O CONTEÚDO LOCAL NAS LICITAÇÕES: DA VIOLAÇÃO À IGUALDADE E DO INCENTIVO À PRÁTICA COLUSIVA

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31/10/2018 às 17:38
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O presente artigo aborda a questão do problema relacionado ao conteúdo local nas licitações, enquanto política violadora do princípio da igualdade, bem como restritivo à competição, ao fomentar carteis.

Resumo:

A regra geral para as licitações públicas no Brasil consiste no tratamento igualitário dos licitantes, de modo que é vedada à Administração Pública a atribuição de diferenciações entre os concorrentes. Contudo, o atual modelo das contratações públicas no Brasil permite exceções à referida norma, como a possibilidade de imposição de margens de preferência relativas ao conteúdo local nos certames, que correspondem a uma política pública focada em determinada categoria ou grupo de competidores, por meio da qual permite-se um incremento percentual no preço ofertado por um licitante menos competitivo em comparação com o proponente mais competitivo. Essas, por sua vez, teriam como justificativa o estímulo ao desenvolvimento nacional e a elevação dos índices de empregabilidade no país. Todavia, na realidade, o dispositivo normativo pode ser considerado como violador do princípio da igualdade, na medida em que não considera fatores inerentes aos concorrentes e impõe elevadas restrições à competição, ao tempo que pode acarretar em um efeito inverso da pretensão legal, por conceder incentivos à formação de carteis, com vistas à participação em licitações. Assim sendo, diante do contexto criado pela normatização das margens de preferência para o conteúdo local, entende-se pela necessidade de afastamento dessa norma do ordenamento jurídico brasileiro, como forma de honrar os princípios constitucionais e alcançar os efeitos objetivados com a licitação pública.

Palavras-chave: licitação; igualdade; margem de preferência; conteúdo local; cartel.

 

Introdução

Em um contexto de crise econômica que perdura nos últimos anos no Brasil, são temáticas centrais no país a necessidade de desenvolvimento nacional e de elevação do nível de empregabilidade dos cidadãos. Nesse aspecto, a política industrial brasileira recentemente elegeu um conjunto de inovações normativas, com vistas à mudança da estrutura econômica nacional, até então pautada por uma economia de baixo desenvolvimento industrial e tecnológico, bem como por elevados índices de desemprego, ou de subemprego. Entre as modificações implementadas, tem-se a política de favorecimento de aquisição de bens e serviços locais (nacionais), por meio das compras públicas[1], as quais correspondem a cerca de quinze por cento do Produto Interno Bruto nacional[2].

Sob essa perspectiva, o presente trabalho busca analisar o contexto do ordenamento jurídico pátrio, no qual a norma de conteúdo local fora inserida, para a compreensão do princípio da igualdade nas licitações públicas e da disposição legislativa acerca dessa modalidade de margem de preferência. Consequentemente, objetiva-se verificar se a nova política industrial brasileira se adequa ao princípio igualitário e, demais disso, se os incentivos ofertados pela normatização, de fato, viabilizam o atingimento da vantajosidade pautada no desenvolvimento nacional e na elevação dos índices de empregabilidade no país.

1.O princípio do tratamento igualitário nas licitações

Inicialmente, deve-se observar que o princípio[3] da igualdade – também denominado de isonomia – tem fundamento no ordenamento jurídico brasileiro no caput do artigo 5º, da Constituição Federal, como forma de nivelamento equânime das pessoas. Esse mandamento nuclear, por sua vez, espraia-se no Direito Administrativo, notadamente em relação às contratações públicas, por força do inciso XXI, do artigo 37, da CF/88, com o intuito de extinção de quaisquer privilégios que inviabilizam a igualdade de acesso aos certames públicos pelos administrados, em clara consagração do princípio republicano[4].

Na seara infraconstitucional, a teor do artigo 3º, da Lei n. 8.666/1993, o processamento e o julgamento dos procedimentos licitatórios deverão ter a observância, entre outras normas principiológicas, da igualdade. Destarte, essa isonomia[5] –  inclusive entre empresas brasileiras e estrangeiras[6] –  abarca a vertente prévia à licitação, atinente ao acesso dos licitantes, como também a perspectiva de disputa entre os concorrentes do certame, sobretudo em relação aos critérios para o julgamento das propostas[7].

