FOGUEIRAS NA NOITE

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Ensaio fruto de palestra proferida na OAB-PI, por ocasião da Semana das Profissões, em 30/10/2018

FOGUEIRAS NA NOITE [1] [2]

A democracia burguesa, sendo um grande progresso histórico em comparação com a Idade Média, continua a ser sempre – e não pode deixar de continuar a ser, sob o capitalismo – estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e engano para os explorados, para os pobres.

Democracia Burguesa e Democracia Proletária.

Vladmir Lênin

 

Há coisa de três semanas, recebi a incumbência de palestrar, para jovens estudantes, sobre a profissão de professor, por ocasião da Semana das Profissões, promovida pela OAB-PI e pelo grupo Erga Omnes, com apoio da ESA-PI, evento encabeçado pela professora Rutheene Carvalho, a quem agradeço imensamente pela oportunidade de poder falar um pouco sobre os temas do dia. As ideias fervilhavam na cabeça há dias, mas somente ontem, por conta do tempo exíguo e também pelo baque que foi o pós-segundo turno das eleições presidenciais, que culminou com a indicação do candidato Jair Bolsonaro para o cargo de presidente da República, é que pude organizar as ideias e foi aí que me veio o lampejo para o melhor título, por conta da leitura de um texto de Hélio Pellegrino, de cujo título me apropriei. A presente fala se situa um dia após as eleições presidenciais e dois dias antes da votação do famigerado projeto “Escola Sem Partido”, bem como no exato dia em que deputada do PSL recém-eleita incitou, nas redes sociais, estudantes a gravarem as aulas dos professores, para inibi-los de qualquer manifestação que tenha cunho de crítica ao candidato eleito. Antes mesmo de iniciarmos o que seria o objeto central dessa nossa fala, cabe uma palavra quanto a isso. O “escola sem partido” parte de uma premissa falsa: que o professor ou quem quer que seja tenha o poder de influenciar o outro e de forma fatalmente irresistível. Só posso dizer que nenhuma influência é irresistível. No fundo, nós só queremos ter alguém em que pôr a culpa por problemas que são nossos. E a culpa é sempre do outro. A vitória é mérito unicamente nosso; a derrota é culpa exclusiva do outro. Se a pessoa faz o bem é porque ela é boa e tem bom coração, se faz o mal, foi tentação do diabo, foi o signo, o professor ou outra coisa externa qualquer. É o aluno que tira o dez, mas é o professor que lhe atribui o zero. Nenhum exemplo ou influência é inarredável, irresistível. Há sempre um percentual de escolha. Doutro modo, não haveria mérito algum em ser bom seguindo o exemplo de um grande mestre (já que seu exemplo e influência seriam irresistíveis). Do mesmo modo, não haveria culpa qualquer em ser mal, cedendo à tentação do diabo (já que seu exemplo e influência seriam – também – irresistíveis). Um videogame, um filme violento, um livro perturbador, a violência sofrida e o trauma (ou até um professor), nada tem o poder de influenciar senão naquilo que já haja, enquanto semente, no íntimo do influenciado. E, parece, trazemos junto ao peito as sementes todas boas e ruins. Portanto, cuidado. A sala de aula é um espaço de provocação. O conhecimento surge do debate. Ninguém ministra aula sem tudo o que tem em si, suas opiniões, ideologias, etc. Não somos metades. Somos seres biológicos, sociais, psicológicos, espirituais e somos seres políticos também. Não dá para separar. Foi exato a ideia de uma “escola sem partido” que matou Sócrates. E, hoje, há poucos nomes a quem devamos mais o nosso modo de pensar, ao menos para nós do Ocidente, senão o nome deste homem a quem matamos (e matamos a tantos outros mais a quem muito devemos). Mas, é neste contexto, diante de toda essa cadeia de recentes acontecimentos, que se situa nossa fala. E tudo isso soa meio que como uma garrafa de náufrago lançada ao mar bravio, na esperança de que alguém leia esse pedido de socorro e nos resgate; algo menos que um simples tema de palestra e um pouco mais como um manifesto, um registro de quem teme os tempos que virão e sonha poder deixar alguma chama de esperança acesa nos corações daqueles que precisa proteger.

