NOTAS SOBRE A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL DO CONTRATO NO COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA DE IMÓVEL

17/10/2018 às 00:00

Resumo:


  • A teoria do adimplemento substancial do contrato vem ganhando força no direito brasileiro, mesmo sem previsão expressa no Código Civil de 2002.

  • Essa teoria preconiza a impossibilidade de desfazimento do contrato nos casos em que o resultado alcançado pelo devedor é muito próximo do desejado, preservando a economia do negócio.

  • No contexto dos compromissos de compra e venda de imóveis, a aplicação da teoria do adimplemento substancial deve ser feita com prudência, observando os requisitos específicos da legislação pertinente e as condutas das partes envolvidas.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Análise do cabimento da teoria da "substantial performace" nos contratos de compromisso de compra e venda de imóveis

A teoria do adimplemento substancial do contrato, proveniente do direito inglês[1], vem ganhando força nos últimos tempos no direito brasileiro, mesmo sem ter sido prevista expressamente pelo Código Civil de 2002 (Lei nº 10.406/02). Este diploma legal, como se sabe, promoveu profundas alterações no campo do direito obrigacional, mediante a adoção de nova principiologia, a relativização da autonomia da vontade e a incorporação de cláusulas gerais e de normas impregnadas de conteúdo ético. O direito obrigacional, e o próprio direito privado, como um todo, passam por verdadeira releitura, que resulta na reinterpretação de antigos institutos à luz de princípios constitucionais dotados de eficácia normativa, com foco na realização plena da pessoa humana, cuja dignidade foi erigida, pela Constituição Federal de 1988, à condição de fundamento da República Federativa do Brasil (art. 1º, III).

É nesse contexto que se insere a teoria do adimplemento substancial, denominada, na sua origem, substantial performance. Normalmente relacionada à boa-fé objetiva, mas também à função social do contrato e ao abuso de direito, e por vezes ainda ao enriquecimento sem causa, preconiza a teoria, em poucas palavras, a impossibilidade de desfazimento do contrato, pela via da resolução, nos casos em que, embora a prestação não tenha sido cumprida de forma perfeita pelo devedor, o contrato, ainda assim, alcança resultado muito próximo ao desejado, e tem sua economia preservada. O defeito na prestação é de pequena monta, a ponto de se considerar exagerada, ou desproporcional, a extinção do negócio jurídico.

A teoria do adimplemento substancial não propõe a aniquilação da chamada força obrigatória do contrato. Esta, representada pelo conhecido adágio pacta sunt servanda, continua sendo sua nota essencial, porém é relativizada no caso, a bem da preservação do pacto e em nome da segurança jurídica, dada a importância daquele para os contratantes e para o meio social. Ao credor, então, impedido de fazer uso do direito à resolução por inadimplemento, remanesce o direito de exigir a parcela faltante da prestação por outros meios, menos gravosos para o devedor.

Tem a teoria do adimplemento substancial, ainda, relação estreita com visão contemporânea do instituto jurídico da obrigação, como processo. De fato, a obrigação, hodiernamente, não mais é considerada um elemento estático, um vínculo transitório unindo credor e devedor, partes antagônicas. É, ao contrário, reconhecida como um processo, uma sucessão ordenada de atos tendentes a um determinado fim, dotada de caráter dinâmico e fundada na colaboração mútua. No curso dela os contratantes assumem posições distintas, tendo cada qual, em relação ao outro, deveres diversos dos principais, denominados laterais ou anexos[2]. Esses deveres se relacionam às condutas que os contratantes deverão manter durante todo o enlace, desde a celebração e até depois da extinção do contrato, verificada com cumprimento da obrigação principal.

A compreensão da teoria do adimplemento substancial demanda a análise do instituto do inadimplemento. Este último, de acordo com usual classificação doutrinária, pode ser absoluto ou relativo, sendo o critério distintivo a utilidade do cumprimento defeituoso ou tardio da obrigação para o credor. Caso não exista mais essa utilidade, o inadimplemento será absoluto. É o que ocorre, por exemplo, quando se adquire determinado produto alimentício para ser servido em um evento social. Se a obrigação não for cumprida no prazo assinalado, a utilidade da prestação desaparecerá, pois o evento já terá se realizado sem ela. Caso, contudo, a prestação ainda seja passível de ser cumprida pelo devedor, com utilidade para credor, o inadimplemento será apenas relativo, também chamado de mora. Nessa última hipótese subsistirá, pelo menos em tese, o interesse do credor em receber a prestação, obviamente acrescida dos encargos legais, tal como ocorre nas obrigações de natureza pecuniária.

