Sistema de Precedentes Vinculantes
Sistemas jurídicos
Os dois grandes sistemas jurídicos do Ocidente se distinguem pelo modo de operação do Direito: o civil law (da Europa continental) e o common law (da Inglaterra e países por ela colonizados). Convencionalmente, têm sua origem vinculada a eventos históricos marcantes. Assim, o início da formação do “common law” recua à conquista normanda da Inglaterra, em 1066; já o “civil law” está ligado à reintrodução do Código Justiniano (Corpus Juris Civiles) no continente europeu, entre fim do século 11 e início do século12.
No “civil law”, como há uma coletânea jurídica de regência, a inclinação normal é aplicar o texto legal pertinente ao contexto fático do caso julgando. O Código Justiniano era um compêndio de decretos imperiais e doutrinas, acatadas como regras, de respeitados jurisconsultos romanos. Esse corpo de leis e doutrinas eram os textos base de estudo do Direito nas Universidades Européias nascentes a partir do final do séculos XI (Bolonha, Paris, Salamanca, Coimbra).
Sem um compêndio legislado prévio, a técnica de julgar no “Common Law” assumiu outro modo: busca-se a regra costumeira pertinente ao caso, a qual, aplicada, além de solucionar o caso a julgar, convertia-se em norma replicável a casos similares futuros (norma universalizável). Seguido por séculos, esse modo de operar o Direito modelou o “common Law, cujos traços marcantes são: a) tradição jurídica basicamente jurisprudencial, criadora da cultura do “stare decisis” (o respeito às coisas decididas); e b) natureza de fonte de Direito dos precedentes judiciais universalizáveis.
Na Inglaterra pós-invasão normanda ocorreu centralização política, em cuja esteira se criaram os Tribunais do Reino, que, articulados à Chancelaria da Corte, deram origem à edição de “writs” para julgamento de casos subtraídos da jurisdição senhorial. Sem Direito legislado e afastada a jurisdição senhorial, dava-se a aplicação dos costumes gerais do Reino. As compilações desses julgados originaram compêndios como Yearbook (anuários com os casos julgados pelas Cortes e respectivos comentários) e, depois, Law Reports (relatórios de inteiro teor dos casos julgados e anotações sobre as questões relevantes). Não é difícil ver aí a emergência de uma tradição jurídica basicamente jurisprudencial.
Assim, tem-se que o civil law pressupunha e aplicava Direito legislado; no common law, as normas jurídicas advinham das decisões judiciais, que tinham efeitos vinculantes e gerais (integravam o ordenamento jurídico).
Reitere-se que, no “Common Law”, o deslinde de caso litigioso ajuizado se dava à vista de decisão anterior em caso similar (“case law”). Ainda quando a Inglaterra passou a ter Direito legislado, subsistiu essa cultura, que, praticada ao longo de séculos, modelou um modo peculiar de atuação jurisdicional da qual resultou é o sistema de “Common Law”. É natural que, em sua linha evolutiva, tenha havido altos e baixos, avanços e recuos momentâneos. A partir da segunda metade do século 20, a tradição jurídica de “Civil Law” vem percebendo que a cultura do “stare decisis” (respeito às coisas julgadas) bem se presta ao exercício da jurisdição de natureza cocriativa, típica do “Common Law”.
Com a introdução no novo CPC, de tradição de “civil Law”, de um sistema de precedentes, instituto típico da tradição de “common Law”, recomendam-se inúmeras cautelas, dadas as diferentes índoles deles.
Sistema brasileiro de precedentes vinculantes
As diferentes origens dos dois sistemas (um nascido de uma tradição cultural multissecular; e o outro originado de determinação legal) impõem-lhes diferentes fisiologias, razão pela qual seus os conceitos e técnicas de operacionalização não são integralmente transladáveis.
A origem legal, e não costumeira, de nosso do sistema imprime-lhe uma fisiologia própria: funcionamento de acordo com um estatuto legal, que, se completo, claro e coeso, lhe assegurará maior fluidez. Duvida-se que o CPC ostente esses predicados, e essa carência reduz seu potencial.
