Remessa Necessária. Aspectos Relevantes e alterações do CPC/15

* Luiz Fernando Valladão Nogueira

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A remessa necessária, no âmbito do código de processo civil, pode ser vista como o instituto que garante o duplo grau de jurisdição para reexame das decisões contrárias à fazenda pública, nas circunstâncias delineadas em lei.

  1. Conceito e justificativa. Princípios. Duplo grau de jurisdição e a fazenda pública.

A remessa necessária, no âmbito do código de processo civil, pode ser vista como o instituto que garante o duplo grau de jurisdição para reexame das decisões contrárias à fazenda pública, nas circunstâncias delineadas em lei. Vale dizer que, nas situações em que ela incidir, funcionará como condição de eficácia da decisão, de forma a impedir a coisa julgada até que haja o reexame pelo tribunal. Enquanto não julgada a remessa necessária, o título judicial em reexame estará destituído de exigibilidade, não podendo lastrear a pretensão executória.

A justificativa principiológica à remessa necessária está na proteção constitucional à fazenda pública. Com efeito, a proteção aos interesses da fazenda pública implica na indisponibilidade dos direitos a ela inerentes, ao ponto, por exemplo, de erigir-se mecanismos protetivos constitucionais, como é o caso da exigência de licitação (art. 37 inc XXI CF) e a submissão dos seus credores ao sistema de precatório (art. 100 CF).

Na seara infraconstitucional, há muito que a jurisprudência entende que os dispositivos processuais, pertinentes aos efeitos da revelia e à confissão ficta, não atingem os interesses da fazenda pública, exatamente por serem indisponíveis os seus direitos. Assim é que o STJ, mesmo na vigência do CPC/73, já sustentava que sendo indisponíveis os interesses estatais, esses são insuscetíveis de confissão, a teor do art. 351 do CPC” (REsp 1099127 / AM, rel. Min. Castro Meira, DJ 24.02.2010). E mais: “É orientação pacífica deste Superior Tribunal de Justiça segundo a qual não se aplica à Fazenda Pública o efeito material da revelia, nem  é  admissível,  quanto  aos  fatos  que  lhe  dizem respeito, a confissão,  pois  os  bens e direitos são considerados indisponíveis (AgInt  no  REsp 1358556/SP, Relatora Ministra Regina Helena Costa,Primeira  Turma,  DJe  18/11/2016;  AgRg  no  REsp 117.0170/RJ, Rel. Ministro Og Fernandes, Sexta Turma, DJe 9/10/2013 e AgRg nos EDcl noREsp  1.288.560/MT,  Rel.  Ministro Castro Meira, Segunda Turma, Dje 3/8/2012)”. (REsp 1666289 / SP, rel. Min. Herman Benjamim, DJ 30/06/2017).  

Pode-se dizer, pois, que o princípio implícito da indisponibilidade do interesse público justifica a instituição da remessa necessária. Protege-se, por meio da remessa necessária e com fulcro no noticiado princípio, a fazenda pública de eventual desídida, decorrente de não interposição do recurso ou na sua apresentação incompleta.

Deve-se pontuar, em contrapartida, que o CPC/15 encampou outros princípios, também relevantes, tais como o da primazia do mérito, duração razoável do processo e eficiência (arts. 4o, 6o e 8o). Não se descuide, inclusive, que tais princípios decorrem de outro, de natureza constitucional, que assegura o devido processo legal, além daquele que, literalmente, assinala sobre a duração razoável do processo (arts. 5o incs. LIV e LXXVIII). Isso significa que, a partir do critério de ponderação de princípios, toda interpretação que se faça necessária ao redor do instituto da remessa necessária deve observar ambos os parâmetros (supremacia e indisponibilidade dos interesses da fazenda pública X eficiência e razoável duração do processo para o deslinde do mérito).

Vale acrescer que a remessa necessária não se caracteriza como recurso, eis que não decorre de ato daquele que sucumbiu. Ao revés, a remessa necessária é ato do juízo, na medida em que a decisão, naquelas situações legais, deve, necessariamente e independente da vontade do sucumbente, sujeitar-se ao reexame pelo tribunal.

  1. Base legal e atos judiciais sujeitos à remessa necessária.

A previsão, no âmbito do código processual, acerca da remessa necessária, está no art. 496.

Com efeito:

Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de confirmada pelo tribunal, a sentença:

I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - que julgar procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal.

Antes de adentrar-se em análise sobre as hipóteses de cabimento, inclusive outras estabelecidas em leis esparsas, impõe-se, agora, uma análise sobre o ato judicial que se sujeita à remessa necessária.

