acompanhar a evolução da sociedade. Esta segunda hipótese é, sem dúvida, a mais expressiva da utilização do overruling, haja vista combater o engessamento do direito.
Sobre este assunto, Marinoni (2013, p. 421) complementa que: “um precedente está em condições de ser revogado quando deixa de corresponder aos padrões de congruência social e consistência sistêmica, e, ao mesmo tempo, os valores que sustentam a estabilidade - basicamente os da isonomia, da confiança justificada e da vedação da surpresa injusta - mais fundamentam a sua revogação do que a sua preservação”.
Neste sentido, a técnica evita a manutenção de incongruências e injustiças no uso de maus precedentes, gerando, desta forma, mecanismos para a superação de entendimentos obsoletos, ocasionando a continuidade do desenvolvimento do direito e da garantia da sua não petrificação. Sobre a técnica da superação do precedente no CPC/2015, nota-se a sua presença no artigo 489, §1º, VI (BRASIL, 2015), que inova ao, expressamente, prever a utilização da técnica do overruling:
Art. 489. […]
§1° Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: […]
VI – deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento (grifo do autor).
Percebe-se que a negativa de atendimento a técnica do overruling acarretará na falta de fundamentação, ofendendo diretamente o CPC e, de forma mediata, o artigo 93, IX, da Constituição Federal, gerando vício de nulidade no ato. Demonstra-se, assim, o status de direito fundamental que esta técnica pode ganhar após a sua consagração.
A parte possui direito subjetivo de superação de precedentes, pois esta tem o direito fundamental de que se veja promovido o overruling, dentro dos casos previstos. Por meio do direito de ação ou de recurso, deve ser garantido a todos, a possibilidade de influir na modificação da tese jurídica sedimentada em casos anteriores, a partir da constatação de que fatos novos justifiquem a modificação do parâmetro normativo.
Desta forma, percebe-se a importância do instrumento, considerando a evolução do processo à luz da proteção dos direitos fundamentais. Neste sentido, nota-se que não seria imprudente vislumbrar esta técnica como um potencial direito processual fundamental.
Porquanto resulta na revogação de um entendimento e passa-se a se estabelecer um outro, é fundamental o estudo da vigência temporal deste novo entendimento, visando evitar uma surpresa indevida para a sociedade. Assim, é possível a modulação dos efeitos da revogação do precedente. Deste modo, a técnica de superação pode ser classificada, quanto aos efeitos, em retrospective overruling e prospective overruling.
Na primeira espécie, há a substituição do precedente com eficácia ex tunc – retroativa – ocasionando na constatação de que a tese jurídica substituída não será invocada até mesmo para aqueles casos passados a sua superação.
Holanda (2017, p. 26) explica este efeito nos seguintes termos: “Excepcionalmente, é possível se falar em overruling retrospectivo. Trata-se da substituição de um precedente com efeitos ex tunc, ou seja, o precedente substituído não poderá ser utilizado mesmo em relação a casos anteriores a substituição do precedente, ainda que esses processos não tenham sido julgados”.
Na eficácia prospective overruling, a tese jurídica substituída mantém-se com seus efeitos em relação aos processos anteriores a sua superação. Na revogação prospectiva, há a conferência de efeito ex nunc, acarretando com que a ratio decidendi revogada, gerada pelo precedente, mantenha sua aplicação para fatos anteriores a sua revogação.
É possível, ainda, a modulação dos efeitos desta superação, podendo haver a fixação em algum momento futuro para a aplicabilidade do precedente – aplicação prospectiva a termo. Sobre esta possibilidade, Theodoro Jr. (2015, p. 307) comenta: “Essa é uma medida salutar, uma vez que toda fixação de certo entendimento gera expectativas normativas para todos e sua alteração brusca poderia gerar insegurança jurídica”.
Em regra, utiliza-se a superação prospectiva, haja vista a essência da superação consistir em estabelecimento de uma nova norma, o que, em tese, impede a aplicação, de imediato, bem como fortalece a segurança jurídica, ao impedir o seu uso a casos passados, tutelando o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.