Seus traços focais são:
a) previsão de um rol de precedentes, constante no art. 927 do CPC;
b) espalhamento de róis de precedentes por todo o corpo do CPC: tutela de evidência, improcedência liminar, provimento/desprovimento de recurso pelo relator, julgamento do caso, cabimento de reclamação, ação rescisória por violação manifesta de norma e rescisória nesse ponto, negação de seguimento a recurso excepcional etc;
c) imprecisão técnica no uso do termo “precedente”, empregado sem rigor.
O rol do art. 927 do CPC é um complicador sério: em torno dele instalaram-se várias controvérsias sobre se: a) é preceito exaustivo ou exemplificativo (não está previsto nele, por exemplo, a decisão, inegavelmente formadora de precedente, de (ir)reconhecimento de repercussão geral – v. art. 1030, I, a , e 988, § 5º, II, do CPC); e b) as decisões nele constantes são precedentes bastando que sejam exaradas nos procedimentos lá previstos e independentemente do padrão de julgamento. Uma coisa é certa: o estatuto legal de nosso sistema, para gozar da adequada fluidez, deve ser completo, claro e coeso – quanto menos dúbio mais isento de controvérsias será. Parece sensato que, em vez de um rol, se delineasse um “padrão de julgamento qualificado” (um selo de autenticidade), cuja observância, por tribunal superior, garanta o “status” de precedente à decisão. Não é compreensível que uma decisão de tribunal superior, qualquer que seja o padrão decisório, forme precedente.
O precedente é aplicado, em qualquer que seja a etapa do processo, sempre que configurada hipótese de sua incidência, seja para estancar o processo, seja para decidir a pretensão. A repetição de róis a cada hipótese de incidência não só é desnecessária como conduz à errônea percepção de que, a cada etapa do processo, muda o grau de eficácia (forte, média e fraca), o que é complicador e desnecessário (precedente tem de ter uma acepção técnica, que, por lógico, dispensa repetição de rol – a menção a precedente ou precedente vinculante já diz a que se refere).
Precedente, enunciado de súmula e jurisprudência são institutos jurídicos distintos, cada um com suas regras de aplicação. Assim, as regras de aplicação de precedente – nucleadas nos incisos V e VI do art. 489, § 1º, do CPC – não podem ser as mesmas para súmula (salvo se preencher a condição de precedente) ou, sobretudo, para jurisprudência. Segundo a letra e a lógica dos preceitos reguladores, na aplicação de precedentes deve o julgador identificar seus fundamentos determinantes e demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; ou demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento. Enunciado de súmula (salvo se precedente) ou jurisprudência não tem fundamentos determinantes, que são o cerne do precedente. Por isso, não faz sentido exigir que, na aplicação de súmula ou jurisprudência, a mesma técnica seja observada. Dificultaria, sem necessidade, a atuação jurisdicional.
É lógica, produtiva e constitucional a formação de precedente advenha de “decisão colegiada compartilhada” do órgão jurisdicional que detenha a última palavra acerca da definição do sentido/alcance da questão jurídica controvertida, segundo “padrão de julgamento qualificado”. Mas não é aconselhável que tribunais locais formem precedentes em relação a temas do Direito federal. Certamente haverá formidável proliferação de precedentes transitórios e uma contribuição nefasta ao descrédito do sistema. Outros meios devem ser estudados e adotados para que os tribunais de segundo grau uniformizem sua jurisprudência e a observem.
Num sistema de precedentes fundado num “padrão de julgamento qualificado”, seus pontos focais são:
- fundamentação “específica e adequada”: analise todos os fundamentos suscitados a favor e contra ao entendimento adotado e retratado na tese jurídica (CPC, art. 948, § 2º: ônus argumentativo diferenciado), cuja edição deve evitar o formato de simples enunciado abstrato (como as atuais súmulas), mas também conter síntese do fundamento compartilhado (CPC, art. 926, § 2º e art. 943, § 1º);
- deliberação colegiada compartilhada: a formação de precedente depende de decisão colegiada compartilha pela maioria dos membros do colegiado: as “razões de decidir” que suportam a tese jurídica devem ser adotadas pela dos votantes (CPC, art. art. 947; art. 985; 1.039, par. único; art. 927, §§ 2º e 4º).