Bem, poderíamos começar falando de lugares-comuns, como o fato de que só 2,4% dos jovens brasileiros sonha se dedicar ao magistério. E que há dez anos esse patamar era de 7,5% (com base em dados da OCDE). Poderíamos falar, também lugar-comum, que os salários são baixos e o reconhecimento é menor ainda. Poderíamos falar, ainda, que é um mito que a docência deva ser vocacionada, o que só contribui para o desprezo à qualificação profissional, muito embora eu possa falar por mim mesmo que o magistério é “o ar que respiro”. Tenho orgulho de poder repetir isso, pois foi o que ouvi em meu primeiro dia de aula no curso de Direito. Cheguei correndo ao CCHL e nem sabia onde seria a sala, tudo era novo e eu mais desinformado do que tudo. Vi uma garota descendo as escadarias. Lembrava apenas de tê-la visto na matrícula institucional – e, sim, acreditem, ficávamos cerca de seis a oito horas em filas, porque em 98 o sistema ainda não era informatizado – e dela só recordava que o sobrenome era Coelho. As escadas que desciam para o CCHL, sua toca. Não pude deixar de fazer analogia com o Coelho do país das maravilhas. E, não, na vida acadêmica nem tudo é maravilha, nós sabemos. O certo é que o prof. Fernando Eulálio, mal entrou em sala e foi logo distribuindo, para cada fila, cópias de papeis. Pensávamos que se tratava de material para uso ou esquemas e resumos da primeira aula, mas – surpresos – vimos que não. Eram os contracheques dele. Todos olhávamos uns aos outros, estranhando tudo aquilo, e passávamos adiante, até o final da fila. Um contracheque era o de procurador do Estado, constando, bruto, coisa de 14 mil reais à época. O outro, era o de professor da UFPI, que pouco passava dos quatrocentos reais, valor da época também. Após todos vermos detidamente os documentos, ele principiou: “aí vocês podem ver o que ganho como procurador e o que ganho como professor. E eu digo para vocês, aqui, agora, e do fundo do coração, que se tiver que optar entre um e outro, fico com o segundo. Ser professor é o ar que respiro.” Só depois disto ele começou o que seria a primeira aula do curso.

Aquilo me marcou, obviamente. Todo mundo tem um ou mais professores que lhe marcaram, que lhe são referências, aqueles que admiram e por quem nutrem um carinho especial, trazendo consigo na lembrança, a imagem arquetípica do que é ser um bom professor. Todo mundo faz uma ideia do que deve ser um bom professor. E ele foi um dos meus e um dos que me inspirou a vontade de me dedicar à docência. Mas ser professor é muito mais do que essa vaga ideia. E não tenho o poder de resumir em breve análise o que é ser um bom professor ou qual o papel do professor. Dito isto, o que exponho aqui são experiências minhas, e só. É minha visão subjetiva da coisa toda. Pode ser que sirva para alguém. Pode ser que toque ou que motive. Pode ser que se encaixe com o que pense sobre o papel do professor. Pode ser uma análise do coração ou uma verborragia cerebral apenas. Pode ser tudo isso, e pode ser que não. O esforço é valioso, ainda assim. Como professor, nunca busquei concordância, mas fazer com que os alunos pensem por si mesmos, que saiam da letargia de só absorver e que se conscientizem de que seja mais importante a formação que a mera informação transmitida. Fazer pensar é a palavra.

Hoje, sei, o professor lida com cultura. Seu trabalho é transmitir cultura. Ser professor é contar histórias. E pensar que me descobri professor quando me dei conta de que era um bom contador de histórias. Para ser bom em sala de aula, é preciso fazer do assunto uma história, é preciso contar a história do assunto. E sempre me questionei se quem sabe algo de verdade deve saber explicar da forma mais simples possível, fazendo do mais complexo assunto compreensível até mesmo por uma criança. Lembrava das figuras dos grandes mestres que ensinavam por meio de coisas simples: Jesus falando das coisas do Reino dos Céus usando a singela metáfora de um semeador que saiu a semear...

Pois bem, “mas o que tem a ver contar histórias, cultura e docência?”, alguém se perguntaria. Cultura, na acepção mais simples, significa aprender com o passado; aprender com a própria história. Vejamos, o homem surgiu na Terra há 2,5 milhões de anos; há 300 mil anos dominamos o fogo; há 200 mil anos os homo sapiens, nós, enquanto apenas uma das espécies humanas partilhamos o planeta com as demais humanidades (e há indícios de que tenhamos convivido com pelo menos oito espécies humanas outras, a saber, por exemplo: homo florensis, homo rudolfensis, neandertais, etc); há 70 mil anos houve uma revolução cognitiva em cujo contexto surgiu a linguagem do mito e da ficção e possibilitou o nascimento da cultura (algo aconteceu aí que possibilitou que a mais frágil das humanidades sobrepujasse as demais: nós vencemos e sobrevivemos a todos os outros); há apenas 518 anos houve a revolução científica (representada pelo Renascimento e Iluminismo); e, por derradeiro, há 218 anos tivemos nossa revolução industrial.