Da mesma forma que o art. 476 CPC/73, o atual art. 496 frisa que a remessa necessária dar-se-á em face de “sentença”. E, sabidamente, na vigência do código revogado, falava-se que “a jurisprudência desta Corte Superior de Justiça é no sentido de que a sujeição à remessa de ofício somente alcança as sentenças, não sendo aplicadas às decisões interlocutórias, de acordo com a redação do artigo 475 do Código de Processo Civil." (AgRg no REsp 757.837/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 08/09/2009, DJe 28/09/2009).[1] 

O entendimento anterior tinha razão de ser, pois no código revogado inexistia previsão específica para cisão do julgamento das pretensões das partes. A deliberação sobre os pedidos formulados e a extinção do processo em 1ª instância ocorriam quando da sentença, sendo lógico que a exceção em que consiste a remessa necessária só aí deveria incidir. As questões incidentais no curso do processo (interlocutórias), por mais relevantes que fossem, não atrairiam a remessa necessária, exatamente por não extinguirem o processo[2]. É que, do contrário, teríamos diversas remessas necessárias no curso do processo, atentando-se contra a duração razoável do processo e estabelecendo-se uma prerrogativa desproporcional à fazenda pública.

Acontece que o código processual de 2015 literalizou e estimulou a cisão do julgamento de mérito.

Assim é que os arts. 354 par. único e 356 CPC tratam do tema:

Art. 354.  Ocorrendo qualquer das hipóteses previstas nos arts. 485 e 487, incisos II e III, o juiz proferirá sentença.

Parágrafo único.  A decisão a que se refere o caput pode dizer respeito a apenas parcela do processo, caso em que será impugnável por agravo de instrumento.

Art. 356.  O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles:

I - mostrar-se incontroverso;

II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355.

§ 1o A decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida ou ilíquida.

§ 2o A parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto.

§ 3o Na hipótese do § 2o, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva.

§ 4o A liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz.

§ 5o A decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento.

Foi clara a opção do legislador, em sintonia com os princípios da primazia do mérito e duração razoável do processo (arts. 4º e 6º CPC), além daquele que estimula a eficiência (art. 8º CPC), em querer permitir julgamentos parciais do mérito.

O juiz poderá decidir, por exemplo, um pedido contra a fazenda pública, satisfeito com a prova documental que acompanhou inicial e contestação, pelo qual se pretende a anulação de crédito tributário; porém, o pedido cumulado de repetição de indébito poderá depender de prova pericial e, eventualmente testemunhal, o que inviabilizará a prestação jurisdicional definitiva em 1º grau, já naquele instante. Em casos como este, o juiz poderá, desde já, anular o crédito tributário por decisão interlocutória, sendo que o processo prosseguirá quanto ao outro pedido que depende de provas pendentes de produção. Lembre-se que vigora entre nós o critério finalístico (sentença será o ato judicial, apenas se o juiz colocar fim ao processo; do contrário, a deliberação será decisão interlocutória). Assim, no exemplo dado, frise-se, teremos decisão interlocutória de mérito, atacável por agravo de instrumento (arts 356 § 5º e 1015 II CPC).

O que se percebe é que o legislador, desta feita, assim como fez em outras oportunidades (exemplos: arts. 504 I e II e 550 § 5º CPC)[3], cometeu um deslize ao usar a expressão “sentença” no art. 496, quando deveria se valer de outra mais genérica, qual seja “decisão”. A interpretação sistemática e teleológica conduz à conclusão que, por conta desta mudança decorrente da cisão do julgamento de mérito, a remessa necessária também ocorrerá quando a decisão interlocutória enfrentar um dos pedidos ou parcela deles, deixando o remanescente para julgamento mais adiante.

Aliás, tanto é verdade o que ora se advoga, que, ao tratar da monitória e da decisão interlocutória que constitui, na ausência de embargos, a prova escrita em título executivo judicial, o próprio legislador impôs, quando contrária à fazenda pública a deliberação, a remessa necessária.

Vale conferir:

                  § 4o Sendo a ré Fazenda Pública, não apresentados os embargos previstos no art. 702, aplicar-se-á o disposto no art. 496, observando-se, a seguir, no que couber, o Título II do Livro I da Parte Especial.

Para completar o raciocínio ora defendido, vale lembrar que, também sintonizado com a alteração aqui decantada, o código processual ampliou o cabimento da ação rescisória, fazendo-a admissível também contra a decisão interlocutória, desde que seja de mérito (art. 966 CPC “A decisão de mérito, transitada em jugado, pode ser rescindida quando...”).