Assim, deve-se atentar para a jurisprudência vigente à época da prolação das decisões, na finalidade de impedir a insegurança jurídica. O tempus regit actum deve ser aplicado não somente para a lei, mas, adotando-se um sentido mais amplo, a qualquer norma. Tudo para que a finalidade dos precedentes judiciais, em se dar certeza aos jurisdicionados, seja obtida.
3 INTERROGATÓRIO DO RÉU: ART. 400 DO CPP E ART. 302 DO CPPM
Este tópico trata do momento de realização do interrogatório do réu nos processos penais militares. Os crimes militares têm seu rito previsto no Código de Processo Penal Militar (CPPM). Esta legislação trata dos procedimentos processuais a serem realizados na ocorrência de algum crime militar.
O rito previsto no CPPM tem algumas distinções em comparação ao estabelecido pelo CPP. Uma das diferenças remonta ao momento em que se realiza o interrogatório do réu. Neste sentido, o artigo 400 do CPP, modificado pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, passou a estabelecer que o interrogatório deve ser realizado depois da inquirição das testemunhas e da produção das demais provas.
Assim, no procedimento ordinário da audiência de instrução, o interrogatório passou a ser o último ato. Por outro lado, o artigo 302 do CPPM prescreve que o réu será interrogado em momento anterior a oitiva das testemunhas. Ou seja, de acordo com o CPPM, o primeiro ato da instrução é o interrogatório do réu.
A alteração legislativa no procedimento ordinário decorreu da necessidade de ampliar os mecanismos de defesa do acusado, haja vista que, após a oitiva dos relatos trazidos a juízo pelas testemunhas, o réu poderá estabelecer uma versão dos fatos a qual sustentará. Para exemplificar, tem-se a situação em que, na fase de instrução de um processo, nenhuma das testemunhas aponta o acusado como autor do fato criminoso. Diante destes depoimentos, o réu poderá optar por uma estratégia de defesa convergindo para uma negativa de autoria.
Pelo contrário, se os testemunhos convergissem visando a sua incriminação, poderia adotar como estratégia a confissão, tendo como finalidade atenuar a sua pena, com fundamento no artigo 65, III, d, do Código Penal. Deste modo, caso o acusado não tivesse acesso a estes depoimentos, previamente, poderia adotar uma estratégia que não seria viável para a sua defesa.
Conclui-se que, após a alteração legislativa realizada pela Lei nº 11.719/08 que modificou o artigo 400 do CPP, a regra contida na norma deste artigo tornou-se em condição mais favorável ao réu em comparação a previsão do artigo 302 do CPPM. Deste modo, incrementou-se uma corrente doutrinária fundamentando que a interpretação da norma do artigo 302 do CPPM deveria ser modificada, passando-se a adotar a nova sistemática.
Em um primeiro momento, houve a manutenção da regra do artigo 302 do CPPM, em respeito aos princípios da legalidade e da especialidade. Neste sentido, foi aprovada a Súmula nº 15 do Superior Tribunal Militar (BRASIL, STM, 2014) , que prescrevia: “A alteração do art. 400 do CPP, trazida pela Lei nº 11.719, de 20 de junho de 2008, que passou a considerar o interrogatório como último ato da instrução criminal, não se aplica à Justiça Militar da União.”
Corroborando este entendimento, percebe-se a ementa do Habeas Corpus 1.847.520.147/BA (BRASIL, STF, 2016):
HABEAS CORPUS. IMPOSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DO ART. 400 DO CPP EM SUBSTITUIÇÃO AO ART. 302 DO CPPM. ENTENDIMENTO DA SÚMULA Nº 15 DO STM. PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE. AUSÊNCIA DE DEMONSTRAÇÃO DO PREJUÍZO. 1. O momento do interrogatório do Réu no direito castrense é disciplinado pelo art. 302 do CPPM, não havendo lacuna ou omissão que autorize a aplicação do art. 400 do CPP. Entendimento da Súmula nº 15 do STM. 2. No direito processual penal, a nulidade de ato judicial está vinculada à demonstração de seu prejuízo. Postulado do pas de nullité sans grief. 3. Não se pode mesclar o regime penal comum e o castrense, de modo a selecionar o que cada um tem de mais favorável, devendo ser reverenciada a especialidade da legislação processual penal militar. Ordem conhecida e denegada. Decisão por maioria.
