1. Da relação de consumo
Primeiramente, oportuno recordar-se que a relação firmada entre a seguradora e o segurado configura típica relação de consumo devendo ser analisada a luz do Código de Defesa do Consumidor. Conforme prevê expressamente o art. 3º, § 2º, as companhias de seguro se enquadram perfeitamente no conceito de fornecedores, uma vez que aquele tipifica como fornecedor quem presta serviço de natureza securitária.
De igual modo, sabe-se também que apesar da contração ser firmada por mútuo acordo de vontades, a apólice firmada pelo segurado, bem como as condições gerais do contrato de seguro que, por vezes, são encaminhadas posteriormente a este, correspondem a contratos de adesão, vez que são estabelecidas unilateralmente pela seguradora, inserindo-se no conceito do artigo 541 do Código de Defesa do Consumidor. A conclusão decorre do fato de que as cláusulas de tais documentos são estabelecidas unilateralmente pela seguradora sem possibilidade de o consumidor as discuti-las ou modificá-las. Nas palavras de Nelson Nery Júnior, o consumidor "aceita-as, em bloco, ou não as aceita2.".
Diante dessas considerações, por se tratar de relação de consumo cuja contratualidade se estabelece por adesão, qualquer cláusula tendente a eliminar ou modificar direitos entre as partes, para ter validade, não pode operar de maneira unilateral, sendo obrigatória, para eficácia, a comunicação antecipada do consumidor, de forma clara, destacada e de fácil compreensão.
Por seu turno, não se ignorar que a Seguradora tem possibilidade de estabelecer os riscos que não se propõe cobrir, nos termos dos artigos 757 e 760 do CC, não havendo óbice para que conste no contrato de seguro cláusulas restritivas ao direito do contratante ou segurado. Por outro lado, compete à Seguradora dar efetivo conhecimento sobre tais limitações ao Segurado, antes mesmo de concluída a contratação, garantindo-se a ciência de todas as implicações e consequências da avença, sob pena de não prevalecer contra ele cláusula restritiva de direito.
É o que dispõe o art. 46 do CDC, in verbis:
Art. 46. Os contratos que regulam as relações de consumo não obrigarão os consumidores, se não lhes for dada a oportunidade de tomar conhecimento prévio de seu conteúdo, ou se os respectivos instrumentos forem redigidos de modo a dificultar a compreensão do seu sentido e alcance.
Por ocasião dessa proteção legal, de partida, tem-se que para eventual negativa de pagamento do segurado com base em cláusulas restritivas imposta no contrato de seguro deve haver clara comprovação de que, de fato, a seguradora deu ciência e possibilitou ao segurado a cientificação da imputada restrição, sob pena de ineficácia contra o mesmo. E por dar ciência do conteúdo não é simplesmente entregar posteriormente as condições gerais do segurado ou simplesmente pedir que o segurado as leias em seu site na internet. É o que comenta NERY JÚNIOR3, ao esclarecer que "Dar oportunidade de tomar conhecimento do conteúdo do contrato não significa dizer para o consumidor ler as cláusulas do contrato de comum acordo ou as cláusulas contratuais gerais do futuro contrato de adesão. Significa, isto sim, fazer com que tome conhecimento efetivo do conteúdo do contrato. Não satisfaz a regra do artigo sob análise a mera cognoscibilidade das bases do contrato, pois o sentido teleológico e finalístico da norma indica dever o fornecedor dar efetivo conhecimento ao consumidor de todos os direitos e deveres que decorrerão do contrato, especialmente sobre as cláusulas restritivas de direitos do consumidor, que, aliás, deverão vir em destaque nos formulários de contrato de adesão (art. 54, § 4º, CDC).".
Assim, nos termos da legislação consumerista, qualquer estipulação contratual efetuada de forma unilateral, sem o aceite do segurado, bem como qualquer cláusula tendente a eliminar direitos ou que evidencie expresso prejuízo ao segurado, devem ser consideradas nulas de pleno direito, interpretando-o o contrato, em qualquer caso, de maneira mais favorável ao aderente, segurado.