Em síntese, o CPC/15 ampliou o cabimento da remessa necessária para as hipóteses em que a decisão interlocutória resolve um dos pedidos ou parcela deles, contrariamente à fazenda pública[4]. Neste particular, em virtude da alteração legislativa que impôs esta interpretação sistemática e teleológica, deve ser superada a jurisprudência do STJ vigente à época do código processual revogado.

  1. Hipóteses de cabimento. Interpretação analógica X restritiva. Hipóteses de dispensa (aspectos qualitativo e quantitativo).

O art. 496 do código processual estabelece incidir a remessa necessária, para as hipóteses em que as decisões forem proferidas “contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas autarquias e fundações de direito público” (inc. I). Acresceu sua incidência, ainda, para as decisões que julgarem “procedentes, no todo ou em parte, os embargos à execução fiscal” (inc. II).

Cabe destacar, por força de determinações em leis esparsas, outras hipóteses de incidência do instituto em tela, e que vão além, inclusive, dos interesses da fazenda pública: decisões concessivas de mandado de segurança (art. 14, § 1.º, da Lei 12.016/2009); que extinguem a ação popular por carência de ação ou improcedência do pedido (art. 19 da Lei 4.717/1965); que concluem pela carência de ação ou improcedência do pedido em ação destinada à tutela de interesses de portadores de deficiência (art. 4º § 3º Lei 7853/89); que, em ação de desapropriação, condenam a Fazenda Pública em quantia superior ao dobro da oferecida (art. 28 § 1º Dec. 3365/41).   

Como aqui já adiantado, embora a indisponibilidade dos direitos da fazenda pública seja a motivação da remessa necessária, não se pode descuidar, outrossim, dos princípios da primazia do mérito e da eficiência. Se assim ocorre, parece que o critério da ponderação dos princípios deve conduzir, mormente em tempos atuais, à prevalência de uma interpretação que seja restritiva. Ou seja, ofende a duração razoável do processo e o ideal de enfrentamento do mérito o quanto antes a ampliação da remessa necessária a casos em que o legislador não especificou.

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Nessa linha de raciocínio, é válido afirmar não ser a relevância dos valores em discussão - o que possui carga de subjetividade -, que imporá a remessa necessária com postergação da coisa julgada, até mesmo contra os interesses da parte sucumbente.

Portanto, parece inadequada qualquer interpretação ampliativa ou analógica, no tocante ao cabimento da remessa necessária[5].

Diferente disso, o STJ vem sustentando que, em razão da "aplicação analógica da primeira parte do art. 19 da Lei nº 4.717/65, as sentenças de improcedência de ação civil pública sujeitam-se indistintamente ao reexame necessário" (REsp 1.108.542/SC, Rel. Ministro Castro Meira, j. 19.5.2009, DJe 29.5.2009)[6].

Todavia, parece oportuna a revisão de tal posicionamento, porquanto os princípios devem ser ponderados, à luz daquilo que os impulsiona, em tempos atuais. Ora, o Código de Processo Civil, de 2015, é diploma mais recente, sendo que consubstanciou, por força dos princípios da primazia do mérito e da eficiência, o desejo de que a postergação à coisa julgada só ocorra, em situações absolutamente necessárias e previstas em lei. Demais disso, quanto especificamente à ação civil pública, tem-se autorização expressa, apenas, para a aplicação subsidiária do código processual civil (art. 19 Lei 7347/85), mas não da lei de ação popular no ponto em que impõe a remessa necessária (art. 19 Lei 4.717/65).

Aliás, a partir de premissas de tal jaez, há precedente do próprio STJ que mitiga a indevida ampliação, inadmitindo a remessa necessária em face de decisões que julgam ações coletivas que versam sobre direitos individuais homogêneos. Confira-se:

PROCESSUAL CIVIL E CONSUMIDOR. RECURSO ESPECIAL. PLANOS DE SAÚDE. REAJUSTES DO "PROGRAMA DE READEQUAÇÃO". OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU ERRO MATERIAL. AUSÊNCIA. REMESSA NECESSÁRIA. AÇÃO COLETIVA. DIREITO INDIVIDUAIS HOMOGÊNEOS. NÃO CABIMENTO. ... 3. O fundamento da remessa ou reexame necessário consiste em uma precaução com litígios que envolvam bens jurídicos relevantes, de forma a impor o duplo grau de jurisdição independentemente da vontade das partes. 4. Ações coletivas que versam direitos individuais homogêneos integram subsistema processual com um conjunto de regras, modos e instrumento próprios, por tutelarem situação jurídica heterogênea em relação aos direitos transindividuais. 5. Limites à aplicação analógica do instituto da remessa necessária, pois a coletivização dos direitos individuais homogêneos tem um sentido meramente instrumental, com a finalidade de permitir uma tutela mais efetiva em juízo, não se deve admitir, portanto, o cabimento da remessa necessária, tal como prevista no art. 19 da Lei 4.717/65. 6. Recurso especial conhecido e provido. (REsp 1374232/ES, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/09/2017, DJe 02/10/2017)