Em extensão ao entendimento previsto na legislação nacional, o recente Protocolo de Contratações Públicas do Mercado Comum do Sul (Mercosul), assinado em 21 de dezembro de 2017, previu, em seu artigo 6º, a concessão, imediata e incondicional, de tratamento aos bens, serviços e fornecedores dos Estados Partes não menos favorável que o tratamento mais favorável que o respectivo Estado Parte conceda aos próprios bens, serviços e fornecedores; não é possível, pois, qualquer discriminação do fornecedor quanto ao grau de afiliação ou propriedade estrangeira, nem quanto à origem dos bens ou serviços. Afinal, em sendo o mercado de natureza comum, todas as regras aplicáveis em determinado território pertencente a essa aliança entre nações devem contemplar todos os concorrentes situados nas fronteiras de todo o Mercosul.

Contudo, pela própria redação constitucional acima mencionada[8], o tratamento igualitário entre os licitantes, de acordo com a normatização nacional, não tem caráter irrestrito, consoante analisar-se-á adiante.

2.A margem de preferência pelo conteúdo local

 

O tratamento equânime nos certames públicos é passível de excepcionalidades, porquanto há um imperativo de conjugação do princípio da igualdade com o elemento da vantajosidade na contratação, a qual advém da necessidade de consagração do interesse público[9]. Nesse diapasão, exsurgem as regras concernentes às margens de preferência, como se observa na Lei Geral de Licitações e Contratos Administrativos e em outros diplomas legais[10] [11].

A seu turno, essas margens representam a possibilidade de adoção, por força de uma política pública específica, de um incremento percentual no preço ofertado por um licitante menos competitivo em cotejamento com o proponente mais competitivo, desde que aquele pertença a determinada categoria ou grupo de competidores atendidos pela referida política[12]. Em suma, viabiliza-se uma diferença percentual virtual aos eleitos pelas políticas públicas, para que possam ter vantagem competitiva em detrimento dos demais concorrentes, mas sem instituir uma reserva de mercado àqueles. Todavia, ainda que existam algumas modalidades preferenciais no ordenamento jurídico brasileiro, o presente trabalho abordará tão-somente aquela atinente ao conteúdo local, igualmente denominado de nacional.

Assim sendo, em recente reforma legislativa[13], a Lei n. 8.666, de 1993, passou a instituir a possibilidade de imposição de margens de preferência quanto ao conteúdo local[14] do produto ou do serviço ofertado em uma licitação[15] [16]. Nesse passo, o artigo 3º da referida legislação dispõe que, de modo geral, os produtos manufaturados e os serviços nacionais, desde que em conformidade com a norma técnica nacional[17], podem ser favorecidos nos processos de licitação, a partir da edição de decreto do Poder Executivo Federal[18], por uma margem de preferência (§ 5o), denominada de “margem de preferência normal”[19]. Sob as mesmas condições antecedentes, se esses resultarem de desenvolvimento e inovação tecnológica realizados no Brasil, é possível o estabelecimento ainda de uma margem adicional à anterior (§ 7o), denominada de “margem de preferência adicional”[20], contanto que a soma dessas duas (normal e adicional) não ultrapassem 25% (vinte e cinco por cento) do preço dos produtos manufaturados e serviços estrangeiros (§ 8o). Ademais, o conteúdo normativo indica a prevalência dessa preferência sobre outras aplicadas em relação a produtos ou serviços estrangeiros (§ 15), ao tempo que a regra do § 13, do multi comentado artigo 3º preleciona sobre a necessidade de divulgação na internet da relação de empresas favorecidas pela margem de preferência, em todo exercício financeiro, com menção ao volume de recursos destinados particularmente a cada contratado.

