O mito do devido processo penal substancial.

16/10/2018 às 22:26
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Essa é a história de Heleno, um advogado criminalista e professor de Processo Penal que defendia a coexistência da defesa criminal com o movimento Lei e Ordem, fruto de Politica Criminal instaurada a partir do ano de 2019.

Era janeiro de 2021 quando João, um jovem de 25 anos, acadêmico de Direito, foi preso em flagrante (presumido) pelo crime de homicídio simples. Assim que preso, Heleno foi chamado.

Em razão das mudanças perpetradas na política criminal a partir do ano de 2019, Heleno acompanhou o interrogatório de João, sem poder lhe garantir nada além de sua presença a fim de dar um alento formal.

Antes de iniciado o interrogatório João questionou Heleno o que iria ocorrer com ele. As várias perguntas seguidas e descompassadas deixaram Heleno um pouco constrangido ao final:

-Dr., o que vai acontecer comigo?

-Você será ouvido e..

-Depois serei solto?

-Não, infelizmente não. O procedimento é ...

-Mesmo que tenha praticado o crime em legitima defesa?

-Sim, pois a prova de sua inocência ....

-Vou ficar preso então?

-Sim, era o que eu tentava lhe dizer. O lema agora é uma vez preso, fique preso.

-Então qual é o seu papel aqui Dr? Para garantia de que?

-Para a garantia de que seus direitos sejam respeitados durante a investigação e processo.

-Quais direitos, Dr? Não tenho como pagar fiança? Não irei conversar com o juiz?

Após uma grande pausa e um silêncio perturbador Heleno prossegue em sua explanação tentando mostrar a João quais seriam suas garantias e direitos processuais.

-Então, agora será interrogado depois enviado à Casa de Prisão Provisória. Não existe mais liberdade provisória e também não há mais essa conversa com o juiz; a audiência de custódia.

-Quanto tempo ficarei por lá?

-Não dá para saber. É imprevisível. O Judiciário é muito lento.

Interrompendo a conversa João foi chamado para ser interrogado. Após o interrogatório João foi encaminhado para Casa de Prisão Provisória.

Passados alguns bons meses João foi denunciado e o procedimento para a apuração do crime foi iniciado.

No momento da apresentação da defesa, Heleno requereu que fossem requisitadas as imagens de segurança do local do crime para o fim de demonstrar a escusa de legítima defesa por parte de João, além de arrolar as testemunhas necessárias.

Esse pedido foi negado pelo Juiz sob o argumento de que a requisição das imagens causaria um atraso injustificado no processo. Em razão disso, Heleno impetrou uma ordem de habeas corpus com o intuito de serem efetivadas a João suas garantias processuais, entre as quais, a ampla defesa.

Em nova visita a João na cadeia Heleno tentou explicar o que foi pedido no Habeas Corpus.

- Que noticia boa, Dr. Então assim que o Tribunal receber pode ser que eu fique livre ?

-Não. O Habeas Corpus foi impetrado somente para possibilitar a requisição das imagens das câmaras de segurança para poder provar que você agiu em legítima defesa. A liberdade nesse momento não existe mais João.

-Por qual motivo, Dr?

-Porque desde o ano de 2019, com a nova politica criminal instituída não cabe mais liberdade provisória, nem mesmo audiência de custódia. Assim, toda pessoa presa em flagrante deve permanecer presa em flagrante até o final do processo; até que seja absolvido ou condenado. A não ser que a prisão tenha sido ilegal, que não foi o seu caso.

João, quase que resignado com a explicação de Heleno, continuou a perguntar:

-Esse Habeas Corpus demora para ser julgado? Porque se as imagens forem obtidas consigo demonstrar logo a minha inocência e serei absolvido.

-Depende João. Desde a aprovação do Projeto de Lei nº 2807/2015 nenhuma ordem de Habeas Corpus pode ser concedida de oficio, nem mesmo por meio de liminar. Isso significa que seu caso somente será julgado quando for pautado pelo Colegiado. Pode demorar.....

-Enquanto isso fico preso?

-Sim. Mais uma vez vou te explicar: A liberdade provisória não é mais possível....

-Dr, estou com uma dúvida. Enquanto esse Habeas Corpus não é julgado o meu processo fica parado?

-Não. Ele continua correndo.

-Então eu posso ser processado e inclusive condenado?

-Teoricamente pode. Mas se Deus quiser as nossas testemunhas demonstrarão a legítima defesa e conseguiremos absolver você.

-Quais testemunhas, Dr? Estava numa rua à noite, somente eu e minha mulher e veio um cara; que tenho certeza que iria me assaltar. Não tive outra reação: Atirei para matar sim. Engraçado esse Estado. Me deu a arma e agora me prende....