Por terem começado a andar eretos, nossos ancestrais sofreram uma modificação na pelve (seleção natural daqueles com menor pelve, a rigor). Em verdade, é preciso dizer, nossa inteligência veio de nossos pés. Por absurda que possa ser a afirmação, creio que seja isto. Da Vinci já diria que o pé é a maior obra de engenharia da natureza. Reportagem de Julho de 2006 da Revista “National Geographic” (p. 109 e segs.) nos reporta ao fato de que teria sido a modificação de nossos pés – antes similares às mãos, como nos demais primatas – que permitiu passássemos a andar de modo ereto, poupando, assim, considerável quantidade de energia antes utilizada na locomoção, energia esta necessária a garantir o aumento de nossos cérebros, os quais foram nutridos com a sobra deste excedente. Teria sido isto também o que deixou livre o uso das mãos, tornando-as passíveis de não terem sofrido a mesma diferenciação em relação aos pés, agora adaptados à locomoção. Dessa possibilidade do uso das mãos, o surgimento do polegar opositor, permitindo o movimento de pinça com os dedos, associada a um cérebro mais adequado, propício ao desenvolvimento da razão, é que surgiram as ferramentas, e então o homem passou a modificar sua realidade externa, não mais como um animal, mas como um ser coroado com a razão, desperto para a diferença que há entre si e tudo o que o rodeia, consciente de sua individualidade. Mas a que preço? Fôssemos proceder a uma leitura mais simplória e cotidiana da “lei de conservação”, compreenderíamos que nada se pode criar do nada, ou melhor, que para se conseguir algo de valor deve-se ofertar algo de valor similar. (Se você almeja passar num concurso público por exemplo, deve sacrificar seu tempo estudando; não se conquista algo de valor sem ofertar algo igualmente valioso). Troca equivalente?! – Talvez – Mas, nestes termos, quem teria pago o mais alto preço evolutivo teriam sido as mulheres: o andar ereto e a perda da coluna curva, tornaram ao parto o processo doloroso que é. Viagens à parte, não podemos também categoricamente dizer que foi o uso das mãos que nos conferiu racionalidade, antes, mais fácil crer, que a racionalidade foi necessária para que, utilizando-nos das mãos como instrumental, pudéssemos modificar a realidade exterior – embora eu mesmo pense seja uma via de mão dupla: a experiência com o uso das mãos ofertando-nos o paulatino despertar da razão, ao passo que, quanto mais "espertos" ficávamos, melhor uso das mãos fazíamos, ou seja, produzíamos obras mais precisas, úteis, delicadas, artísticas, etc. A atuação conjunta de ambos os fatores foi necessária. Acostumamo-nos a respostas simples e o complexo – ainda que mais evidente – parece ser algo difícil de aceitar.

Ora, o certo é que nossa coluna vertebral não foi projetada originalmente para que nos mantivéssemos de pé, mas em quatro patas. A mudança para bípedes nos trouxe as dores de coluna. Ao mesmo tempo, diante do consumo maior de carne, houve um progressivo aumento do tamanho do cérebro e um consequente aumento da arcada occipital, parietal e frontal. Noutras palavras, um aumento do crânio. Agora, associem a pequena pelve dos (agora) homo erectus a uma cabeça maior e o que temos? A pelve oferecia menor espaço para passagem do filho, que – agora – tinha um crânio bem maior. A cabeça da espécie agora era maior. As crianças passaram a nascer antes do tempo, para facilitar a passagem por uma cavidade vaginal menor (leia-se: aqueles partos que seguiam o ciclo normal, com a plena formação do filho, geraram incontáveis mortes, de mães e de filhos). Com isso, surgiram clãs, eis que filhos mais velhos deviam ajudar a cuidar dos mais novos. Frágil, o humano morria se, ao nascer, fosse esquecido à própria sorte. Percebam que os filhos das demais espécies têm, pouco tempo após o nascimento, plena autonomia. Um filhote de cavalo, por exemplo, está trotando, ainda que trôpego, poucos minutos após nascer e logo se alimentando sozinho no mesmo pasto que seus genitores. A criança humana, por seu turno, demanda uma série de cuidados. Cuidados dos pais e do clã. Com isso, nascia também uma importante ferramenta social: a "cultura", objeto de nossa análise aqui, enquanto seja aquilo que um professor transmite. Longe de se resumir em mera "cultura literária", ela significa, isso sim, a capacidade de aprender com a experiência do outro. Você não precisa, por exemplo, comer de tudo para descobrir o que é venenoso ou saudável. (E lembrar que, em meados de 1542 a Europa só conhecia pouco menos de 400 plantas medicinais ao passo que os ameríndios mais de 5000[3]). Muitos humanos, antepassados nossos, (num aprendizado de tentativa e erro) já morreram para que você possa ter esse conhecimento de modo automático, à sua disposição. Você não precisa mais descobrir, sozinho, mecanismos de purificação da água, melhores métodos de construção de casas, meios de resistir ao inverno. Tudo isso já foi empreendido pela cultura, podendo ser aprimorado com o tempo, mas não se tem de começar do zero, em seara nenhuma, eis que estamos como que numa corrida de bastão, pegamos o bastão de nossos antepassados e não necessitamos percorrer o caminho que eles percorreram. Noutros termos, não precisamos descobrir, por nós mesmos e do zero, o conhecimento que eles já nos legaram. Ninguém precisa provar do veneno já conhecido para saber que ele é letal. De igual modo, você tampouco precisa começar do “zero”, e reinventar a roda, no que toca aos debates sobre as melhores formas de agremiação política. Desde Péricles, estamos discutindo modos de aprimorar a democracia. Apenas não podemos ser ignorantes atávicos, gente sem memória, incapazes de aprender com as lições da História, com as lições da cultura e do passado. E aqui ponho o dedo na ferida aberta destes dias. Quando tomo conhecimento de que há gente jovem defendendo a volta a ditaduras (gente querendo tomar o que outros já lhes alertaram que é veneno, só para atestar se é mesmo), percebo que temos falhado miseravelmente enquanto comunidade política e temos falhado miseravelmente enquanto professores. Afinal de contas, um dos institutos fundamentais de uma comunidade é justamente essa capacidade de transmitir conhecimentos e experiências. Falhamos como professores ao não ensinar adequadamente, ao não sermos capazes mostrar que, mesmo o aluno não tendo vivido numa ditadura, aquilo é abjeto e desumano e indigno e que a experiência pontual e torcida que algum dos mais velhos lhes possam querer vender, ela é falsa. É que as memórias nos pregam peças e elas tendem a pintar com mais belas cores o passado do que ele realmente era. É por isso que a vida pintada pelos olhos de muitos sempre foi melhor no passado, cor-de-rosa... “ah, no meu tempo, os políticos eram mais honestos, as ruas eram limpas, respeitavam os mais velhos, e não havia criminalidade ou corrupção”. Balela! Esse é um dado falso, misto de um embotamento da memória. Esse grau de conhecimento é de mera opinião e não serve de base para fundar o que de fato foi. Prefere-se a palavra do tio, do pai, do avô que viveram um recorte, um olhar pontual e torcido, do que é um evento histórico, que a multiplicidade de perspectivas, enfeixadas por um método racional, fundadas em documentos comprovados, que vários cientistas, historiadores ou estudiosos possam ofertar. Ainda hoje, porém, há quem se revele incapaz de se condoer com a dor alheia, incapaz de aprender com os erros alheios; gente que parece que, enquanto não for torturada na própria pele, não terá a devida noção do caráter verdadeiramente ignominioso, abjeto, desumano e monstruoso, de qualquer regime fundado na opressão. Vivemos tempos difíceis. Há uma diluída – e, por vezes, até mesmo compreensível – desilusão coletiva com a democracia. Mas, como sabia Churchill, por pior que possa parecer, a democracia é sempre o melhor caminho. Uma obviedade... truísmos... em um tempo em que obviedades estão sendo esquecidas... Nenhum problema é simplório, já nos advertiria Descartes, tendemos a buscar respostas simples ou a simplificar os problemas.[4]