O que se percebe, a partir dessa incômoda e perigosa variação jurisprudencial, é que a segurança jurídica e a isonomia recomendam interpretação firme e reta, e de cunho restritivo, quanto às hipóteses de incidência da remessa necessária. Análises subjetivas sobre a relevância do bem jurídico em discussão não podem estimular a ampliação ou analogia.

Por outro lado, tem-se, sob a ótica quantitativa, limitações especificadas pelo código processual. Eis os limites impostos pelo § 3º do art. 496:

3o Não se aplica o disposto neste artigo quando a condenação ou o proveito econômico obtido na causa for de valor certo e líquido inferior a:

I - 1.000 (mil) salários-mínimos para a União e as respectivas autarquias e fundações de direito público;

II - 500 (quinhentos) salários-mínimos para os Estados, o Distrito Federal, as respectivas autarquias e fundações de direito público e os Municípios que constituam capitais dos Estados;

III - 100 (cem) salários-mínimos para todos os demais Municípios e respectivas autarquias e fundações de direito público.

A referência, no caput do dispositivo, à expressão “valor certo e líquido” conduz à percepção de que subsistem os termos da súmula 490 STJ: A dispensa de reexame necessário, quando o valor da condenação ou do direito controvertido for inferior a sessenta salários mínimos, não se aplica a sentenças ilíquidas”.

A contrario sensu, pode-se afirmar que a decisão que trouxer condenação genérica quanto ao valor da condenação (depende de liquidação) não está liberada da remessa necessária.

No mais quanto a este particular, tem-se que o legislador cuidou de estabelecer gradação de valores, conforme o âmbito em que se situam o ente da federação e as respectivas autarquias e fundações de direito público.

Quanto ao aspecto qualitativo das decisões, há dispensas legais estabelecidas pelo § 4º do art. 496 CPC:

§ 4o Também não se aplica o disposto neste artigo quando a sentença estiver fundada em:

I - súmula de tribunal superior;

II - acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça em julgamento de recursos repetitivos;

III - entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência;

IV - entendimento coincidente com orientação vinculante firmada no âmbito administrativo do próprio ente público, consolidada em manifestação, parecer ou súmula administrativa.

O inc. I do dispositivo transcrito dispensa a remessa necessária, para as hipóteses em que a decisão fundou-se em súmula de tribunal superior. A referência aí não é, apenas, à súmula vinculante, cuja edição é de competência exclusiva do STF. Mais do que isso, o legislador, movido pelo impulso do art. 926[7] e pela vinculação advinda do art. 927 IV[8], dispensa a remessa necessária também às demais súmulas, inclusive do STJ.

O inc. II alude aos acórdãos do STF e do STJ, em sede de recursos repetitivos. A disposição legal está em sintonia com o caráter vinculativo de tais acórdãos (arts. 927 III e arts. 1036 a 1041 CPC).

Na mesma toada, o inc. III vem dispensar a remessa necessária para as hipóteses em que a decisão estiver em sintonia com o que decidido em incidentes de resolução de demanda repetitiva e assunção de competência. Aqui também falou mais alto o caráter vinculativo das referidas decisões, conforme apura-se dos dispositivos que as regulamentam (arts. 947 e 976 a 987 CPC). Demais disso, guarda coerência com o enunciado geral de vinculação, contido no art. 927 III CPC[9].

Enfim, o inc. IV, em comunhão com o princípio da cooperação entre os sujeitos do processo, dispensa a remessa necessária, se a própria fazenda pública já houver orientado, de forma vinculante, seus servidores e em especial os advogados públicos, a resignarem-se quanto a deliberações judiciais sobre determinados temas. Por exemplo, se a fazenda pública determina, internamente, que não se tribute mais certa atividade, não faz sentido que a decisão excludente da tributação em algum processo anterior a esta determinação seja submetida à remessa necessária. Ou, ainda, se há parecer interno e vinculativo no sentido de que os advogados públicos não devem mais recorrer de decisões judiciais sobre alguns temas, é óbvio que a remessa necessária nestes casos estaria sendo mais realista que o rei, razão pela qual a lei a dispensa.

