Depois destes intensos anos de advocacia - e lá se vão mais de vinte e cinco no foro - jamais imaginei comportamentos similares aos que temos observado na jurisdição nos últimos tempos. No curso de graduação, ao ler as duras afirmações de Montesquieu quantos aos limites da atuação dos magistrados, via naquele pensamento anacronismo, embora compreendesse a irritação dos iluministas com a classe dos juízes. A ideia de cada qual dizer o direito consoante um modo particular de interpretação e as invenções de regras para satisfazer interesses políticos aborreceram sobremaneira aqueles pens adores, que viram no padrão da legalidade a salvação para se reconstruir a confiança na Justiça e no Estado.
Em matéria penal, o princípio da legalidade foi propalado desde o século XVIII, pelos escritos de Beccaria e Filangieri. Mas, mesmo sob a égide da lei (escrita, certa e estrita), não faltaram no século passado os alertas de Giuseppe Bettiol quanto aos riscos dos elementos normativos para aplicação dos tipos incriminadores, pois abriam uma janela discricionária ao juiz criminal incompatível com a rigidez esperada do sistema penal.
Estas percepções soavam a mim, outra vez, como exagero. Os ideais liberais da Reforma Penal de 1984 de encontrar um juiz de direito com olhos de somente punir segundo a lei e de, ao fazê-lo, obedecer ao necessário e suficiente à justa reprovação empolgavam-me junto com a perspectiva de ele individualizar a pena, como forma de humanizar o cumprimento do castigo. Acreditava eu em um magistrado cioso da legalidade e preocupado com o réu, com o condenado.
O destino fez me enxergar de perto o modo atual de alguns atuarem na jurisdição. O comprometimento tornou-se ideológico. Um sebastianismo da toga aonde um e outro pressupõem deter o poder de mudar a história. Agem como perseguidores. Tramam contra os acusados, ou protegem alguns poucos por razões personalíssimas. Instrumentalizam a imprensa. Bajulam o Ministério Público. Vinculam-se a políticos e partidos. Manejam a distribuição e burlam a competência legal. Criam, por exemplo, conexão instrumental ad infinitum, para justificar a atribuição de julgar casos de repercussão.
Nunca antes conjecturei a possibilidade de gabinete de juiz penal, muito menos de ministro do STF, esconder autos, bem assim mentir sobre o andamento, para impossibilitar o acesso da defesa à decisão e a documentos. Articulações indevidas para pautar recursos e remédios constitucionais; processos levados à mesa na ausência de componente da turma julgadora para alterar o resultado da decisão colegiada; quebra da ordem cronológica e legal de entrada dos apelos para prejudicar o réu; decisões cautelares próximas ao fim de semana para dificultar a impetração de recursos e habeas corpus; ordens de prisão na sexta-feira para embaraçar a apreciação de liminares em writs, dentre outros absurdos contemporâneos.
Tratam-se de condutas não pensadas por nós no passado. Não preconcebidas pelo legislador, ainda que atento. Cuida-se de maneira de agir na magistratura que o mínimo ético de cada juiz deveria sponte propria reprimir. E o combate à corrupção não autoriza a se trilhar esse caminho. Afinal, tais desculpas de fins últimos superiores, bens sociais maiores do que a lei não colam mais para aqueles com alguma memória das agruras dos regimes totalitários.
Sobram, assim, diversas questões em torno de quem deve agir: a Ordem dos Advogados do Brasil vai pedir a punição desses magistrados? Grupo de advogados pode provocar a ação dos órgãos corregedores? O Conselho Nacional de Justiça, sob a batuta do ministro Dias Toffoli, porá fim a tais más práticas de primeiro e segundo grau? O Congresso Nacional considerará o impeachment de quem atua sem lisura no STF? O novo presidente da República vai se preocupar com nichos de jurisdição ideológica?
As respostas dependem de muitos fatores. Porém, resta a convicção: nosso esforço por uma jurisdição mais humana e imparcial longe está de terminar. As incertezas pré-iluministas remanescem, não obstante todos avanços normativos para resguardar os jurisdicionados e a sociedade da arbitrariedade de determinados magistrados, impulsionadas por sentimentos um tanto distantes do espírito de neutralidade que os deveria nortear.