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Tal desilusão parece ser reflexo de nossa infantilidade política. Pensemos: democracia, numa visão simplista que seja, quer dizer o governo dos irmãos, dos iguais. No nosso Brasil atual, e em nossa frágil democracia, sempre que fazemos uma "burrada" ou que nossa democracia não nos oferta uma resposta satisfatória, nós buscamos um pai ou um padrasto. Isso é fruto talvez (e também) de nossa colonização religiosa ou ainda de algum trauma psicológico (seja ele individual ou coletivo) que nos faz ter saudosismo de um pai opressor, alguém a quem se ama e se respeita, porque se teme. Esperamos um messias e que ele venha como um político, assim como os judeus esperavam um rei-guerreiro e não o humilde mestre que foi o Cristo. Para nós, foi assim com Collor, foi assim com FHC, foi assim com Lula e agora é igualmente assim com Bolsonaro. E o contexto se agrava neste último caso, eis que, com ele, acompanha um clamor por ditadura. E esse clamor é fruto dessa nossa infantilidade política. Eis o atestado de que não queremos encontrar respostas coletivamente, como irmãos, como iguais, que aprenderam com seu passado, mas que esperamos passivamente um pai, que nos diga o que fazer, um salvador, e que ele venha como um juiz, um político, um militar ou um religioso, quando o único que veio como Salvador não dizia que salvava ninguém, a repetir: "tua fé te salvou, vai e não peques mais". Esta a mensagem de libertação, a de que nós próprios nos salvemos da ignorância e nos aprimoremos em resolver os problemas da coletividade como irmãos e como iguais. Este o ideal democrático e que não ignoremos o passado: ditadura não é algo bom, nem deve ser considerada uma opção, por pior que possa parecer o cenário democrático. No fundo, o que buscamos é ter em quem pôr a culpa se tudo der errado. Existe um comportamento atávico que é o de atribuir as vitórias ao mérito próprio e as derrotas aos outros. É o aluno que tira dez, mas é o professor que lhe dá nota zero. Numa democracia, se o caminho escolhido pelos iguais levar ao abismo, só podemos culpar a nós mesmos. Daí muitos ousam preferir a ditadura, com todos os males que ela arrasta consigo, que ter a responsabilidade de assumir seus caminhos, com seus acertos e seus erros também. Queremos alguém em quem pôr a culpa se tudo der errado, já dissemos.