Como explica, didaticamente, Silvio de Salvo Venosa, “o fato de a obrigação ainda poder ser cumprida, ainda que a destempo (ou no lugar e pela forma não convencionada), é critério que se aferirá em cada caso concreto. Cabe ao Juiz, com a consideração de homem ponderado, tendo como orientação o interesse social e a boa-fé objetiva como veremos, colocar-se na posição do credor: se o cumprimento da obrigação ainda for útil para o credor, o devedor estará em mora (haverá inadimplemento relativo)”[3]. De se destacar ainda que, embora tradicionalmente o instituto da mora esteja ligado à ideia de atraso na prestação, à inobservância do marco temporal previamente estipulado, não é só nessa hipótese que ela se configura, de acordo com a disciplina do Código Civil de 2002. Nos termos do art. 394, a prestação cumprida sem observância do modo ou do lugar devidos igualmente enseja a sua caracterização.

A teoria do adimplemento substancial opera no campo do inadimplemento relativo. O inadimplemento absoluto afasta a sua incidência. No inadimplemento relativo, como visto, o devedor cumpre parte de sua obrigação, mas não observa, estritamente, os termos do contrato. E ainda é possível a integralização, por ser útil ao credor. Entretanto, apesar de tal circunstância – o descumprimento parcial – permitir, a priori, a resolução do negócio jurídico, como uma das opções conferidas pela lei ao credor prejudicado, juntamente com a execução forçada da obrigação (art. 475, CC), a presença de alguns requisitos a obstará.

Assim é que, verificando-se, concretamente, a relevância do cumprimento parcial realizado, muito próximo do cumprimento integral, o atingimento das finalidades contratuais, com razoável satisfação das expectativas dos contratantes, e a diminuta importância da parcela inadimplida da obrigação, além da lisura das condutas adotadas pelo devedor durante a execução, o contrato, por influxo da teoria da substantial performance, deverá ser preservado. Tal solução será a mais consentânea com os interesses envolvidos, notadamente com o interesse social na manutenção do negócio jurídico.

Pode-se afirmar, pois, em outras palavras, que “o adimplemento substancial consiste em evitar a desproporção de meios para se exigir uma contraprestação, evitando-se os malefícios de uma resolução quando, do quadro geral da obrigação, se pode divisar um adimplemento suficiente a impedir a ruptura do pacto, entendendo tal adimplemento como se fosse integral para a manutenção do status quo contratual, podendo a parte exigir apenas o restante, sem sacrificar o todo”[4].

No âmbito dos compromissos de compra e venda de imóveis, a teoria do adimplemento substancial tem sido invocada, com certa frequência, em caráter defensivo, no bojo de ações resolutórias. O promitente comprador inadimplente, acionado, afirma o cumprimento substancial na tentativa de impedir a resolução, sustentando que já realizou o pagamento de boa parte das parcelas do preço, que a execução contratual já se encontra em estágio avançado e que a relação jurídica está estabilizada. Costuma-se destacar, também, nesses casos, a suposta injustiça da perda da posse do imóvel, consectário natural da resolução, bem como o prejuízo causado a todos os envolvidos com a adoção de tais medidas, mais severas do que a da simples cobrança. Pondera-se, enfim, que o ordenamento vigente disponibiliza, ao promitente vendedor, instrumentos eficazes para a satisfação de seu crédito remanescente.

Contudo, ainda que respeitáveis tais argumentos, há que se ter em mente que a aplicação da teoria do adimplemento substancial em casos desse jaez deve ser feita sempre com prudência, após detida análise da situação concreta. Isso porque o compromisso de compra e venda é negócio jurídico complexo e apresenta peculiaridades que o apartam dos demais contratos preliminares, sendo significativa a sua importância para a atividade econômica nos dias de hoje. Nesse contexto, a aplicação irrestrita da teoria da poderia, em última análise, subverter o próprio regime da resolução do compromisso, disciplinado por leis próprias.