No tocante à justificação da concessão de margem de preferência, a regra legal tem indicação clara no § 6º, do mencionado artigo 3º, da Lei de Licitações e Contratos Administrativos, que trata da necessidade de realização de estudos periódicos sobre as margens de preferência de conteúdo nacional, em prazo não superior a cinco anos. Nesse aspecto, visa-se apurar, como resultados dessa política pública, a geração de emprego e renda, o incremento na arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais, a elevação do desenvolvimento e da inovação tecnológica no Brasil, tudo isso em face dos custos adicionais dos produtos e serviços contratados, considerando-se uma análise retrospectiva de resultados[21]. Em outras palavras, objetiva-se, de um modo geral, o atingimento de resultados irrefutáveis para qualquer cidadão nacional, em detrimento da elevação dos gastos para a implementação dessa política pública.

Não obstante, o § 10 do supramencionado artigo 3º prevê que a possibilidade de extensão, total ou parcial, da margem de preferência em questão aos bens e serviços originários do Mercosul. Nesse sentido, considerando-se o protocolo de 2017, acima referido, tem-se que a extensão passa a vigorar, por meio de uma política de reciprocidade.

Por outro lado, cumpre salientar que o Projeto de Lei 6.814/2017, que tramita na Câmara dos Deputados, após a aprovação pelo Senado Federal[22], apesar de instituir novas normas para licitações e contratos da Administração Pública, no seu artigo 23, mantém as disposições acerca das margens de preferência, seja para os produtos manufaturados e serviços nacionais em conformidade com a normatização técnica brasileira e os bens e serviços originários de membros do Mercosul. Ou seja, o legislador nacional entende que, apesar da necessidade de renovação legislativa atinente às licitações, as margens de preferência devem ser mantidas, notadamente pelos objetivos já previstos na Lei n. 8.666/1993, igualmente reproduzidos no parágrafo § 1º, do artigo 23, do projeto de lei em comento.

Contudo, restringindo-se tão-somente à análise do conteúdo da margem de preferência de conteúdo local no ordenamento jurídico pátrio, poder-se-ia questionar se, a despeito da vantajosidade do certame ter a possibilidade de excepcionar o princípio da igualdade, essa norma específica de origem do bem ou serviço não seria, na realidade, uma violação à essência do mandamento nuclear do tratamento igualitário. De mesmo modo, também passa a ser posto em questionamento o argumento de que essa margem poderia ser considerada uma alternativa efetiva na busca do desenvolvimento nacional e da obtenção de elevados níveis de empregabilidade, fato que desacreditaria a suposta vantajosidade reproduzida inclusive no conteúdo normativo.

 

 

3.A violação legal do princípio da igualdade

 

Conforme visto anteriormente, a isonomia deve ter o seu conteúdo sistematicamente considerado, notadamente em se tratando de licitações, nas quais o elemento da vantajosidade tem grande relevância em um contexto de orçamentos escassos, que são compostos, em grande parte, por tributos pagos pelos cidadãos. Todavia, ao mesmo tempo, o princípio da igualdade é condutor de toda a atividade estatal, inclusive a legislativa[23]. Em outros termos, a Administração Pública e o Poder Legislativo devem respeitar os ditames básicos do princípio da igualdade, que constitui mandamento nuclear do sistema do Direito Administrativo, notadamente em sua matéria de licitações e contratos administrativos.

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Nesse diapasão, a igualdade, a partir de sua compreensão sistemática, pode ser conjugada com outros princípios, sobretudo quanto ao atendimento do interesse público, representado pela maior vantajosidade na escolha da Administração Pública em processos licitatórios[24]. No entanto, a viabilidade de tratamento diferenciado entre os licitantes, em razão do conjunto normativo que rege o procedimento licitatório, somente pode ocorrer se o traço da discriminação for ínsito às pessoas que participam do certame, sendo ilegal, à luz do princípio da igualdade, qualquer fator alheio à natureza dos licitantes, como a área geográfica de localização da produção[25].

Dessa forma, ainda que o estabelecimento de preferências de ordem objetiva não seja vedada[26], entende-se que a origem do produto ou serviço tal como posta na legislação vigente corresponde mais a uma restrição ao mercado, que a uma preferência de contratação; é uma discriminação descabida, na medida em que qualquer bem produzido fora do país, quando da sua entrada no mercado nacional, já arca com as barreiras tarifárias elevadas para ingresso no território brasileiro, capazes de equilibrar eventual distorção de preços injustificada. Então, a partir do momento em que são admitidas margens de sobrepreço de bens e serviços nacionais de até vinte e cinco por cento do preço dos estrangeiros, tem-se uma limitação de mercado. Afinal, em uma economia dinâmica e focada em redução de custos como a hodierna, conseguir superar a marca percentual de discriminação a ponto de lograr êxito em um certame público torna-se uma tarefa quase impossível de se atingir.