O premiado jornalista e historiador, Yuval Noah Harari, advoga a teoria de que o que nos diferenciou das demais ‘humanidades’, dos demais membros do gênero homo (como os neandertais, o homo-rudolfensis, o homo-florensis, entre tantos outros) não foi o andar ereto (que possibilitou a liberação do uso das mãos), nem o uso das mãos ou o polegar opositor (que possibilitaram o fabrico de ferramentas), nem o uso de ferramentas (que permitiu aprimoramento na caça e o abandono da vida nômade, com a agricultura), nem o domínio do fogo (que permitiu processar os alimentos, facilitando melhor nutrição e facilitando o aumento do tamanho do cérebro), nem o tamanho do cérebro maior (que possibilitou o desenvolvimento da linguagem), nem mesmo a linguagem em geral, mas o mito, uma linguagem específica que só os sapiens possuíam, nossa capacidade de falar sobre coisas que não existem, nossa capacidade de abstrair e de ficcionar (falar sobre espíritos e deuses e criaturas míticas e direitos humanos e fronteiras e Estados – nossa capacidade de contar histórias, nossa capacidade de propagar cultura, enquanto tudo aquilo que é criado pelo homem; enfim, nossa capacidade de ensinar). Nos demais primatas, só há cooperação entre conhecidos, companheiros, membros do mesmo grupo, aqueles em que se confia, porque se conhece, através da linguagem corriqueira. Nos sapiens, há cooperação em larga escala, por causa do mito. Um neandertal facilmente ganharia de um sapiens em força, mas seu grupo não ultrapassaria 150 membros, ao passo que uma comunidade sapiens – pela força do mito – agregaria centenas e até milhares. Explicamos: dois indivíduos que sequer se conheciam iam às cruzadas, batalhavam juntos, como companheiros, porque se diziam, ambos, cristãos – ambos acreditavam no mito religioso da vinda de Deus à Terra feito pessoa humana e etc., mas – de fato – eles sequer se conheciam. O mito permitiu a nós, os sapiens, nos organizarmos em grupos maiores e vencemos os demais “humanos” pelo peso numérico. Mas o mito mais forte agrega mais pessoas em sua defesa: para citar exemplo, abandonamos o mito de que a origem do poder divino dos reis (Estado Absoluto - moderno) pelo mito de que todo poder emana do povo e dos Direitos Humanos e Fundamentais – chamamos a isso de Revolução Francesa, que permitiu o surgimento do Estado Moderno Liberal (tanto nos EUA - 1776, como na França - 1889). No Direito, temos também nossos mitos: o mito de que, após os ritos e registros certos, os magos-advogados transformam um agregado de recursos humanos, ‘know-how’ e capital em um ente personalizado – uma pessoa jurídica, uma empresa. “A Peugeot, por exemplo, é um produto da nossa imaginação coletiva, uma ‘ficção jurídica’. Não pode ser sinalizada; não é um objeto físico. Mas existe como entidade jurídica. Pertence a um gênero particular de ficção jurídica chamado ‘empresas de responsabilidade limitada’.” A propriedade, até meados do séc. XVIII, só poderia pertencer a seres humanos de carne e osso (com cabeça e cérebro grandes, já diria Yuval Noah Harari) e as responsabilidades recaiam sobre este indivíduo. Isso desencorajava o empreendedorismo. Se a empresa causasse prejuízo a alguém o proprietário seria preso pelo Estado, talvez tendo que vender seus filhos à escravidão, todo o seu patrimônio sendo dilapidado para arcar com os danos causados. Daí criou-se a empresa de responsabilidade limitada, uma criação da nossa imaginação, tratando um conjunto de capital, maquinário, know-how, e empregados como se pessoa fosse. Surgiu aí a pessoa jurídica, o nosso mito. Em 1896, Armand Peugeot, que herdara de seus pais uma oficina de fundição de metal que fabricava molas, serrotes e bicicletas, decidiu entrar no ramo de automóveis. Para isso, ele criou uma empresa de responsabilidade limitada. Pela força do mito, ele estava protegido.[5]

Ora, foi a cultura, criação à parte de nossa evolução genética, que permitiu a sobrevivência da espécie e saltos civilizatórios e tecnológicos impensáveis para as demais humanidades. E repassar cultura é o nosso papel, enquanto professores. Papel este em que temos fracassado vergonhosamente, num mundo em que as verdades mais basilares, frutos de um sem-número de décadas e séculos de estudo, são rebatidas por jocosos memes e fake news.