Depois de um breve silêncio João disparou:

-Dr, já ouviu falar na expressão “pego para Cristo”?

-Já sim. O que isso tem a ver com seu caso? Você se acha injustiçado?

-De certo modo sim. Matei uma pessoa em legitima defesa e, enquanto meu caso não é julgado já cumpro pena como se já tivesse sido condenado. Há quase um ano fui preso e o Estado não tem previsão de me julgar. Enquanto isso fico preso em local desumano sem que o próprio Estado ateste minha culpa. Entendo que é melhor um culpado solto do que um inocente preso...

-Mas se você for condenado esse tempo de prisão poderá ser diminuído de sua pena...Os tempos são outros. Para a política criminal atual, alguns sacrifícios devem ser realizados para se combater a corrupção; relativizou-se o princípio da não culpabilidade.....

-É aquele ditado não é Dr? Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos.....Mas Dr, e se eu for absolvido? O que o Estado irá fazer para me devolver esse tempo que fui privado de minha liberdade? Privado de minha convivência familiar e social?

Heleno não respondeu. Despediu-se de João com um breve aceno e disse: Dará tudo certo.

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Com a chegada de 2023 e o renovar de mais um novo ano de encarceramento João recebe a notícia de sua pronúncia pelo próprio Heleno.

-Fui intimado hoje da sua pronúncia. Vamos recorrer e dará certo.

-O Habeas Corpus não foi julgado ainda?

-Não, ainda não foi pautado.

-Engraçado, fui pronunciado sem sequer as provas de minha inocência terem sido requisitadas e periciadas. Tem como reverter isso, Dr?

-Podemos recorrer da pronúncia e esperar pelo julgamento do Habeas Corpus...

-Nulidade, Dr?

-Com relação às nulidades desde a aprovação do Projeto de Lei nº 3916/2015 nenhuma prova ilícita será considerada como tal se o agente tiver obtido a prova por boa fé ou por erro escusável....

-Como assim?

- Se o juiz entender que a prova foi obtida por boa fé, mesmo que ilícita, ela poderá ser utilizada no processo...

-Mesmo nos casos de omissão à ampla defesa e ao contraditório?

-Sim. Por este projeto os atos processuais nulos podem ser renovados ou retificados...

-Entendi. Análise subjetiva.......Por falar em análise subjetiva.. Qual a real função do advogado criminalista? Qual a sua função nesta ação Dr? Esperar a decisão do Estado Juiz?

-Não só. Podemos recorrer dessas decisões e sentenças. Mas, desde a aprovação do Projeto de Lei nº 2809/2015, o Tribunal com ou sem a provocação das partes pode considerar que o Recurso é protelatório e certificar o trânsito em julgado da decisão....

-Trânsito em julgado material......Entendi......

Mais uma vez, um silêncio ensurdecedor cessa a conversa entre os dois que se entreolhavam pelo parlatório.

-Qual será a medida para se considerar protelatório um Recurso? O que não está de acordo com a decisão do Tribunal? Esse entendimento não paira pelo subjetivismo do que é protelatório?

- Pois é. Inaugurou-se um novo Direito. Uma nova mentalidade jurídica.

-Ok Dr. Fico pensando que o exercício da advocacia criminal vive um paradoxo: Deve ser bom para o profissional que coaduna com essa nova politica. Não dá muito trabalho, não é? Basta seguir o devido processo formal.....Por outro lado, para quem não coaduna e preza pelo devido processo substancial deve sofrer todos os dias......Tchau Dr! Vai dar tudo certo. Pode ir tranquilo. Não recorra. Vamos ao júri. Estou pronto para receber o veredito popular.

Marcado o júri e todos a postos a espera de João, chega a notícia com um bilhete: João foi encontrado morto na cela. Havia se enforcado. Mas havia um bilhete dirigido a Heleno. O bilhete dizia assim:

“Prezado Heleno. Nos últimos encontros que tivemos reparei que você não se sentia confortável com as minhas perguntas e inquietações e vi que você não encontrava respostas para elas. Imagino o seu desconforto diário de ver seu exercício profissional se reduzir a uma mera atuação formal. Deve ser muito triste mesmo. A cada real ganho de seus honorários por uma atuação pífia e formal deve trazer um infortúnio no descortinar de uma falácia profissional que se coaduna com o entendimento de que bandido bom e bandido morto. Facilitei seu trabalho. Ah! Deu certo para você. Fique com Deus”.

Heleno aposentou-se neste dia.

Sobre a autora
Aline Seabra Toschi

Doutora em Direito pelo Uniceub-DF, Mestre em Ciências Penais pela UFG. Professora de Processo Penal e coordenadora do estágio do Curso de Direito do Centro Universitário de Anápolis-GO.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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