- registro de voto divergente: em se tratando de precedente, importa a providência, porque, em caso de alteração/revogação, o voto divergente assinala a existência de entendimento divergente, que, poderá tornar-se relevante em julgado posterior (diferente da decisão de tribunal de apelação, o de corte superior não se retém ao caso).
Irrecusável que nossos tribunais de cúpula são órgãos de precedentes (e isso avulta das hipóteses de cabimento dos recursos excepcionais – RE e REsp –, restritas que são à uniformização do Direito federal, constitucional ou infraconstitucional). Dessa especificidade resulta que, seguido o “padrão (ou modelo) de julgamento qualificado”, qualquer decisão do STF ou do STJ é apta a formar precedente vinculante. É desarrazoado que um tribunal superior, para definir o sentido/alcance de preceito equívoco, tenha de exarar uma série de julgados, para depois sumular. Basta um pronunciamento só, de quem competente, dentro do padrão, para se ter precedente.
Sobre o tema assim se manifesta Marinoni:
A transformação da função das Cortes Supremas de civil law tem consequências sobre o modelo de julgamento dos recursos e sobre o comportamento esperado dos julgadores. O antigo modelo preocupado com a correção das decisões dos tribunais ordinários considerava o debate entre as teses conflitantes como algo animado especialmente pelo interesse dos litigantes em sustentar as suas respectivas posições. Atualmente, uma vez que a adequada discussão está ligada à função essencialmente pública de definição do sentido do direito, estimula-se o debate para o aprofundamento da deliberação em torno da solução das disputas interpretativas e consequente elaboração do precedente. A intensidade da discussão, que antes dependia do interesse dos litigantes, hoje é fundamental para a legitimação da função da Corte.
O tempo de vigência do atual CPC já permite perceber a persistência do vezo de operar com base em ementas (pede-se com base emendas e decide-se com base em ementa). Sem empenho do juízo, é ilusória a esperança de mudança. Os tribunais superiores, os maiores beneficiários do sistema, continuam a trabalhar como sempre. O só registro de “tese jurídica”, sobretudo à maneira de enunciado abstrato de súmula, não alterará o quadro. Parece lógica a exigência de consignação também de síntese da “ratio decidendi”, o núcleo do precedente. É lembrar que o nosso sistema é legal – não há tradição.
Simplificações como esta preocupam a todos os interessados na correta operação do nosso sistema:
Nos autos do agravo em recurso extraordinário (ARE nº 992.299), versando sobre o direito à indenização por danos decorrentes de perda de mandato eletivo e cassação de direitos políticos com base no AI nº 5. O pedido autoral foi julgado procedente nas duas primeiras instâncias. A União Federal interpôs recurso extraordinário, o qual teve conhecimento negado no âmbito do TRF-2. Da referida decisão, foi interposto agravo e, no bojo deste, foi proferida a seguinte decisão: “Trata-se de agravo cujo objeto é decisão que negou seguimento ao recurso extraordinário. A decisão agravada está correta e alinhada aos precedentes firmados por esta Corte. Diante do exposto, com base no art. 21, §1º, do RI/STF, nego seguimento ao recurso” (decisão proferida pelo Ministro Luís Roberto Barroso, no dia 15 de setembro de 2016 – grifo na origem).
Sobre que Lênio Streck assim opinou:
A supramencionada decisão padece de uma série de vícios e pode servir como mais um paradigma ilustrativo de como o sistema de precedentes é indevidamente manipulado no sistema pátrio. Em primeiro plano, viola a Constituição Federal por fundamentação insuficiente (art. 93, IX) e, de modo mediato, o vetor da fundamentação estruturante das decisões judiciais prevista do novo CPC (art.489, §1º), tendo em vista que não enfrenta os argumentos deduzidos pelas partes, invoca precedentes sem sequer indicar quais e como eles se amoldam ao caso sob julgamento, além de suscitar motivos que poderiam justificar qualquer decisão. A invocação genérica de precedentes, como se estes fossem meros argumentos de autoridade, acabam resultando em uma falsa noção de efetividade, pois decisões em tais moldes certamente serão alvos de recursos. Sua banalização e utilização de maneira irrefletida fazem com que eles sirvam para tudo, mas, ao mesmo tempo, operem sem significado. Quando usados para eximir o julgador de fundamentar suas decisões, o quadro se agrava ainda mais, sobretudo diante das funções intra e extraprocessuais que a garantia da motivação desempenha concretamente.
