O NASCIMENTO DE UM NOVO DIREITO HUMANO FUNDAMENTAL E SAGRADO: O DIREITO À HISTERIA
Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
Este é apenas um texto que pretende acenar com alguma sanidade para determinadas reações e posturas encontráveis entre muitas pessoas na atual conjuntura política e social brasileira e mesmo mundial.
Eis que surge na internet, nas redes sociais, o seguinte texto:
“Acabei de ver que tem um grupo de lésbicas planejando suicídio coletivo em caso de ditadura.
Uma das minhas amigas mais próximas igualmente decidiu que esse seria o caminho dela.
Se vocês não tão entendendo o medo REAL dessas pessoas e o perigo REAL que elas sofrem, te falta humanidade” (sic).
Deixando de lado a redação sofrível, que mistura o pronome de tratamento “você” (usado na terceira pessoa) com o pronome “tu” (segunda pessoa do singular), fato é que a pobreza do texto não é tanto formal quanto de conteúdo. Aí não se trata sequer de pobreza, mas de miséria intelectual.
A referência velada ou indireta é a um dos polos da atual disputa eleitoral, cujas acusações de homofobia e outros adjetivos tais como fascista, nazista, racista, machista etc., costumam ser utilizadas como supostos argumentos de debate. Além disso, não é incomum que surja aqui e ali a afirmação falsa de que haveria em seu plano uma projetada ditadura militar, bem como a eliminação física, a morte de homossexuais e outras categorias sociais em que se tem costumado catalogar os seres humanos, num processo de constante rotulação e divisão, quando não contraposição direta, como se houvesse uma interminável “guerra” enrustida, um desejo de destruição do outro insatisfeito e latente, prestes a explodir. Na realidade, são essas categorizações, divisões, rotulações e contraposições teóricas e ideológicas que podem gerar, e muitas vezes geram, conflitos totalmente irracionais que jamais ocorreriam.
Quando o pensamento e, consequentemente, as decisões e condutas das pessoas se apresentam despregadas da realidade. Quando as pessoas não acreditam naquilo que está à sua frente, no que é objetivo (de “objeto”, do latim “objectu” – “lançado adiante”) [1]. Quando as pessoas começam a substituir o objetivo pelo subjetivo, o que veem por aquilo que falam e repetem qual papagaios acríticos. Toda essa inversão ou mesmo aversão à realidade concreta, à experiência do mundo da vida, configura uma reação histérica, marcada pelo excesso de emotividade, gerador de terror e pânico. Trata-se de um verdadeiro desequilíbrio patológico do psiquismo.
Lobaczewski chama a atenção para o fenômeno da “histerização social” [2], cujas consequências são desastrosas:
“Quando os hábitos de seleção e substituição subconsciente de dados se espalham no nível macrossocial, uma sociedade tende a desenvolver o desprezo pela crítica factual e a humilhar qualquer um que soe o alarme. O desprezo também é mostrado por outras nações que têm mantido modelos de pensamento normal e por suas opiniões. O pensamento egotista amedrontador é consumado pela sociedade mesma e por seus processos de pensamento conversivo. Isso torna óbvia a necessidade de censura da imprensa, teatro ou televisão, uma vez que o censor patologicamente hipersensível vive dentro dos cidadãos mesmos.
Quando três ‘egos’ governam – egoísmo, egotismo e egocentrismo – o sentimento de conexão social e de responsabilidade em relação aos outros desaparece, e a sociedade em questão divide-se em grupos ainda mais hostis uns aos outros. Quando o ambiente histérico não consegue mais diferenciar as opiniões das pessoas limitadas – quase não normais – das opiniões de pessoas normais, pessoas racionais, abre-se uma porta para que a ativação dos fatores patológicos de várias naturezas entre em cena.
Os indivíduos que nós já encontramos, que são governados por uma visão patológica da realidade e por objetivos anormais causados por sua natureza diferente, são capazes de desenvolver suas atividades em tais condições. Se uma dada sociedade não consegue superar o estado de histerização sob circunstâncias políticas e etnológicas, o resultado pode então ser uma grande tragédia sangrenta”. [3]
A própria tentativa deste texto de chamar à razão aqueles patologizados que escrevem ou que levam a sério o conteúdo acima citado, veiculado nas redes sociais, pode se converter, no processo histérico, em motivo para acusação deste subscritor sob os mais variados impropérios e desqualificações, passando pelas imputações já acima arroladas, e chegando à projeção que consiste em designar o autor deste texto como insano.