E, sobretudo nós, do ensino jurídico, temos fracassado, quando ouvimos da boca de um aluno que Direitos Humanos só protege bandido. Esta ideia, muitas vezes acriticamente assimilada de programas policialescos sensacionalistas, de que Direitos Humanos só defendem bandidos, não podia ser mais equivocada. Ignoramos que, via de regra, o clamor social aponta para decisões injustas e que o Direito, embora deva atender a necessidades e anseios sociais, não se deve dobrar ao sabor dos quereres imediatistas do povo, que, quase sempre, desprezam as consequências de longo prazo. E antes mesmo de explorarmos essa ideia, vale citar o sociólogo Émile Durkheim, para quem "...o papel do Estado, com efeito, não é exprimir, resumir o pensamento irrefletido da multidão, mas sobrepor, a esse pensamento irrefletido, um pensamento mais meditado e, por força, diferente. É, e deve ser, foco de representações novas, originais, as quais devem pôr a sociedade em condições de conduzir-se com maior inteligência que quando é simplesmente movida por sentimentos obscuros, a agir dentro dela". Dito isto, comecemos por lembrar um ocorrido, aqui mesmo em nossa cidade: em meados de 2004, se a memória não me falha, um grupo de taxistas de Timon se dirigiu até a ladeira do Uruguai, barrou um ônibus, dele extraindo um garoto de seus 15 anos. E ali mesmo o lincharam e o mataram. O garoto era suspeito de ter assassinado um taxista. Descrentes da resposta do Judiciário, os taxistas fizeram “justiça” com as próprias mãos. No dia seguinte, o verdadeiro culpado foi preso. O menor era inocente. Meus queridos, o Direito Penal, não à toa, é chamado de ultima ratio (última razão), a última medida que o Direito faz pesar sobre alguém como solução racional para um problema jurídico, atingindo os bens jurídicos mais importantes para o indivíduo (como a liberdade, por exemplo) para preservar bens jurídicos tão ou mais importantes para a sociedade. O exercício das próprias razões, a vingança privada, tudo isso é irracional. Não muito recente também, uma mulher foi objeto de linchamento coletivo. Acusada de ter sequestrado uma criança para rituais de magia negra, ela foi espancada por moradores no Guarujá, no litoral de São Paulo, na noite de 03 de maio do ano de 2016. Notificaram depois que a mulher tinha problemas mentais e que nada tinha a ver com as acusações que lhe fizeram, mas alguém da vizinhança espalhou rumores de que ela era sequestradora de crianças e que realizava rituais de magia negra. E, por isso, ela foi imobilizada por vários homens não identificados que a amarraram, agrediram e depois levaram para os fundos do bairro, com a intenção de matá-la. Inconformados com a brutalidade da agressão, outros moradores acionaram a Policial Militar para tentar solucionar o problema. A vítima morreu em virtude, principalmente, da conduta do administrador de uma página na Internet que teria disseminado os falsos boatos e alarmou a toda a comunidade onde a vítima morava. Enfim, não faltam exemplos neste sentido. Entre 2003 e 2006, vimos, pela primeira vez na história de nosso país, o julgamento de criminosos do colarinho branco, no julgamento do que foi chamado mensalão. O governo federal pagava malas de dinheiro para que os deputados votassem nos projetos do governo. A rigor, não houve “roubo” por parte do governo, já que não se auferiu ganhos financeiros disso, mas houve corrupção evidentemente, já que, somente pagando, conseguia ter governabilidade e aprovar seus projetos, muitos dos quais sociais e de interesse popular. O então ministro do STF, Joaquim Barbosa utilizou a Teoria do Domínio do Fato, a qual reza (em breve resumo) que, se um subalterno faz algo, o superior hierárquico não apenas sabia como foi o mandante. Pois bem, o próprio cultor da Teoria do Domínio do Fato, Claus Roxin afirma que, numa Democracia real, a Teoria do Domínio do Fato não pode ser aplicada, que alguém, sendo superior hierárquico, não pode responder por atos de seus subalternos a que não tenha dado expressa ordem. Roxin entende que o ‘domínio do fato’ só pode ser aplicado em condições específicas (sobretudo em ditaduras e governos tirânicos). E afirma ainda que não se pode sustentar o ‘domínio do fato’ com base em meros indícios. Para ele, é preciso haver provas incontestáveis de que o superior hierárquico tenha ordenado algo a seus subalternos, para que ele seja responsabilizado pelos atos dos subalternos. O domínio do fato, que foi utilizado no julgamento dos soldados nazistas, no julgamento do ditador Alberto Fujimori, estranhamente, foi também aplicado aqui, no Brasil, numa democracia – a contrario senso do que dizem os maiores entendedores da teoria mundo afora. O STF, no julgamento da Ação Penal 470 (vulgo: Mensalão) aplicou a Teoria do Domínio do Fato, condenando os chamados “mensaleiros”, o que foi ovacionado por praticamente todo o país. Na história brasileira, nunca antes se teve notícia de políticos (criminosos de colarinho branco) serem julgados, condenados e presos. Mas, lhes pergunto, se a medida era tão ansiada, qual o sentido de a OAB ter manifestado repúdio ao julgamento do “mensalão”? Senhores e senhoritas, os Direitos Humanos nos conectam, nos interligam, de modo que, se permito que o Direito Humano de um só seja violado, estou dando margem a que o meu também seja. Direitos Humanos não protegem “bandido”, protegem, na verdade, nosso direito. Se aceito que o direito do pior criminoso seja violado, logo o meu também será.

Ora, um garoto foi morto porque não lhe foi garantido o devido processo legal, a chance de ser ouvido, a chance de se defender, de, quem sabe, provar sua inocência; uma mulher foi morta por uma ação impensada da comunidade, baseada em inverdades e fofocas, igualmente não lhe tendo sido dada a chance de ter um julgamento justo; mensaleiros foram presos, muitos dos quais sem provas ou com base apenas em meros indícios, sem que nenhuma lei caracterizasse ou tipificasse seu agir como criminoso (a fala da então ministra Rosa Weber é emblemática neste sentido, ao ousar dizer: não tenho provas contra o acusado, mas a literatura jurídica me permite condená-lo). Meus caros, nós aceitamos essas situações aberrantes, que outros cidadãos como nós, e por piores criminosos que fossem (se é que eram), tenham tido suprimido seu direito a um julgamento com base legal e sobretudo justo. E tudo isso se volta contra nós. Imaginem-se, por um instante, agora, aprovados como analistas judiciários e recebendo o cargo de chefes de cartório. Nessa circunstância, e agora, se um simples estagiário desviar valores, vocês – que são os chefes – poderão vir a ser culpados. “Ah, mas não fizemos nada”, vocês diriam. Não importa, vocês aplaudiram a prisão de semelhantes sem provas; aplaudiram os linchamentos públicos; silenciaram ou endossaram as injustiças e ilegalidades; agora isto poderá ser usado contra vocês também, percebem? Direitos humanos não defendem bandidos, mas o interesse social – o nosso direito de, quando estivermos em igual situação, termos, nós também, um julgamento justo. Tudo isso porque desprezamos a cultura jurídica pátria em face de teorias estrangeiras inadequadas à nossa realidade.