Conforme já destacado, o adimplemento substancial atua na seara do inadimplemento relativo, sendo um de seus requisitos a utilidade da prestação tardia para o credor. Se a prestação não for mais útil, o caso será de inadimplemento absoluto. É certo, no entanto, que os compromissos de compra e venda são regulados por normas específicas, quer tenham por objeto imóveis loteados, quer imóveis não loteados (Decreto-Lei nº 58/37; Lei nº 6.766/79; Decreto nº 745/69), ao passo que igualmente a constituição em mora do devedor tem contornos próprios. De fato, diferentemente do que determina a regra geral do Código Civil de 2002 (art. 397), que prevê a chamada mora ex re, decorrente do simples decurso do tempo, a mora, nos compromissos de compra e venda, é ex persona, exigindo a notificação do devedor, com a concessão de prazo para a purgação ou emenda.

Não é suficiente, portanto, o mero vencimento da obrigação positiva e líquida para que o devedor, no compromisso de compra e venda, incorra em mora. Ainda que tenha pleno conhecimento de seu atraso, terá que ser notificado. E caso se verifique, ao cabo do prazo concedido pela notificação, de 15 (quinze) ou 30 (trinta) dias, conforme a natureza do imóvel transacionado, que não realizou o pagamento e nem tampouco justificou a falta, essa mora poderá ser considerada inadimplemento absoluto. É o que explica Francisco Eduardo Loureiro[5], com apoio em Araken de Assis: a notificação pode servir para fixar o exato momento a partir do qual o credor não terá mais interesse no recebimento da prestação, abrindo-se o caminho para a resolução por inadimplemento.

Vale conferir, sobre esse tema, a oportuna lição de Valter Farid Antonio Junior: “Ainda que haja, no contrato de compromisso de compra e venda, a determinação do tempo, modo e local para o cumprimento da obrigação de pagar o preço nele avençado, a prévia notificação do compromissário comprador em mora é indispensável, sem o que não se aprecia o mérito da ação de resolução contratual. Trata-se de hipótese de mora ex persona e que demanda prévia notificação do devedor para que, no prazo nela assinalado, quite o saldo devedor acrescido os encargos legais e contatuais decorrentes da mora, sob pena de ser o contrato resolvido judicialmente. A exigência decorre das normas de ordem pública, previstas em leis especiais, que regem o contrato de compromisso de compra e venda. (...). Feita a notificação o cumprimento das obrigações não satisfeitas pelo adquirente ainda se mostra viável, desde que o pagamento seja feito com o acréscimo dos encargos da mora e dentro do prazo da notificação, hipótese em que o contrato prosseguirá com normal execução. Todavia, se o compromissário comprado permanecer inerte ou não der cumprimento integral às obrigações atrasadas, a mora converter-se-á em inadimplemento, que, por sua vez, autoriza o compromitente vendedor a se socorrer do Poder Judiciário para a resolução do contrato”[6].

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Como se percebe, vigoram, no direito pátrio, dispositivos legais específicos para a constituição em mora do promitente comprador. Aliás, é certo que, não observando o promitente vendedor tais procedimentos antes de ingressar com a ação de resolução contratual, quer quanto à realização da notificação prévia, quer quanto ao prazo, sua pretensão nem mesmo será apreciada, por ausência de interesse de agir, sendo praticamente pacífica a orientação jurisprudencial nesse sentido[7].

Por outro lado, de acordo com entendimento de significativa parte da doutrina, não é suficiente, para a aplicação da teoria da substantial performance, a análise quantitativa do comprimento da obrigação pelo devedor. É imprescindível que, paralelamente, sejam analisadas as condutas do devedor no curso da execução contratual, em especial quanto à satisfação dos deveres laterais ou anexos. Em outros termos: há que se perquirir se, mesmo não tendo cumprido a obrigação principal na íntegra, o devedor se portou, durante a execução do negócio, consoante os ditames de boa-fé objetiva. E nesta análise deverão ser levados em conta o tempo de utilização do imóvel sem o pagamento de qualquer valor a titulo de contraprestação, o cumprimento de outras obrigações pecuniárias relacionadas ao imóvel transacionado, como as tributárias e as condominiais, e a circunstância de não ter o devedor, mesmo tendo condições financeiras para tal, se valido do prazo concedido quando da notificação, para a purgação da mora, nem tampouco ter contatado o credor para tratativas amigáveis visando solucionar a pendência.