Cabe lembrar que o personagem paradigmático de Machado de Assis, Simão Bacamarte, levou muito tempo e internou muita gente no hospício, até que se conscientizasse de que quem deveria permanecer ali trancafiado era apenas ele e não toda a Vila de Itaguaí. [4]
Ora, retomando a passagem sofrível veiculada nas mídias sociais, se há um efetivo temor da implantação de uma ditadura, que se constituiria em um verdadeiro perigo de eliminação física, execução sumária de lésbicas e outros grupos, desse “medo” ou temor não é logicamente derivável, constitui um “non sequitur”, ao menos para alguém minimamente são, a opção pelo suicídio. Por medo da morte violenta imposta de forma heterogênea, deveria eu impor a mim mesmo, autonomamente, a mesma morte violenta por intermédio do recurso ao suicídio? Isso soa absolutamente irracional. É como dizer: porque temo morrer, vou me matar!
É bem verdade que a questão considerada por Camus como a única realmente séria e fundamental na filosofia consistiria no problema do suicídio, na medida em que isso importa em “julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida”. [5] Mas, é preciso perceber que isso não entra em questionamento nas circunstâncias expostas na manifestação midiática apelativa. Isso porque é mais que óbvio que tais pessoas se apresentam dispostas a viver e temem exatamente um regime ditatorial que, supostamente, de acordo com suas lucubrações subjetivas, as eliminaria, o que não desejam, mas, mesmo assim, optariam pela “solução” do suicídio! Camus era o pensador do “absurdo”, mas de um absurdo existencial, desafiador do intelecto na busca do sentido ou da constatação da sua falta, não de um absurdo patológico marcado pela histeria ou esquizofrenia paranoide. Um contraponto a Camus não se acha na insanidade, mas em autores como, por exemplo, Viktor Frankl, que, ao contrário da dúvida ou do niilismo desesperador, apontam para um necessário encontro de sentido para a vida. [6]
Não se pretende jamais negar aquilo que o texto midiático apelativo tanto destaca, escrevendo com maiúsculas a palavra “real” para adjetivar o “medo” que impele as pessoas que se sentem antecipadamente oprimidas a optarem pelo caminho radical da autoeliminação.
Esse medo pode até ser mesmo “real”. O histérico que enxerga os fatos e coisas sob a lente de sua subjetividade doentia é concretamente afetado por suas impressões e idiossincrasias, por suas fantasias, que podem realmente provocar medo e até pânico. O mesmo ocorre com outras disfunções, tais como a esquizofrenia paranoide ou as mais variadas fobias. O medo é real, é um sentimento autêntico da pessoa desequilibrada. Não se trata de fingimento ou afetação. Mas, a causa desse medo é inexistente ou pelo menos extremamente desproporcional em relação à reação de temor ou pânico que ocasiona. Portanto, tirante casos específicos de pura má fé e alarde, é bastante crível que haja pessoas muito suscetíveis ou melindrosas, as quais experimentem um “medo real”, que as leva a uma condição histérica e à perda da racionalidade, conforme acima demonstrado.
Entretanto, reconhecer esse medo “real” não implica em acatar que este seja justificado pelas circunstâncias, de forma que tais pessoas precisem de um apoio humanitário para livrá-las de um perigo “real”. O perigo não é real. O medo pode ser real. Nossa humanidade nos impõe o dever de piedade para com os indivíduos que se encontram sob tais condições patológicas, mas não nos obriga a aderir, de forma alguma, às suas alucinações, à sua negação da realidade objetiva, às suas impressões subjetivas que pretendem sobrepor àquilo que se constata no mundo da vida. Fosse assim, seria obrigação do psiquiatra que recebe um alucinado em seu consultório, aderir à sua teoria conspiratória e com ele esconder-se em um “bunker” dos assassinos enviados por extraterrestres!
