Como saber se uma lei é igualitária?

O método de Celso Antônio Bandeira de Mello no livro "O conteúdo jurídico do princípio da igualdade".

23/10/2018 às 09:33

Resumo:


  • A ideia de igualdade na teoria política remonta às concepções clássicas de Estado.

  • Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau discutem a igualdade sob diferentes perspectivas.

  • Celso Antônio Bandeira de Mello propõe critérios para identificar o respeito à igualdade na legislação contemporânea.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Neste artigo daremos formas práticas de identificar se uma determinada legislação atende ao Princípio da Igualdade, permitindo aos operadores do Direito a construção de argumentos mais sólidos nesse campo.

1. PERSPECTIVA HISTÓRICA

A ideia de igualdade aparece desde as primeiras concepções e teorizações políticas como um norte a ser seguido na criação ou consolidação de um Estado. Acreditamos que é perfeitamente comum o pensamento de que, havendo um ser externo que exerce controle sobre o povo, aqueles que são controlados tendem a criar regras para restringir algumas das áreas de domínio daquele ente. Em outras palavras, é possível e esperável que cidadãos criem espaços de liberdade em relação ao domínio estatal. A igualdade ampla aplicada às teorias de Estado gerou diversas concepções clássicas.

Thomas Hobbes (2012, p. 212-215), ao discorrer sobre as leis civis, entende que todos os homens membros de um Estado estão igualmente subordinados à lei, de modo que o Estado impõe a todos os súditos as suas regras, fora das quais não há que se falar em justiça. Tais leis são criadas para limitar as liberdades individuais, sem as quais não seria possível haver paz.

Jean-Jacques Rousseau (2012, p. 43) vislumbra dois tipos de desigualdade entre os homens: a natural ou física, estabelecida pela natureza, e a moral ou política, que depende de uma autorização e consentimento dos homens. Investigando o nascimento da desigualdade no âmbito da comunidade estatal, o filósofo escreve que as desigualdades naturais praticamente possuem influência quase nula, de forma que são as desigualdades criadas politicamente que de fato resultam em significativa interferência, por exemplo, a ideia de propriedade (p. 78).

Logo, observamos de forma geral (sem nos prendermos às peculiaridades das concepções clássicas de Direito Natural e Positivo) que a igualdade prática depende do tratamento dado pelo Estado para os seus súditos, existindo de forma mais ou menos concreta a depender das escolhas políticas.


2. CRITÉRIOS PARA IDENTIFICAR O (DES) RESPEITO À IGUALDADE

Contemporaneamente, Celso Antônio Bandeira de Mello (1993, p. 11) investiga quais critérios são legítimos para autorizar um tratamento jurídico diverso para pessoas e situações em grupos apartados. O autor constrói a ideia de que somente são permitidas distinções naqueles casos em que haja uma conexão lógica entre a peculiaridade do objeto e a desigualdade do tratamento, sem colidir com os interesses das Constituição (MELLO, 1993, p. 17).

Por essa razão concordamos com o pensamento de que “a lei deve ser uma e a mesma para todos; qualquer especialidade ou prerrogativa que não for fundada só e unicamente em uma razão muito valiosa do bem público será uma injustiça e poderá ser uma tirania” (BUENO apud MELLO, 1993, p. 18).

Bandeira de Mello sugere, então, três critérios para identificar se uma lei é ou não igualitária:

1. o elemento tomado como fator de desigualação;

2. a correlação lógica abstrata entre o critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diferenciado;

3. e a consonância desta correlação lógica com os interesses constitucionais e juridicizados.

Caso 1. Para ilustrar, vejamos o exemplo de uma norma que reserva vagas femininas em um contingente militar. O elemento de desigualação é o sexo biológico daqueles indivíduos; com base nesse critério foram criadas vagas especiais como um tratamento jurídico diferenciado; tratamento esse que se justifica, pois está em consonância com interesses constitucionais como a busca pela inserção da mulher em locais ocupados tradicionalmente por homens e a inclusão dessas mulheres no mercado de trabalho.