Entretanto, houve, por parte da Suprema Corte, por meio de um caso paradigma, uma mudança de entendimento acerca do momento da realização da instrução do réu em processos penais militares. Destarte, no julgamento do Habeas Corpus nº 127.900/AM, de relatoria do Ministro Dias Tofolli, em 03 de março de 2016, a tese esposada foi revogada e passou-se a adotar o entendimento de que, também, na hipótese de crimes militares, o interrogatório do réu deveria ser o último ato da instrução.
Neste sentido, nota-se a aplicação da técnica do overruling. Houve a superação do entendimento jurisprudencial anterior do Superior Tribunal Militar (STM). Deste modo, o último tópico do presente artigo descreverá os argumentos levantados pelos ministros do STF que acarretaram na possibilidade de mudança deste entendimento consolidado.
4.4 ESTUDO DE CASO: HABEAS CORPUS nº 127.900/AM
Finalizando este artigo, haverá, neste tópico, a realização do estudo de caso acerca da superação do precedente judicial sobre o assunto tratado. No caso em tela, serão descritas as circunstâncias, procedimentos e mecanismos que possibilitaram ao STF superar o entendimento de que o interrogatório do réu deve ser realizado como o último ato da instrução nos processos julgados na Justiça Militar.
O caso em tela trata de soldados da ativa que foram surpreendidos no interior do 1º Batalhão de Infantaria de Selva em Manaus/AM na posse de substância entorpecente, amoldando-se a conduta descrita no artigo 290 do Código Penal Militar. Em consonância com o artigo 124, da Constituição Federal de 1988 e artigo 9º, I, b, do Código Penal Militar, os militares foram julgados pela Justiça Militar.
A defesa do impetrante, com fundamento no artigo 400 do CPP, na redação dada pela Lei nº 11.719/08, alegou a nulidade do interrogatório como primeiro ato da instrução processual, que foi realizado de acordo com o procedimento previsto no artigo 302 do CPPM.
Deste modo, a defesa aduzia que o procedimento do artigo 400 do CPP melhor atendia às garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa, devendo ser aplicado, também, na Justiça Militar. Assim, solicitava a realização de um novo interrogatório ao término da instrução criminal visando a possibilidade do paciente realizar a contradição de todas as provas produzidas.
Iniciando a descrição argumentativa relativa aos votos dos ministros do STF, o ministro Dias Toffoli (BRASIL, STF, 2016), relator do caso, iniciou o seu voto, citando o entendimento, até o momento, predominante na jurisprudência dos Tribunais Superiores, no sentido da não observância da Lei nº 11.719/08 nos processos relativos a crimes militares:
De acordo com este posicionamento, decidiu-se que a norma processual militar, em virtude do princípio da especialidade, prepondera sobre o regramento processual comum. Neste sentido, tem-se o voto do Ministro Gilmar Mendes no Recurso em Habeas Corpus nº 123.473/BA: “Recurso ordinário em habeas corpus. 2. Lei processual penal militar. Especialidade. 3. Interrogatório. Momento da realização. 4. Prevalece a norma processual penal militar diante do regramento comum, alterado pela Lei 11.719/2008, haja vista a previsão expressa existente na norma castrense. Precedentes.
Entretanto, continuando o seu voto, o ministro Dias Toffoli (BRASIL, STF, 2016) ressalta sobre a possibilidade de mudanças de entendimentos consolidados, por meio de uma adequação a presente realidade social: “Entretanto, anoto que a submissão da presente questão ao Plenário deste Supremo Tribunal deságua no dever desta Relatoria de reanalisar a matéria e decidir segundo o seu convencimento, firmado a partir da legislação, dos dados dos autos e dos recentes posicionamentos jurídicos e doutrinários”.
Deste modo, o Ministro Dias Tofolli (BRASIL, STF, 2016), defende o uso da técnica do overruling, visando a aplicação do artigo 400, do CPP, nos processos julgados pela Justiça Militar:
Nesse particular, por ser mais benéfica (lex mitior) e harmoniosa com a Constituição Federal, há de preponderar, no processo penal militar (Decreto-Lei nº 1.002/69), a regra do art. 400 do Código de Processo Penal, devendo ser ressaltado que sua observância não traz, sob nenhuma hipótese, prejuízo à instrução nem ao princípio da paridade de armas entre acusação e defesa.