Como bem expõe Rossiter, as pessoas são frequentemente dirigidas por certas ideologias a “processos mentais neuróticos ou irracionais”, que “consistem em modos mal adaptados de se pensar, de se emocionar, de se comportar e de se relacionar com os outros”. Tudo isso pode resultar, como se vê, em “percepções paranoicas de vitimização”. [7]
No caso das lésbicas ou demais pessoas com qualquer orientação sexual que possam sentir-se oprimidas em potencial, esse perigo de uma ditadura, ainda que fosse real, ainda que nossa democracia já não se tivesse mostrado sustentável mesmo diante de várias crises políticas, não teria razão de ser. Pelo simples fato de que o apelo é feito em prol exatamente de grupos políticos de esquerda que não somente admiram, mas sacralizam figuras extremamente homofóbicas, tais como Fidel Castro e Che Guevara e regimes políticos que no passado e presente, estes sim, foram responsáveis pela matança de várias minorias e dissidências, dentre as quais os homossexuais. [8] O medo, portanto, pode ser real, mas não é justificável e muito menos racional. É claramente um medo que não funciona como deve funcionar todo medo, ou seja, como mecanismo de defesa. Trata-se, seja pela alegada opção pelo suicídio, seja pela filiação a grupos que representam realmente um perigo concreto, de uma corrida tresloucada em direção ao abismo. Um medo que ao revés de defensivo, é autodestrutivo.
Há não somente uma fuga da realidade, a criação de uma espécie de pequeno universo solipsista aterrorizante, mas uma verdadeira inversão de vetores e de valores. Como bem expõe Trigo:
"Ora, o golpe militar aconteceu há mais de cinquenta anos, e o regime militar terminou há mais de trinta. Mas os militantes narrativos continuavam usando o pretexto enganoso da defesa da democracia como escudo para justificar a corrupção e a incompetência de um governo que fez de tudo para se perpetuar no poder.
Fato: os militares que temos hoje no Brasil (incluindo os atletas que salvaram o desempenho do Brasil na Olimpíadas de 2016, vale lembrar) não têm nada a ver com a ditadura. O seu comportamento nesta e em outras crises políticas recentes foi exemplar e rigorosamente institucional. Insistir nesse enunciado é não apenas ofensivo para as Forças Armadas e para milhões de brasileiros que nunca apoiaram qualquer regime autoritário (ao contrário de muitos militantes petistas, que apoiam o regime de Maduro e outras ditaduras), como também prova da desonestidade intelectual daqueles que até hoje ganham a vida explorando essa página sombria da nossa história: são os 'gigolôs da ditadura'". [9]
O real perigo, mais que isso, o real dano já sofrido por todo o país, independentemente de ser o cidadão pertencente a coletivos ou minorias, foi o dano da corrupção institucionalizada que se implantou e que precisa a todo custo (não a custo da democracia, mas em sua defesa) ser extirpada para sempre. A corrupção certamente sempre existirá, já que o sonho utópico de paraísos terrestres é o maior pesadelo que se pode imaginar. Mas, é possível, em dadas circunstâncias, agir com um mínimo de racionalidade e coerência, optando por dizer um enorme “não” à corrupção institucionalizada e ter em mira um contínuo combate a esse mal que, se não é passível de absoluto extermínio, é controlável e jamais deve ser, isso sim, objeto de condescendência ou omissão.
Não é admissível a adoção da chamada “Teoria da Graxa sobre rodas” (“Grease the wheels theory”), que sustenta que alguns atos de corrupção devem ser tolerados, a fim de superar a pesada engrenagem burocrática do Estado, eis que isso geraria maior liberdade ao setor privado e ensejaria crescimento econômico. Ora, se há empecilhos estatais ao desenvolvimento, o problema está nesses empecilhos, não no Princípio da Moralidade Pública e da Probidade Administrativa. Sem a menor dúvida, há que ter como norte a teoria oposta, qual seja, a “Teoria da Bola de Neve” ou “Teoria das Rodas Lixadas” (“Sand the wheels theory” ), segundo a qual a permissividade com a corrupção gera uma terrível crise institucional, insegurança e consequente catástrofe econômica, tal como se viu, na prática, no Brasil. O chamado “Governo da Cleptocracia”, bem ilustrado pela figura do denominado “Estado Vampiro”, que aparenta legalidade, mas é, na verdade, dirigido por ladrões, converte o “Estado Democrático de Direito” em um “Estado Cleptocrático de Direito”. Os recursos públicos apenas simbolicamente seriam dirigidos ao bem comum. Na realidade servem para perpetuar grupos no poder e para enriquecer privilegiados “amigos do rei”, enquanto o cidadão é marginalizado, seja ele pertencente a uma chamada “minoria” ou não. [10] O “ser humano” (e é só isso que importa) é violentado em sua dignidade pela corrupção da política, por sua perversão em termos éticos.
