A aplicação do compliance na profissão médica

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A profissão médica possui inúmeros pontos de vulnerabilidade, eventualmente ensejadores de responsabilização criminal de envolvidos. Temos os inerentes à profissão, por seu caráter de ciência inexata. E aqueles derivados de comportamentos enraizados entre seus praticantes. É sobre estas últimas que o compliance se foca para a implantação de práticas que permitam o aprimoramento da identificação das ocorrências mais comuns e criação de mecanismos de controle. Implantadas e submetidas a manejo permanente, tais medidas demonstram dupla finalidade, ao permitir a proteção tanto do profissional quanto do paciente.

Assim, a aplicação do compliance na profissão médica pode municiar o profissional para que esteja apto a melhor sustentar a correição de sua atuação, servindo de apoio à sua defesa em quaisquer questionamentos. Isso é relevante porque os erros médicos inserem-se num contexto dinâmico, ocorrendo, principalmente, devido a falhas multifatoriais.

O uso desse instrumento enfrenta dificuldades, inclusive para ser compreendido. Apesar de ser comum a aplicação dos programas de compliance em organizações empresariais, entende-se que os procedimentos de controle de uso regular nas instituições de saúde sejam suficientes para lidar com os frequentes problemas decorrentes de acusações de imperícia, imprudência e negligência na atividade médica. Não são. E por simples razão. A mentalidade norteadora dessas práticas visa, com raras exceções, a proteção do procedimento hospitalar frente a fiscalizações diversas. Ou seja, é um sistema de proteção norteado pela burocracia profissional da atividade. O uso do compliance por pessoas físicas, especialmente inseridas em organizações de saúde, tem outro e maior propósito.

Numa sociedade inflamada pelo espírito de litígios judiciais, indivíduos de profissões como as da área médica adquirem cada vez mais consciência para a necessidade de bloquear efeitos negativos relacionados à imagem diante de suspeitas no descumprimento de normas e princípios morais. Querem evitar o risco da aplicação de sanções correspondentes às normas violadas, como medidas disciplinares, perda de cargo, cominação de multas e, em casos extremos, até a perda de liberdade. Afinal, muitas das condutas que o compliance visa coibir se confundem com ilícitos penais.

Muito importante chamar atenção para um falso senso comum sobre a intenção das práticas de compliance. Ao contrário do que se entende, o compliance existe para proteger a empresa, tão somente, e responsabilizar quem a descumprir. Os funcionários, sobretudo.  Portanto, o uso desse instrumento pela ótica de interesse do profissional não está contemplado nos três níveis de alvos vislumbrados pela norma: de quem deve seguir, dos responsáveis por fiscalizar sua prática, e daqueles que têm a obrigação de saber o que os dois grupos anteriores estão fazendo.

Por mais que tais instrumentos tenham sido criados para regular a responsabilização da pessoa jurídica, na prática, o compliance tem foco punitivo sobre os indivíduos, por visar a regulação de suas condutas e estabelecer limitações na divisão de responsabilidade por fatos ocorridos. Preservando a empresa e, acima de tudo, órgãos públicos.

Dessa forma, a aplicação direta do compliance por pessoas deve levar em consideração a criação de normas e regras para uso rotineiro em razão de sua atividade profissional, e não por pertencerem a uma organização especifica. A medida, somada às regras de conduta de hospitais ou clínicas médicas, gera, por tabela, o fortalecimento da proteção da pessoa e da organização.

Estudo acadêmico sobre direito médico preventivo demonstrou a viabilidade da adoção desta ferramenta. Não existem altos custos ligados às medidas propostas, inexistindo, ainda, incompatibilidade entre as normas de compliance e as diretrizes éticas e profissionais dos médicos, de forma que afigura praticável a criação, implementação e uso das técnicas decompliance para os profissionais médicos e de saúde em geral.

Por fim, a utilidade desse instrumento deve ser refletida no contexto de facilidade de acesso do paciente a mecanismos que colocam em movimento a máquina punitiva estatal.

Sobre as autoras
Maria Luiza Gorga

Especialista em Direito Médico do Braga Martins Advogados

Ana Paula de Souza Cury

Advogada especializada em Direito Médico, sócia do Souza Cury Advocacia e integrante da World Association for Medical Health

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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