               Logo, ao tempo em que a normatização das licitações e contratos administrativos diferencia o licitante, não pela sua característica ínsita, mas pela origem dos produtos ou serviços que fornece, de modo a criar uma margem de sobrepreço que forçaria o bem ou serviço estrangeiro a ter um desconto maior que um quarto do preço do bem ou serviço nacional, no entender do presente trabalho, engendra-se uma violação clara e evidente ao princípio da isonomia. Até porque, os referidos bens e serviços, anteriormente à participação de qualquer certame público, já passaram pelo filtro da barreira tarifária – tratamento desigual, na medida da desigualdade[27]. E, se mesmo após essa filtragem, os mencionados produtos e serviços estrangeiros ainda são mais competitivos que os nacionais, o foco não deveria ser a discriminação desses, mas na ineficiência da indústria nacional.

Destarte, essa barreira não-tarifária instituída pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos pode ser compreendida como violação ao princípio da igualdade (e não exceção a sua aplicação), ao tempo que representa o desatendimento dos interesses públicos e privados em geral[28], provavelmente com o objetivo de concessão de privilégios aos produtores nacionais com maior relacionamento com os gestores estatais[29], o que viabiliza atos de corrupção. Enfim, trata-se de uma regra inconstitucional por violação do princípio em espeque.

De todo modo, o argumento da violação principiológica não é isolado em relação à matéria em questão. Para tanto, cumpre analisar a estrutura de incentivos verificada com as margens de preferência, para a verificação da vantajosidade alegada para a excepcionalização do princípio da igualdade.

4.Os incentivos legais do conteúdo local e o contexto de formação de colusões

 

Conquanto os objetivos das legislações possam, como no caso em tela, constar expressamente na regra normativa, outras previsões legais são capazes de gerar outros tantos incentivos àqueles que se submetem ao seu conteúdo – até mesmo contrários aos anseios da regra “visível” (expressa), ou mitigadores indiretos da proibição punitiva (vedação com sanção).

Outrossim, quando o diploma legal fomenta uma prática, com vistas à consecução de políticas com base no interesse público, tende a alterar a estrutura dos custos totais dos agentes econômicos[30], por meio da elevação dos custos decorrente da lei, em comparação aos estritamente de mercado[31]. No entanto, a escolha de uma política pública – normalmente consagrada no processo legislativo – pode sofrer inúmeras influências[32], que desconfiguram justamente a finalidade de consecução do interesse da coletividade. Consequentemente, as políticas públicas erigidas na legislação de um país podem configurar um equívoco[33], com efeitos contraproducentes ao mercado nacional, seja pela assimetria informacional e incapacidade técnica dos governantes[34], ou mesmo pela prática corruptiva[35], sobretudo no cenário brasileiro[36].

Assim sendo, o desfecho de alguns processos legislativos leva à conclusão segundo a qual [t]here is a close analogy to cartelization, an analogy reinforced by the fact that so much legislation seems designed to facilitate cartel pricing by the regulated firms”[37]. É nesse contexto, mutatis mutandis, que reside a margem de preferência do conteúdo local – ao invés de inspiradora dos interesses coletivos, passa a ser de fomentadora de condutas tendentes à cartelização[38], as quais são consideradas substancialmente nocivas à concorrência, sobretudo quando ocorrem em sede de contratações públicas[39].

Nesse diapasão, verifica-se, no presente caso, alguns atributos contextuais que favorecem a ocorrência de carteis em contratações públicas[40], como o reduzido número de concorrentes, que facilita a composição de uma concertação mais coesa[41], uma vez que os custos de transação serão menores para a articulação conspiratória. Outra característica observada que favorece a prática cartelista é a condição restrita ou inexistente de entradas no mercado, a qual tem relação direta com a existência de barreiras à entrada[42], que, por sua vez, ajudam a proteger as empresas operantes contra a inserção de novos concorrentes no mercado em causa, diante do fato de que o ingresso de um competidor é dispendioso, difícil ou moroso.