E, se cultura é aprender com o próprio passado, aprender com a própria história, cultura é também tudo aquilo que é criado pelo homem. Mas, mesmo no contexto da cultura, há algo que é descoberta. Vejamos: ao longo do ensino médio e fundamental nos venderam a falsa ideia de que, de um lado, temos as ciências exatas e naturais (polo em que se concentra tudo aquilo que o homem descobre) e, de outro, as ciências humanas e culturais (em cujo contexto tudo o que é criado pelo homem encontra-se albergado). Tecnicamente, o nome para o primeiro grupo, o das ciências exatas e naturais, seria physis, ao passo que o segundo grupo, o das ciências humanas e culturais, nomos. O certo é que, mesmo no contexto das ciências da descoberta, há algo que é criação humana. De igual modo, mesmo no polo das ciências da criação humana, há algo que é descoberta. Senão vejamos: se a água ferve a 100ºC, o que vem a ser graus celsius, senão uma escala que criamos? Noutro prisma, se o legislador cria leis, ele não cria, mas apenas reconhece a igualdade, a dignidade, etc., daí os textos das grandes cartas de Direitos: “nós, representantes do povo, aqui reunidos em Assembleia, reconhecemos que todos são iguais perante a lei, sem distinção de raça, credo, cor, opinião política, filosófica, religiosa, opção sexual, ideológica, etc...”

Pois bem, há uma certa confusão quanto à profissão de professor, se ele trabalha para ensinar regras de obediência ou para ensinar o quanto os limites que nos são impostos nos escravizam. Professor é quem fica contraditoriamente entre aquele que põe um tijolo a mais na parede do superego e aquele que nela provoca rachaduras; entre quem te prende, pela ordem e grilhão do que te ensina, e quem te liberta, pelas asas que te oferta. Mas algo é certo, e eis o papel do professor, repassar cultura, difundir conhecimentos demonstráveis e que, embora não sejam verdades absolutas, incontestáveis, até porque uma teoria científica sucede à outra e assim sucessivamente, como verdades provisórias ao nosso grau de compreensão; ainda assim, não podemos nos dar ao luxo de provar do veneno, quando a ciência e a cultura e o passado nos alertam que veneno seja.

O que posso dizer é que nosso fazer não é outro diverso daquele fazer do homem primitivo, “quando as pessoas se juntavam em torno de fogueiras para ouvir histórias que tanto entretinham quanto explicavam, dando ordem e razão a um universo que parecia fortuito e incompreensível.”[6] Naquele dia perdido para a memória e os registros, homens repassavam, ao redor de fogueiras, o conhecimento e a cultura e a experiência da tribo, do clã, da família, da comunidade, na esperança de que, através da história contada, não apenas nos imortalizássemos nos olhos vibrantes dos que nos ouviam, mas que o gesto de generosidade ímpar, permitisse a sobrevivência e o bem-estar do outro a quem se quer bem como a um filho.

Cliché que seja, sempre vou repetir: ser professor é ser pai de muitos. E, no fundo, ninguém ensina nada a ninguém. O aprendizado é uma via de mão dupla. Aprende-se enquanto se ensina. E o professor, mesmo o melhor deles, é apenas um facilitador, não um mágico que irá abrir sua cabeça a machadadas e colocar o conhecimento ali dentro (sem matar o aluno no processo). O professor te oportuniza o contato com o conhecimento. Ele marca o encontro. É preciso que você vá. Assim, você pode ter o melhor professor do mundo, mas, se você não tiver predisposição para aprender, se você não quiser realmente aprender, ele pode plantar bananeira e fazer mil outras firulas que tornem a aula mais agradável e, mesmo assim, você não irá aprender. O aprendizado é como uma ponte de duas folhas. Baixe a sua metade. Senão, mesmo que o professor baixe o lado de lá da margem, nenhum conhecimento transitará sobre uma ponte pela metade, ou, na melhor das hipóteses, muito pouco chegará até você. Ir para a aula, sem atentar para o assunto, é fazer nada. Ir para a aula, atentar para o assunto e não estudar em casa o mesmo número de horas de cada aula assistida é fazer apenas metade. O assunto é difícil?! Se um só outro ser humano entendeu certo assunto (ainda que seja o próprio teorizador daquele mesmo assunto), o fato de você dizer que o assunto é difícil não apenas não resolve o problema, como faz de você mesmo, e não do assunto, o obstáculo para o aprendizado. E não é lá uma atitude construtiva, nem mesmo racional, olhar para um problema e dizer que ele é difícil, esperando que isso baste para que, como num passe de mágica, a solução caia do céu. Se um único outro alguém aprendeu, se houver uma única exceção, já basta, já prova que você também pode aprender, não importa quanto tempo demore. Você é um ser humano tão capaz quanto qualquer outro: pode, deve e vai chegar lá... se quiser. E é uma verdade inconteste que aprendemos com mais facilidade tudo aquilo a que atribuímos valor. Assim, pela lógica, se você der valor a todo e qualquer conhecimento, tornará mais propício o aprendizado de todos eles, quer sejam tidos como difíceis, ou não. No mínimo, isso eu posso prometer, tornará mais agradável o caminho a ser palmilhado até alcançar o conhecimento a que se almeja. É bem verdade que fixamos o conhecimento com a repetição, seja em que área for da vida: um esportista, por exemplo, aprimora seus movimentos através do treino e da repetição, até que os movimentos se tornem automáticos, fluidos, até que ele não precise mais pensar para fazê-los, e ele (o movimento) simplesmente aconteça – ágil, preciso e decisivo. Assim também é com o conhecimento intelectual: repetição e treino, sempre. Isso me lembra uma fala de ‘Tyrion’, o anão, da obra ‘Guerra de Tronos’, que diria: ‘...uma mente necessita de livros da mesma forma que uma espada necessita de uma pedra de amolar se quisermos que se mantenha afiada (...) é por isso que leio tanto...’ Assim, em minhas aulas, vou sempre falar muito, vou sempre fazê-los ler muito, vou sempre ditar muito e fazê-los escrever muito, a despeito do choro e das lamúrias de alguns. Não, não é um fazer agradável (do ponto de vista do aluno), mas com resultados certos para quem se submeta a eles: o aprendizado a que se almeja. E, como professor, é nos resultados que centro meus esforços e nunca em agradar a meus alunos. Educar quase sempre guarda o caminho oposto ao de causar impressão de agrado. Já nos asseverava Aristóteles, muito tempo antes, que “as raízes da árvore do conhecimento são amargas, mas seus frutos são doces.” E eu completaria: não colherá fruto doce algum no amanhã, aquele que não se concentrar em plantar raízes amargas no agora. Quanto a mim, eu só forneço as sementes e ensino a plantar da melhor forma que posso. E, acreditando, como acredito, que o homem seja um ser do conhecimento, crendo ainda que isto seja um direito fundamental (e, portanto, indisponível), vou continuar fazendo assim, a despeito mesmo do eventual querer contrário de alguns pupilos. Dissemos que ser professor é ser pai de muitos. E um pai empurra ‘goela abaixo’ o medicamento, sob os protestos e o choro do filho, ciente de que lhe fará bem. É que o pai, assim como o professor, foca a cura futura e duradoura que o medicamento possibilita; ao passo que o filho, como o aluno, só enxerga o amargor temporário e imediato do medicamento.