Após, o ministro (BRASIL, STF, 2016) utiliza do argumento do uso dos princípios constitucionais para tentar afastar a aplicação do artigo 302 do CPPM:
A meu ver, a não observância do CPP na hipótese acarreta prejuízo evidente à defesa dos pacientes, em face dos princípios constitucionais em jogo, pois a não realização de novo interrogatório ao final da instrução subtraiu-lhes a possibilidade de se manifestarem, pessoalmente, sobre a prova acusatória coligida em seu desfavor (contraditório) e de, no exercício do direito de audiência (ampla defesa), influir na formação do convencimento do julgador.
Por fim, o ministro conclui (BRASIL, STF, 2016) o seu voto, estabelecendo a seguinte tese superadora de entendimento: “Desse modo, não vejo óbice à incidência do art. 400 do Código de Processo Penal aos feitos penais militares, devendo ele, portanto, ser observado pela Justiça Castrense”.
Na sequência, o ministro Marco Aurélio (BRASIL, STF, 2016), reforçando o contraditório que deve ocorrer, principalmente em julgados que envolvam superações de entendimentos consolidados, contrapõe-se aos argumentos levantados pelo ministro relator:
Entendo que se define a controvérsia pelo princípio da especialidade. Há regência específica do tema, no Código de Processo Penal Militar, e essa deve ser observada. A lei que cuidou da reforma do Código de Processo Penal não repercutiu quanto à disciplina no âmbito do processo penal militar.
Assim, em sentido divergente, o Ministro (BRASIL, STF, 2016) adotou a tese de que se deveria manter o entendimento firmado da Corte e se manifestou pela adoção do procedimento do CPPM, em virtude do princípio da especialidade:
Apenas cabe a aplicação subsidiária do código de processo comum, ao processo militar, no caso de lacuna. E não se tem lacuna sobre a matéria no Código de Processo Penal Militar. Este cede, quanto às normas nele contidas, à disposição constante de convenção ou tratado em que signatário o Brasil. Por isso, apegado a esses parâmetros, a esses princípios, a esses valores, e entendendo que não podemos nos substituir ao Congresso Nacional, ao invés, devemos observar o princípio da autocontenção, indefiro a ordem.
Em respeito ao princípio da especialidade, o Ministro Luís Roberto Barroso (BRASIL, STF, 2016) inicialmente defendeu a manutenção do entendimento, alegando que cabe ao legislador penal fazer as alterações nas leis especiais com a finalidade de haver uma consonância com o procedimento previsto no CPP.
O legislador penal teria competência para modificar o Código de Processo Penal Militar, como teria também para modificar a Lei de Drogas, no mesmo pacote. E, portanto, se o legislador fez a opção de modificar apenas o procedimento comum, apenas o procedimento geral, eu acho que essa é uma opção legítima. Não considero que seja a melhor, mas considero que seja uma opção legítima. Eu até faria um apelo ao legislador para que, em momento próximo, modifique as leis especiais para permitir o interrogatório ao final, porque acho que isso é melhor. Porém, não ousaria dizer que todas as leis que dispuseram de maneira diferente são tacitamente revogadas e, de certa forma, eu teria que presumir uma inconstitucionalidade dessas Leis, o que pessoalmente não acho ser o caso, apenas acho que não é a melhor opção.
Aliado a tese do relator, o Ministro Edson Fachin defendeu a mudança de entendimento, aduzindo que a alteração do artigo 400 do CPP foi uma inovação positiva. Segundo o Ministro (BRASIL, STF, 2016), a Constituição Federal de 1988, em sua análise de compatibilidade material com as normas anteriores a sua vigência, acabou por não recepcionar o artigo 302 do CPPM.