Para tanto, o contexto de incentivos à colusão acima esposado tem fundamento na normatização legal acerca da margem de preferência para o conteúdo nacional, mormente alguns aspectos relevantes, os quais, conjuntamente, podem ensejar o aparecimento ou o fortalecimento de carteis no âmbito dos mercados públicos, a saber: a) discriminação meramente geográfica; b) vinculação a padrões do regulador nacional; c) patamar de até 25% superior ao preço de bens estrangeiros; d) mecanismo de fiscalização e identificação dos beneficiários.

O primeiro – atinente à discriminação meramente geográfica – diz respeito à possibilidade de a Administração Pública prover de margem de preferência os produtos manufaturados e os serviços nacionais, com base no local de produção, o que reduz significativamente o universo de competidores aptos a perceberem o privilégio. Não obstante, o segundo ponto diz respeito ao fato de que os produtos e serviços nacionais, anteriormente referidos, devem se submeter à norma técnica brasileira e, especificamente nesse aspecto, retomam-se os problemas acima mencionados da autoridade regulamentadora, a qual pode, inclusive, impor padrões dispensáveis até mesmo do ponto de vista dos mais altos padrões internacionais, somente para que seja ratificada e intensificada a restrição geográfica anteriormente mencionada. Esses dois aspectos correspondem, pois, a um soerguimento de uma barreira pouco transponível aos produtos e serviços de origem não nacional; por conseguinte, acarreta na redução do número de concorrentes com acesso a benefício determinante para vencer a licitação, em um claro favorecimento ao cartel.

Conjugando-se as previsões supramencionadas ao terceiro aspecto, apenas e tão-somente a origem nacional seria capaz de vincular uma preferência nas contratações públicas, ainda que esses produtos ou serviços sejam ofertados, no caso da margem de preferência adicional, a um preço de até vinte e cinco por cento superior aos estrangeiros mais competitivos. Todavia, sabendo-se que o sobrepreço médio dos carteis varia entre 10 e 20% do preço final do bem ou do serviço[43], percebe-se que, mesmo que um concorrente estrangeiro oferte, por exemplo, o preço mais competitivo, este não vencerá um eventual conluio entre licitantes brasileiros, que poderão praticar preços até 25% superiores aos estrangeiros mais competitivos. Ou seja, a partir do conteúdo normativo, institucionalizou-se, a partir da regra em análise, o sobrepreço do cartel, em prejuízo do interesse coletivo, garantindo a eventuais infratores, inclusive, margens de sobrepreço superiores à média mundial de colusões.

No tocante ao quarto elemento, sobre a divulgação sistematizada e particularizada dos beneficiários da margem de preferência de conteúdo local, essa reduz drasticamente as assimetrias de informação entre a Administração Pública e os demais concorrentes, em prejuízo daquela. Isso, pois esse sistema permite o controle, pelos licitantes que participam do cartel, dos procedimentos licitatórios, seja para a conferência do atendimento à concertação pelos contratados, ou mesmo como forma de identificação de eventual concorrente não participante do conluio, com o intuito de coação deste, para o ingresso no grupo ou a saída do mercado em questão[44].

Destarte, com a redução do número de concorrentes em razão das barreiras à entrada levantadas pelo diploma legal, atrelada à garantia de margem de até vinte e cinco por cento sobre o preço competitivo, para além da concessão de instrumento de fiscalização, controle e coação pelos agentes econômicos, tem-se o ambiente ideal para a cartelização dos licitantes fornecedores de bens e serviços nacionais – fato que reafirma a tese de erro legislativo, ou cooptação do legislador[45].