Não há, portanto, falar em perda da humanidade por não reconhecimento de um “medo real” que se baseia em perigos fantásticos. Não exsurge das gerações de Direitos Humanos Fundamentais o pretendido respeito inalienável ao “Direito à Histeria”. No máximo, pode-se abrir espaço para um sentimento de piedade e compaixão pelas pessoas que estejam realmente nessa situação delicada sob o prisma psicológico.
REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. O Alienista e O Espelho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996.
BLOCK, Fred L. The Vampire State. New York: New Press, 1996.
CAMPIDELLI, Cristiano. Teoria da Graxa sobre rodas, Teoria do Estado Vampiro e Teoria da Exceção de Romeu e Julieta. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 12.10.2018.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005.
FONTOVA, Humberto. Fidel, o tirano mais amado do mundo. Trad. Rodrigo Simonsen. São Paulo: Leya, 2012.
__________. O Verdadeiro Che Guevara e os idiotas úteis que o idolatram. Trad. Érico Nogueira. São Paulo: É Realizações, 2014.
FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Trad. Walter O. Schlupp. 24ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
GOMES, Luiz Flávio. O jogo sujo da corrupção: pela implosão do sistema político-empresarial perverso. Em favor da Lava Jato, dentro da lei, e pela reconstrução do Brasil. Bauru: Astral Cultural, 2017.
LOBACZEWSKI, Andrew. Ponerologia: Psicopatas no Poder. Trad. Adelice Godoy. Campinas: Vide Editorial, 2014.
ROSSITER, Lyle H. A mente esquerdista – as causas psicológicas da loucura política. Trad. Flávio Quintela. Campinas: Vide Editorial, 2016.
SILVA, Deonísio da. De onde vêm as palavras. 14ª. ed. São Paulo: A Girafa, 2004.
TRIGO, Luciano. Guerra de Narrativas: a crise política e a luta pelo controle do imaginário. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2018.
[1] SILVA, Deonísio da. De onde vêm as palavras. 14ª. ed. São Paulo: A Girafa, 2004, p. 584.
[2] LOBACZEWSKI, Andrew. Ponerologia: Psicopatas no Poder. Trad. Adelice Godoy. Campinas: Vide Editorial, 2014, p. 152.
[3] Op. Cit., p. 154.
[4] ASSIS, Machado de. O Alienista e O Espelho. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p. 7 – 94.
[5] CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch 2ª. ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 17.
[6] FRANKL, Viktor E. Em Busca de Sentido. Trad. Walter O. Schlupp. 24ª. ed. Petrópolis: Vozes, 1991, “passim”.
[7] ROSSITER, Lyle H. A mente esquerdista – as causas psicológicas da loucura política. Trad. Flávio Quintela. Campinas: Vide Editorial, 2016, p. 49.
[8] Cf. FONTOVA, Humberto. Fidel, o tirano mais amado do mundo. Trad. Rodrigo Simonsen. São Paulo: Leya, 2012, “passim”. IDEM. O Verdadeiro Che Guevara e os idiotas úteis que o idolatram. Trad. Érico Nogueira. São Paulo: É Realizações, 2014, “passim”.
[9] TRIGO, Luciano. Guerra de Narrativas: a crise política e a luta pelo controle do imaginário. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2018, p. 222.
[10] Cf. BLOCK, Fred L. The Vampire State. New York: New Press, 1996, “passim”. Também: CAMPIDELLI, Cristiano. Teoria da Graxa sobre rodas, Teoria do Estado Vampiro e Teoria da Exceção de Romeu e Julieta. Disponível em www.jusbrasil.com.br , acesso em 12.10.2018. E ainda: GOMES, Luiz Flávio. O jogo sujo da corrupção: pela implosão do sistema político-empresarial perverso. Em favor da Lava Jato, dentro da lei, e pela reconstrução do Brasil. Bauru: Astral Cultural, 2017, “passim”.