2. Da negativa de cobertura inidônea: necessidade de agravamento do risco
Sabe-se que nos dias atuais a contratação de seguro veiculares face os imprevistos do dia a dia está se tornando cada vez mais frequente, seja pelo aumento dos riscos que os motoristas estão sujeitos, o aumento dos furtos e roubos de automóveis, bem como pela facilidade de contratação de seguros diante das inúmeras seguradoras existentes.
Como se sabe na atual sociedade o automóvel corresponde a um item necessário na vida de qualquer pessoa. É certo que aquele que contrato um seguro veicular visa se proteger de eventual acontecimento imprevisto, de modo que espera se ver aparado pela seguradora quando necessitar acionar o seguro contratado. Esse é inclusive o que se extraí do Código Civil ao dispor sobre o contrato de seguro, prevendo que “Art. 757. Pelo contrato de seguro, o segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse legítimo do segurado, relativo a pessoa ou a coisa, contra riscos predeterminados.".
Contudo, vem se tornando prática frequente de certas seguradoras a negativa de cobertura de eventos danosos por conta de restrições administrativas impostas na CNH dos segurados ou de terceiros que estejam conduzindo o veículo segurado no momento do sinistro.
É comum, como visto inicialmente, que as seguradoras estabeleçam os riscos não cobertos pelo seguro firmando. Nesse sentido, várias apólices de seguro preveem cláusulas em que o pagamento de seguro não será devido caso o segurado ou terceiro condutor do veículo estejam conduzindo o mesmo com alguma restrição administrativa em sua CNH, a exemplo de suspensão por pontos ou por infração específica, ou até mesmo sem a devida habilitação.
A exemplo de riscos excluídos, é corriqueira redações do tipo, “Não serão indenizados os prejuízos: Relativos a danos ocorridos quando o veículo segurado for posto em movimento ou guiado por pessoas que não tenham a devida carteira de habilitação para movimentar ou dirigir veículo da categoria do veículo segurado ou na hipótese da referida carteira estar cassada ou recolhida, ainda que temporariamente.”.
Ainda, muitos dos segurados também são surpreendidos por eventuais restrições em sua habilitação quando se envolvem em um acidente ou até mesmo quando recebem uma negativa administrativa da seguradora por conta de tal situação, ou seja, nem mesmo tinham conhecimento de eventual restrição, bem como nada nesse sentido fora apurado no momento da contratação do seguro.
Diante dessas premissas, imaginemos a seguinte situação: o segurado envolve-se em acidente de trânsito ocasionando a perda total ou parcial do veículo segurado e encaminha os documentos solicitados pela seguradora contratada para abertura de sinistro e recebimento administrativo do prêmio do seguro. Após alguns dias da abertura do processo administrativo recebe resposta da seguradora negando o pagamento do prêmio exclusivamente por conta de que fora constatado que no momento do sinistro o segurado estava com sua CNH suspensa. Porém, apesar de comum, será que é devida a negativa de cobertura unicamente em razão da alega suspensão, cassação ou qualquer outra restrição do tipo imposta na CNH do segurado ou do terceiro condutor? Ou até mesmo a falta de habilitação?
Para responder à questão vale analisarmos o que dita o art. 768 do Código Civil, que a seguir transcreve-se: “Art. 768. O segurado perderá o direito à garantia se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.
Pela redação do dispositivo acima, denota-se que as companhias seguradoras só poderão negar a cobertura ao segurado se provarem que ele tenha agravado o risco intencionalmente.
De igual sorte, é pacífico na jurisprudência o entendimento de que o motorista que eventualmente esteja com sua CNH vencida ou suspensa, na condução de um automóvel, poderá cometer uma infração administrativa, desde que tenha sido aberto processo administrativo para tal, contudo, essa infração, por si só, não reputa o agravamento de risco de forma intencional, não sendo justificativa suficiente para a negativa de pagamento do seguro.