Assim, de acordo com a argumentação do Ministro (BRASIL, STF, 2016), este artigo é inconstitucional, não podendo, por este motivo, ser aplicado aos processos vigentes:
O primeiro é que inseri também na fundamentação a não recepção, no meu modo de ver, pelos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, do artigo 302, em causa, do Código Processual Penal Militar. […] Tenho para mim que este dispositivo não está recepcionado, mas isso em nada altera o acompanhamento que estou a fazer da acutíssima conclusão de Sua Excelência, o Ministro Dias Toffoli. […] Sendo assim, com a devida vênia de compreensões contrárias, não vejo como se possa, sem declarar a não recepção da regra especial que estabelece o interrogatório como tendo lugar antes da oitiva das testemunhas, determinar-se que se realize o interrogatório nos termos do que impõe a legislação processual penal comum.
O Ministro Edson Fachin (BRASIL, STF, 2016) reforça a argumentação levantada pelo ministro relator, acerca da negativa de aplicação do artigo 302 do CPPM:
Vejo, portanto, incompatibilidade com a Constituição, por ofensa aos princípios do contraditório, ampla defesa e devido processo legal, nas regras que impõe o interrogatório do acusado em momento anterior ao da oitiva das testemunhas, a qual reputo deva ser declarada.
Por fim, defende a tese da utilização do fenômeno da mutação constitucional que deve ser aplicada ao caso concreto. Por meio desta, as mudanças sociais que ocorrem no mundo fático influenciam a interpretação das normas, autorizando que se “atualize” a hermenêutica de uma determinada regra jurisprudencial. De acordo com o Ministro (BRASIL, STF, 2016):
Está diante do fenômeno da mutação constitucional o qual, segundo o eminente Ministro Gilmar Mendes, em obra doutrinária escrita em coautoria com Paulo Gustavo Gonet Branco, descreve com sendo “uma evolução na situação de fato sobre a qual incide a norma, ou ainda por força de uma nova visão jurídica que passa a predominar na sociedade, a Constituição muda, sem que as suas palavras hajam sofrido modificação alguma. O texto é o mesmo, mas o sentido que lhe é atribuído é outro. Como a norma não se confunde com o texto, repara-se, é, uma mudança da norma, mantido o texto.” (Curso de direito constitucional. 10 ed. São Paulo : Saraiva, 2013, p. 134). […] No mesmo sentido, cito a lição do eminente Ministro Luís Roberto Barroso, também em obra doutrinária, quando explicita que “a interpretação evolutiva é um processo informal de reforma do texto da Constituição. Consiste ela na atribuição de novos conteúdos à norma constitucional, sem modificação do seu teor literal, em razão de mudanças históricas ou de fatores políticos e sociais que não estavam presentes na mente dos constituintes” (Interpretação e aplicação da constituição. 7ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 151).
Ante o exposto, o ministro Celso de Mello (BRASIL, STF, 2016), realizando uma síntese dos principais argumentos levantados favoráveis ao uso do CPP, nos processos militares, conclui o seu voto nos seguintes termos:
Ocorre, no entanto, segundo entendo, que se mostra aplicável, no caso, um outro critério, que não o da especialidade, fundado em opção hermenêutica que se legitima em razão de mostrar-se mais compatível com os postulados que informam o estatuto constitucional do direito de defesa, conferindo-lhe substância, na medida em que a nova ordem ritual definida no art. 400 do CPP, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, revela-se evidentemente mais favorável que a disciplina procedimental resultante do próprio CPPM.
Na sequência, o ministro Ricardo Lewandowski (BRASIL, STF, 2016), acompanhando o voto do ministro relator, defendeu a mudança de entendimento ante as garantias constitucionais da ampla defesa e contraditório, reforçando argumentos já levantados por outros ministros:
Quando se mudou, a meu ver, o Código de Processo Penal, especificamente o art. 400, em 2008, houve uma alteração do paradigma processual, que, a meu ver, aplica-se a todo o processo penal ou, enfim, congênere em todas as esferas, mesmo nas áreas especializadas, data vênia. É como eu penso.
E o ministro (BRASIL, STF, 2016) complementa, relatando, sobre a alteração jurisprudencial, a importância da superação do entendimento consolidado que se fazia necessário ocorrer: “Em vez de aguardarmos uma alteração legislativa, nós, aqui, por uma opção jurisprudencial, estabelecemos que o interrogatório se dará ao final da instrução processual, por unanimidade.”