De todo modo, o horizonte deveria espelhar um sistema de precedentes adequado à realidade brasileira, aqui reconhecendo que os métodos empregados por cada família jurídica em relação à manipulação dos precedentes é distinto: a common law lança mão do método indutivo, construindo generalizações a partir de casos particulares, ao passo que o precedente da civil law é de caráter interpretativo do texto normativo. No plano teórico-doutrinário, uma suposta compatibilização é possível. Porém, tudo indica um viés em direção a um sistema de precedentes à brasileira, cujas práticas problemáticas podem vir a anular as vantagens que a doutrina do stare decisis poderia proporcionar. Sem a pretensão de exaurir todos os institutos e conceitos oriundos da teoria dos precedentes no direito comparado, posto que já amplamente sistematizados pela doutrina, o escopo maior foi o de investigar se, nos primeiros meses de vigência do novo Código, os tribunais vêm manejando seus precedentes e elaborando súmulas de acordo com tais postulados ou se o caminho até então percorrido associa-se à construção de um sistema que já nasce maculado pela manutenção de velhas e arraigadas práticas. Embora o espaço amostral seja ainda pequeno para conclusões definitivas diante dos poucos meses de vigência do NCPC, foi possível identificar, com base nos paradigmas e casos tratados, ao menos um indicativo de que o sistema de precedentes nacional não tem sido tratado com as devidas cautelas e iluminado conforme os postulados oriundos da teoria dos precedentes da common law incorporados à legislação nacional. E são exatamente tais práticas que poderão, no futuro, caso não revertidas, macular a eficácia qualitativa do novo sistema implementado (especialmente quando o ponto de partida é marcado por premissas equivocadas). Em um contexto de crise entre os poderes e crescente judicialização da política, falta de consenso sobre os limites do ativismo judicial, mitigação do princípio da colegialidade e a correlata explosão das decisões monocráticas nos tribunais, problemas na edição de súmulas e resistências corporativas para a aplicação das novas orientações, o sinal de alerta está configurado. É preciso que haja um esforço conjunto no sentido de evitar que juízes deixem de atuar na interpretação de leis e de casos e se transfigurem em meros aplicadores de teses (mal) fixadas pelas Cortes superiores. O caso concreto não deve ser visto como um mero pretexto para que os tribunais se transformem em Cortes de teses, pois é exatamente no julgamento de casos que reside sua razão de ser.
Não bastassem as deformações apontadas, estampa-se, ainda, escancarado desdém aos cânones de um “padrão de julgamento qualificado”, indispensável à formação de precedentes, em sistema legal como o nosso. Sem esse norte, um tribunal mesmo superior, mas sujeito à lei também, torna-se improvável a construção de algo prestável.
Há quem fale em compatibilização dos precedentes com as mudanças sociais. Esquece que a função da jurisdição é interpretar/aplicar a lei, que nasce da legislatura, detentor da legitimidade de atualizar a legislação aos anseios sociais. Havendo nova lei, haverá nova rodada de interpretação (assentamento de sentido/alcance do novo texto) e emergência de novo precedente, sempre rente à legislação interpretada.
Conhecida a origem de ambos os sistemas, averigua-se que o nosso, embora inspirado no “common law” anglo-saxão, tem conformação própria (criado por lei e operado segundo as diretrizes da lei) e, por isso, tem regime peculiar de formação/ alteração/revogação e aplicação ditado por lei. Diversamente, o sistema anglo-saxão não é traçado por lei, decorre de sua peculiar cultura jurídico-judiciária.