O princípio da boa-fé objetiva impõe tal exame, que se realizará por meio do cotejo entre a conduta esperada de um contratante idôneo e ético e a adotada no caso concreto pelo inadimplente que vem a invocar a substantial performance. De nada adiantará a singela afirmação de pagamento de parte importante do preço, 75%, 80% ou mesmo 90% se, concretamente, o promitente comprador tiver adotado condutas incompatíveis com os deveres de colaboração, de probidade e de boa-fé.

Em suma, portanto, pode-se dizer que, conquanto se trate, a teoria da substantial performance, de construção doutrinária e jurisprudencial relevante, de inegável utilidade como mecanismo de preservação dos contratos em determinadas situações, a sua aplicação, nos compromissos de compra e venda de imóveis, deverá ser feita com bastante prudência. A verificação de todos os aspectos do caso concreto será sempre necessária, com enfoque especial nas condutas do contratante inadimplente, evitando-se, desta maneira, distorções, que possam resultar no emprego da teoria como escudo para devedores contumazes ou como obstáculo indevido ao exercício de direitos reconhecidos por parte do promitente vendedor. Como adverte, com acuidade, Flávio Tartuce, “a evidenciar o grande desafio da ideia de cumprimento relevante, deve-se analisá-lo casuisticamente, tendo em vista a finalidade econômico-social do contrato e dos negócios envolvidos”[8].

 

 

Referências

 

ANTONIO JÚNIOR, Valter Farid. Compromisso de Compra e Venda. São Paulo: Atlas, 2009

LOUREIRO, Francisco Eduardo. Responsabilidade Civil no Compromisso de Compra e Venda. Artigo em Responsabilidade civil: responsabilidade civil e sua repercussão nos tribunais / Regina Beatriz Tavares da Silva, coordenadora. São Paulo: Saraiva, 2008

PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves. A teoria do Adimplemento Substancial. DVD Magister. Ed 77. Dez-Jan/2018

TARTUCE, Flávio. A teoria do adimplemento substancial na doutrina e na jurisprudência. Disponível em <<https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/180182132/a-teoria-do-adimplemento-substancial-na-doutrina-e-na-jurisprudencia>>

VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos. 6 ed., atual., São Paulo: Atlas, 2006

 


[1] A doutrina costuma apontar o julgamento de litígio ocorrido na Inglaterra, no século XVIII, como sendo o marco inicial da teoria da substantial performance. Uma das partes envolvidas no caso teria adquirido de outra terras com plantações, juntamente com escravos, nas Antilhas. O adquirente, tempos depois, teria atrasado os pagamentos e, cobrado judicialmente, invocado em defesa o não cumprimento integral da obrigação pelo alienante, já que não existiriam mais escravos nas terras. No julgamento, contudo, teria prevalecido a obrigatoriedade do pagamento, pela pequena relevância da parte inadimplida da obrigação.

[2] Os chamados deveres laterais ou anexos têm fundamento no princípio da boa-fé objetiva (at. 422, CC), vinculando as partes contratantes com a mesma eficácia que as obrigações principais do contrato. Os deveres impõem aos contratantes, no curso da execução do ajuste, uma postura leal e colaborativa, na busca do atingimento das finalidades do negócio. Sua inobservância, por outro lado, denominada violação positiva do contrato, pode igualmente dar ensejo à resolução do ajuste.

[3] VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: teoria geral das obrigações e teoria geral dos contratos, p. 303

[4] PARIZ, Ângelo Aurélio Gonçalves, A teoria do Adimplemento Substancial

[5] LOUREIRO, Francisco Eduardo. Responsabilidade Civil no Compromisso de Compra e Venda, p. 191

[6] ANTONIO JUNIOR, Valter Farid. Compromisso de Compra e Venda, p. 47

[7] Dentre outros: TJ-GO; AC 0410448-69.2013.8.09.0006; Anápolis; 6ª Câmara Cível; Rel. Des. Wilson Safatle Faiad; DJGO 16/02/2017; TJ-PR; ApCiv 1488422-1; Foz do Iguaçu; 12ª Câmara Cível; Rel. Luciano Carrasco Falavinha Souza; Julg. 01/11/2017; DJPR 29/11/2017; TJ-SP; APL 0001010-37.2015.8.26.0040; Ac. 10905761; Américo Brasiliense; 9ª Câmara de Direito Privado; Rel. Des. Galdino Toledo Júnior; Julg. 24/10/2017; DJESP 28/11/2017.

[8] TARTUCE, Flávio. A teoria do adimplemento substancial na doutrina e na jurisprudência

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