Dessa forma, a seguradora deverá provar que o segurado agravou o risco intencionalmente para poder negar-lhe a cobertura. Somente a falta ou suspensão de habilitação não é motivo para tanto. Nesse entendimento, é firme a jurisprudência de ambas as turmas que compõem a 2ª Seção deste Tribunal no sentido de que deve ser comprovado que o segurado contribuiu intencionalmente para o agravamento do risco objeto do contrato (Nesse sentido: RESP 780.757/SP, 4ª Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, DJ 1.12.2009; RESP 1.175.577/PR, 3ª Turma, Rel. Nancy Andrighi, DJ 18.11.2010; RESP 780.757/SP, 4ª Turma, Rel. João Otávio de Noronha, DJ 14.12.2009).
E mais:
“DIREITO CIVIL. SEGURO DE VIDA EM GRUPO. ACIDENTE COM MOTOCICLETA. MORTE ACIDENTAL. FALTA DE HABILITAÇÃO (CNH) DO SEGURADO. IRRELEVÂNCIA. INEXISTÊNCIA DE CULPA GRAVE, DOLO OU AGRAVAMENTO DE RISCO. RESPONSABILIDADE INDENIZATÓRIA DA SEGURADORA. RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO.
(Resp. n. 280861/MG, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, j. em 12-2-2007)
Da supramencionada decisão, cabe transcrever excerto: “(...) a tese adotada pelo acórdão recorrido de que a falta de habilitação para dirigir veículo automotor constitui mera infração administrativa, e não ato ilícito, está em consonância com entendimento desta Corte acerca da matéria, não podendo servir de base para recusa de pagamento da indenização ao beneficiário de apólice de seguro de vida.”.
Com efeito, não havendo demonstração por parte da seguradora de que o segurado tenha concorrido intencionalmente para o acidente, mostra-se inidônea eventual negativa de cobertura do seguro por conta da suspensão da CNH do segurado, de modo que tal fator por si só não gera de qualquer modo o agravamento do risco, pois o fato da habilitação deste estar suspensa não lhe retira a qualidade de condutor habilitado para dirigir veículo automotor.
Assim sendo, o fato de estar com a carteira de habilitação vencida, suspensa ou mesmo cassada não significa que o segurado perderá automaticamente o direito à cobertura securitária, de modo que diante de eventual negativa de pagamento com base unicamente neste fator poderá levar o segurado a questionar judicialmente a idoneidade da negativa e forçar o pagamento por parte da seguradora.
3. Conclusão
Diante das breves considerações tecidas no presente estudo de caso, tem-se que a idoneidade ou não da negativa por parte da seguradora sobre os riscos não indenizáveis por conta de restrições administrativas impostas na CNH do segurado ou de terceiro condutor, ou até mesmo pela falta de habilitação, passa pela comprovação por parte da seguradora do agravamento intencional do risco pelo segurado.
Percebe-se, também, que a jurisprudência se firmou no sentido de que a falta de habilitação para dirigir veículo automotor constitui mera infração administrativa, e não ato ilícito capaz de gerar o agravamento do risco, o que releva que as negativas das seguradoras que se voltam exclusivamente na mera suspensão da CNH do segurado são na verdade INFUNDADAS, e que estas, em determinados casos, somente agem de tal modo por pura conveniência econômica.
Além da devida cientificação do segurado pela seguradora dos riscos excluídos pela aplicação das disposições do Código de Defesa do Consumidor por estar-se diante de uma relação típica de consumo e contratos de adesões, ainda que se discuta a ciência ou não do segurado a respeito de tais cláusulas, a negativa administrativa é INIDÔNEA caso não comprovado o agravamento do risco, de modo que o segurado poderá discutir a negativa judicialmente e requerer o pagamento do prêmio caso preenchidos os demais requisitos para recebimento da indenização aqui não discutidos.
REFERÊNCIAS
1 Art. 54. Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
2 Código Brasileiro de Defesa do Consumidor Comentado pelos Autores do Anteprojeto. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 622.
3 NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p. 553). (AC 2013.070043-0, Des. Luiz Fernando Boller).