O ministro Teori Zavascki (BRASIL, STF, 2016) conclui pela manutenção do entendimento anterior, ante ao princípio da especialidade do artigo 302 do CPPM, aliado a não revogabilidade ou não recepcionalidade deste artigo perante, respectivamente, o CPP ou a Constituição Federal: “Mas, de qualquer modo, convencido, como já me manifestei na Segunda Turma, de que o artigo 302 do Código de Processo Penal Militar não foi revogado pela norma comum, geral, nem é incompatível com a Constituição, penso que ele deve ser aplicado.”
Acerca dos aspectos “negativos” advindos do uso da técnica do overruling, o ministro Teori Zavascki (BRASIL, STF, 2016) atento aos prejuízos que uma mudança brusca de entendimento pode ocasionar, como uma provável perda de credibilidade em relação ao órgão julgador, ressalta:
Realmente, para sustentar que esse dispositivo está revogado, teremos que afirmar que as regras do processo comum ordinário penal aplicam-se aos procedimentos especiais. Qual é a consequência disso? Além de ferir uma jurisprudência antiga do Supremo, a consequência prática é a eliminação dos procedimentos especiais. Se nós dissermos que, aos procedimentos especiais, aplica-se a regra do procedimento comum, acabou-se o procedimento especial, ou, pelo menos, os procedimentos especiais, de um modo geral, ficarão severamente comprometidos.
Por outro lado, o ministro Gilmar Mendes (BRASIL, STF, 2016) defende a mudança de entendimento. Entretanto, com caráter prospectivo:
A mim me parece que nesse sentido porque, senão, veja, o risco não está só no processo militar. Mesmo os processos antigos, já julgados, serão passíveis de revisão, porque estaríamos a dizer que esse procedimento... E, claro, os autores, como o Presidente acaba de sinalizar, fizeram nessa perspectiva, de que atenderia, de forma mais adequada, ao princípio do contraditório e da ampla defesa – o ministro Celso já também ressaltou esse aspecto - , que a oitiva se desse, a final, quando já conhecidos todos os fatos, portanto, parece ser mais condizente. Mas, até pouco tempo, era reconhecido legítimo.
Também preocupado com os efeitos temporais desta mudança de entendimento, o Ministro Luís Roberto Barroso (BRASIL, STF, 2016) ressalta:
De modo a não comprometer o princípio da segurança jurídica (CF, art. 5º, XXXVI) nos feitos já sentenciados, essa orientação deve ser aplicada somente aos processos penais militares cuja instrução não se tenha encerrado, o que não é o caso dos autos, já que há sentença condenatória proferida em desfavor dos pacientes desde 29/7/14. […] Em vista das razões de meu voto e das substanciosas ponderações lançadas pelos membros da Corte durante os debates que acolho, proponho, como orientação, que: a norma inscrita no art. 400 do Código de Processo Penal comum se aplique, a partir da publicação da ata deste julgamento, aos processos penais militares, aos processos penais eleitorais e a todos os procedimentos penais regidos por legislação especial, incidindo somente naquelas ações penais cuja instrução não se tenha encerrado.
Com a mesma preocupação e com vistas à segurança jurídica, o Ministro Edson Fachin defende a aplicação da modulação dos efeitos do overruling, haja vista os inúmeros processos já sentenciados sobre a égide do artigo 302 do CPPM. De acordo com o eminente Ministro (BRASIL, STF, 2016):
Essa conclusão aplicar-se-á aos processos que estão em trâmite. Expressei e reitero uma preocupação com os atos já praticados e com um mínimo de observância do postulado da segurança jurídica. Então, neste sentido, permito-me sugerir, reiterando que estou acompanhando o Relator, que se adote, em relação a esse pronunciamento, tendo em vista que ele poderá produzir efeitos espraiados, uma eficácia ex nunc, ou seja, a contar deste julgamento.
Consolidando os votos dos ministros neste julgado, formou-se a maioria pela superação do entendimento consolidado. Nestes termos, a Suprema Corte acolheu a tese defensiva levantada pela Defensoria Pública da União acerca da realização do interrogatório do réu como último ato da instrução nos processos penais militares.