Caso 2. Outro exemplo é o da seleção de pessoas negras para participar de um estudo científico que objetiva analisar seu desempenho esportivo. O elemento de desigualação é a etnia; com base nesse critério foram selecionados exclusivamente esses indivíduos como um tratamento jurídico diferenciado; tratamento esse que também se justifica, pois está em consonância com interesses constitucionais como o desenvolvimento científico e o progresso do conhecimento.

Caso 3. Entretanto, outras situações podem ser afastadas com fundamento nesse mesmo método, como a proibição de homossexuais de ingressar em prédios públicos. Enquanto o elemento de desigualação é a orientação sexual, esse critério não possui relação lógica com o tratamento jurídico diferenciado, muito menos com os interesses constitucionais de tratamento igualitário, de respeito às diferenças e de eliminação de tratamentos preconceituosos.

Com base nesse método é possível opinar racionalmente sobre o tratamento igualitário ou não exercido por uma lei.


3. OPINIÃO CRÍTICA SOBRE O MÉTODO

Entretanto, apesar de útil a uma primeira vista, acreditamos pessoalmente que a adoção do método de Mello (1993) abre um grande espaço para a discricionariedade do intérprete, especialmente na sua terceira etapa (consonância com os interesses constitucionais).

Aproveitando o exemplo já dado da reserva de vagas em cargos públicos para mulheres, duas opiniões são possíveis: podemos aprovar a discriminação da norma com base nos artigos 3º, inciso IV, e 5º, inciso I, da Constituição Federal de 1988, que promovem o bem e a igualdade de todos sem preconceitos de sexo; todavia, da mesma forma é perfeitamente aceitável a opinião de que a regra cria um desequilíbrio exacerbado no acesso ao trabalho e um desrespeito à impessoalidade no acesso aos cargos públicos, protegido pelos artigos 5º, inciso XIII, e 37, caput, da Constituição Federal de 1988.

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A mesma dualidade pode acontecer quando nos dirigimos ao campo tributário. O artigo 150, inciso II, da Constituição Federal de 1988 impede o tratamento tributário diferenciado para aqueles contribuintes que estejam em situação equivalente, de modo que fecha quaisquer espaços porventura existentes para criação de privilégios em favor de determinadas pessoas naturais ou jurídicas. Portanto, pode-se dizer que qualquer critério de discriminação estabelecido em lei cairia por terra na terceira etapa do teste de Mello (1993), pois iria de encontro ao interesse constitucional de tratar igualitariamente os contribuintes de tributo.

Apoiando uma visão contrária, muitos veem exatamente na tributação um mecanismo de promoção de justiça social e distribuição de recursos e qualidade de vida, sugerindo uma atuação pró-ativa nesse campo para, a partir das desigualdades do seu tratamento, originar uma sociedade mais igualitária e justa (SILVEIRA; PASSOS; GUEDES, 2018).

Respeitadas as distintas opiniões, cremos que a análise efetiva da adequação de um instituto jurídico à isonomia depende de uma busca pelas tendências constitucionais, tentando vislumbrar quais medidas teriam um impacto mais benéfico tomando a sociedade como um todo, ou seja, quais normas gerariam a maior quantidade de bem comum e a menor quantidade de malefícios através de uma análise quase econômica da realidade.


REFERÊNCIAS

HOBBES, Thomas. Leviatã. 2. ed. São Paulo: Martin Claret, 2012.

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. O conteúdo jurídico do princípio da igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Porto Alegre: L&PM, 2012.

SILVEIRA, Fernando; PASSOS, Luana; GUEDES, Dyeggo Rocha. Justiça fiscal no Brasil: a tributação como mecanismo para equidade. In: XXIII Encontro Nacional de Economia Política, 2018, Niterói, RJ. Anais (online). Disponível em: <https://sep.org.br/anais/Trabalhos%20para%20o%20site/Area%203/31.pdf>. Acesso em: 14 out. 2018.

Sobre o autor
Matheus R. F. Lopes

Advogado. Pós-graduando em Direito Tributário e Bacharel em Direito, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Concentra-se nas áreas de Direito Tributário e Empresarial. http://www.duarteealmeida.adv.br/

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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