Por conseguinte, diante dessa circunstância, deve-se pressupor a exclusão prática dos licitantes que ofertam bens estrangeiros em licitações que consagram o famigerado conteúdo local. Até porque, não existe qualquer previsão na norma que mitigue a imposição da margem de preferência, quando essa for incluída no certame[46]. À Administração Pública restará, pois, adjudicar o objeto do contrato com base nas preferências de conteúdo local, sem qualquer análise da vantajosidade, uma vez que a revogação da licitação, a teor do artigo 49, da Lei n. 8.666/1993[47], não será possível no presente caso.

Portanto, não resta outra alternativa senão a supressão dessa norma legal[48], com intento de cessação dos meios favoráveis à colusão, por todos os prejuízos que podem advir da conduta do cartel nas licitações públicas[49]. Suprimindo-se, então, qualquer norma de conteúdo local, tem-se a retirada de barreiras impostas no mercado de contratação pública – o que, por conseguinte, implicará no aumento de concorrentes que já estavam anteriormente predispostos a participar dos certames públicos, mas não podiam atuar por conta da fronteira artificialmente imposta pela lei. Afinal, as empresas sem conteúdo nacional (estrangeiras ou não[50]), que já atuavam no mercado em causa, poderão concorrer em igualdade com outras na licitação. Trata-se do efeito de prevenção do cartel pela reintegração das empresas anteriormente excluídas por contexto erroneamente criado pela lei, ou mesmo de retomada de algum interesse na sua participação.

Conclusão

O cenário brasileiro do regramento dos mercados públicos dispõe acerca da possibilidade de imposição de margens de preferência nas licitações, para os produtos e serviços nacionais – englobando-se também os provenientes de países membros do Mercosul –, em detrimento dos de origem estrangeira. Aprioristicamente, considera-se tal dispositivo como uma exceção ao princípio da igualdade, insculpido no texto constitucional e legal, como forma de consagração do interesse público, que tem fundamento na vantajosidade da proposta para a Administração Pública, de acordo com a política escolhida para nortear as contratações públicas. Todavia, em uma análise mais acurada da margem de preferência de conteúdo local, nota-se que essa, na realidade, compreende uma violação da norma principiológica da igualdade. Trata-se de regra inconstitucional, na medida em que apenas discrimina os licitantes por fatores não atinentes a sua peculiaridade, mas de acordo com a origem dos produtos e dos serviços contratados, em patamares inatingíveis de acesso ao mercado público, por meio da viabilização de um excessivo sobrepreço de bens e serviços nacionais.

Não obstante, o arcabouço legal, diferentemente do que a legislação reverbera expressamente como objetivo da política de conteúdo local – estímulo ao desenvolvimento nacional e elevação dos índices de empregabilidade –, os incentivos observados na legislação pátria acabam por viabilizar a prática colusiva nas licitações públicas, que acabam por gerar efeito oposto da previsão normativa. Isso, porquanto a lei enseja um contexto próprio à cartelização, a partir de discriminação meramente geográfica da origem dos produtos e serviços, com vinculação a padrões do regulador nacional, possibilitando a contratação de licitante que oferte preço a um patamar de até vinte e cinco por cento superior aos bens e serviços estrangeiros, sem contar a imposição de mecanismo de fiscalização e identificação dos beneficiários dessa polìtica pública.

Portanto, verificou-se que a política dos mercados públicos, lastreada na concessão de margens de preferência ao conteúdo nacional, para além de violador do princípio constitucional da igualdade, tem grande caráter de ensejador da conduta anticompetitiva, especialmente face à carência de mecanismos que desvinculem a Administração Pública de contratar sob esses termos, após a escolha dessa política pública. Logo, torna-se necessária a exclusão imediata do ordenamento jurídico pátrio da disposição que autoriza as entidades contratantes a aderirem ao famigerado conteúdo nacional, como também de proposta legislativa que tramita no Congresso Nacional, a qual reproduz o texto atualmente em vigor.

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Sobre o autor
Allan Fuezi Barbosa

Mestrando em Direito da Concorrência e da Regulação pela Universidade de Lisboa, tendo realizado período sanduíche na Alma Mater Studiorum - Università di Bologna. Pós-Graduado em Direito Europeu pelo Instituto de Direito Europeu - Universidade de Lisboa. Pós-Graduado em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Graduado em Direito pela Universidade Católica do Salvador (UCSal) e em Administração pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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