Eis o nosso papel então... o papel do professor não é outro, senão acendermos fogueiras na noite escura da ignorância. Acendamos fogueiras na noite. Fogueiras ao redor das quais partilhemos histórias de bom-senso, histórias de humanismo, histórias de sensibilidade e de empatia. Circundemos fogueiras que aclarem que o ente humano não pode nunca ser preterido em face de qualquer outro valor político ou mercadológico, fogueiras que afastem as sombras autoritárias do passado que teimam em retornar. Acendamos fogueiras na noite. A menor luz da razão há de dissipar as trevas. E não há maior recompensa para um professor senão ver os alunos tomando o bastão que carregamos até então, tornando-se, eles também, e cada um a seu modo, professores, conduzindo, eles mesmos, a luz da razão e dissipando as trevas da ignorância.

 

                                                                                 Francisco de Sousa Vieira Filho

 


[1] Francisco de Sousa Vieira Filho é advogado em Teresina-PI, militando sobretudo na área cível e trabalhista; é especialista em Direito Constitucional pelo LFG (2012); é mestre em Direito pela Universidade Autônoma de Lisboa (2014), revalidado no Brasil pela UFRN (2015); é professor em faculdades públicas e particulares em Teresina e no interior do Estado do Piauí, ministrando, entre outras disciplinas: Direito Constitucional I, II e III, Direito Contratual I, II e III, Internacional Público, Internacional Privado, Filosofia Geral e Jurídica, Ética e Deontologia Jurídicas, Metodologia da Pesquisa Jurídica, TCC, Medicina Legal, Direito do Trabalho I, Direito Penal IV, Direito Administrativo II, Direito Tributário, Direito Previdenciário e Criminologia. Atualmente está coordenador de Residência Jurídica junto à ESA-PI, tendo trabalhado na confecção do projeto do primeiro mestrado em Direito do Estado e está coordenador de pós-graduações em Direito da Escola do Legislativo do Estado do Piauí.

[2] Texto-base de palestra proferida na semana das profissões da OAB-PI, abordando o papel do professor;

[3] Cf. [s.n.] Disponível em: <http://bdm.unb.br/bitstream/10483/1856/1/2011_CarladeMoraisBraga.pdf> Acesso em: 29.11.2018.

[4] Cf. Flávio Antônio da Cruz, texto adaptado e ampliado, inspirado no livro, Sapiens, de Yuval Noah Harari.

[5] Cf. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade.

[6] GAIMAN, Neil. Sandman: edição definitiva, volume 1. Introdução.

Sobre o autor
Francisco de Sousa Vieira Filho

Advogado, militando sobretudo na área trabalhista, em Teresina-PI, Especialista em Direito Constitucional pelo LFG e Mestre em Direito pela Universidade Antônoma de Lisboa. Professor nas faculdades AESPI e FAPI, e professor substituto na UESPI (Campus Clóvis Moura). Autor dos livros: Lira Antiga Bardo Triste (2009); Lira Nova Bardo Tardo (2010) e Codex Popul-Vuh - ramo de folhas (2013).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Ensaio fruto de palestra proferida na OAB-PI, por ocasião da Semana das Profissões, em 30/10/2018

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