Entretanto, modulando os efeitos do julgado, asseverou que o entendimento passaria a ser utilizado somente após a publicação da ata do julgamento – ocorrida em 11 de março de 2016 – não se aplicando ao caso em julgado, nem aos anteriores com o interrogatório já realizado.
5 CONCLUSÃO
Neste sentido, percebe-se que, por maioria de votos, o STF superou o entendimento, até então consolidado, de realização do interrogatório como primeiro ato da instrução nos processos penais militares. No caso em apreço, demonstrou-se, por meio deste estudo de caso, que houve uma fundamentação idônea e qualificada, com a finalidade de realizar o overruling, conforme prescreve o artigo 489, §1º, VI, CPC/15.
Esta fundamentação é percebida nos diversos argumentos produzidos pelos ministros acerca da superação de entendimento, ante a impossibilidade de realizar o interrogatório do réu como primeiro ato da instrução. Nesta perspectiva, foram levantados os argumentos dos princípios constitucionais, da ampla defesa, do contraditório, da dignidade da pessoa humana, da possibilidade do uso da norma mais favorável ao acusado.
Deste modo, adotou-se a técnica do overruling construindo-se a seguinte tese: “A realização do interrogatório ao final da instrução criminal prevista no artigo 400 do CPP, na redação dada pela Lei nº 11.719/2008, também se aplica às ações penais em trâmite na Justiça Militar, em detrimento do artigo 302 do Decreto-Lei nº 1.002/69 (CPPM). Nota-se que esta decisão do STF reforçou os valores de integridade e de coerência perseguidos pela nova sistemática desenvolvida pelo CPC/15.
Assim, em respeito ao princípio da ampla defesa e do contraditório, houve uma mudança de entendimento. O STF entendeu, ainda que, por questões de segurança jurídica, visando obstar a anulabilidade de inúmeros processos realizados por meio da sistemática do artigo 302 do CPPM – interrogatório como primeiro ato da instrução – que a nova tese só seria adotada a partir da data de publicação da ata do julgamento do Habeas Corpus nº 127.900/AM.
Desta forma, conclui-se que o acórdão do Habeas Corpus 127.900/AM realizou a técnica da superação de maneira adequada, porquanto fundamentou a superação de entendimento em argumentos idôneos e qualificados, além de confrontá-los com os fatos existentes nos acórdãos paradigmas que deram ensejo a criação do precedente superado. Houve, deste modo, a citação, análise e confronto com os precedentes anteriores que levaram ao parâmetro normativo.
Além disto, em consonância com o princípio da segurança jurídica, houve a preocupação de modular os efeitos do novo entendimento, haja vista que, se aplicado, retroativamente, o novo precedente poderia afetar inúmeros processos militares já com trânsito em julgado, acarretando um “caos” na execução da pena de processos julgados pela justiça militar. Deste modo, todos os interrogatórios realizados, antes da data do overruling, ficaram como sua validade assegurada, ainda que não se tenham atentado para o procedimento do artigo 400 do CPP.
Outro ponto que merece destaque é a posterior revogação da Súmula nº 15 do STM, que entendia sobre a inaplicabilidade do artigo 400 do CPP, na instrução penal militar. Assim, em respeito a sistemática de hierarquização vertical da jurisprudência houve, em 17 de maio de 2016, o cancelamento da Súmula nº 15 do STM, passando este Tribunal Superior a adotar o entendimento de que o artigo 400, do CPP, também é aplicável aos processos militares, resultando no interrogatório do réu como última ato da instrução para esta justiça especializada.
Nesta perspectiva, a técnica do overruling foi fundamental para respaldar o novo posicionamento, afastando injustiças e promovendo a evolução jurídica em concomitância com a evolução da sociedade.
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Com a finalidade de realizar o adequado acompanhamento da decomposição dos votos dos ministros do STF contidos no Habeas Corpus nº 127.900/AM, segue o link contendo o extrato do acórdão objeto deste estudo, com os trechos elementares dos votos, para que ocorra o total entendimento deste estudo de caso: <file:///C:Users/ml%20586/Downloads/texto_310049352.pdf>.