Ainda cabe o registro de que, como já afirmado alhures, há previsões de remessa necessária em leis esparsas, inclusive em benefício não apenas da fazenda pública. A dúvida é sobre a aplicação das hipóteses de dispensa da remessa necessária contidas apenas no CPC, também para as situações reguladas por aqueles diplomas fora do código. Por exemplo, seria dispensável a remessa necessária na sentença concessiva de mandado de segurança, fundada em entendimento firmado pelo STJ em sede de recurso especial repetitivo? A resposta, à luz de interpretação sistemática e teleológica, é positiva.

Com efeito, a primazia do mérito, a eficiência e a duração razoável do processo, aqui já ressaltados, são princípios revigorados pelo recente código de processo civil de 2015. Logo, a interpretação, em situações conflitantes como esta, deve estar atenta a esses princípios, de forma que se dispense, aí também, a remessa necessária. Ademais, a unidade do sistema é algo alinhado à segurança jurídica e à isonomia, de forma a impor a dispensa da remessa em hipóteses limitativas de ordem qualitativa ou quantitativa, sejam quais forem a natureza do procedimento e o diploma legal que o regule (ação de rito comum, execução fiscal, mandado de segurança, ação popular etc...).

Quanto a este ponto, ao que parece, a jurisprudência em sentido contrário[10] merece ser repensada e adaptada ao impulso dado pelo código processual de 2015 aos princípios aqui aludidos.

  1. Limites do efeito devolutivo na remessa necessária. 

 Os recursos, como decorrência do efeito devolutivo, detém a aptidão de encaminhar à instância ad quem o reexame da matéria impugnada. Esta é a regra geral.

Quanto à remessa necessária, que não é recurso e sim ato do juízo, tem-se que é devolvida ao tribunal toda a matéria decidida desfavoravelmente à parte que se quer proteger. Com efeito, independente do recurso da parte, todos os capítulos da decisão que lhe são desfavoráveis estarão abrangidos pela remessa necessária. Esta é a razão de ser da remessa necessária, sendo certo, nessa linha lógica de raciocínio, ser vedado, no âmbito apenas da remessa necessária, piorar a situação daquela parte que é protegida por tal instituto.

A propósito, continua atual a súmula 45 STJ, no sentido de que “no reexame necessário, é defeso, ao tribunal, agravar a condenação imposta à fazenda pública”.  O mesmo pode ser dito sobre a súmula 325 daquela Corte: “A remessa oficial devolve ao tribunal o reexame de todas as parcelas da condenação suportadas pela Fazenda Pública, inclusive dos honorários de advogado”.

Vale acrescer que, com relação à fazenda pública, a interpretação mais sintonizada com todo o sistema processual é no sentido de que a remessa necessária abarca, inclusive, a matéria objeto de pretensão não resistida. É que, como cediço, é indisponível o direito da fazenda pública, razão pela qual não se lhe aplicam os efeitos da confissão ficta e da revelia[11]. E, se assim ocorre, não tendo havido ainda a coisa julgada por força da remessa necessária, deve o tribunal reexaminar todas as matérias desatadas desfavoravelmente à fazenda pública, independentemente de resistência ou insurgimento no curso do processo.

Apenas fica a ressalva de que, em havendo assimilação pelo tribunal de fato novo ou matéria jurídica até então incontroversa, inclusive  aquelas conhecíveis de ofício, deve, atento à concretude dada ao princípio do efetivo contraditório, ouvir, antes, as partes. Neste sentido, o art. 10 do código processual[12], ao vedar a decisão surpresa, não excluiu de seu raio de alcance a remessa necessária.

  1. Especificidades derradeiras e conclusão.

De destacar-se que há dois institutos criados pelo CPC/15, os quais não atingem a remessa necessária. Com efeito, diante da redação clara do art. 942, em especial do seu § 4º inc. II[13], tem-se que o procedimento de ampliação do órgão julgador, nas hipóteses de divergência no tribunal, não se aplica à remessa necessária. No mesmo caminho, por força da referência à expressão “recursos”, tem-se que o art. 85 § 11[14] não se aplica à remessa necessária. Ou seja, o tribunal não majorará a verba honorária quando do julgamento da remessa necessária.

Em sede de conclusão, pode-se afirmar que a remessa necessária, a despeito de intensos questionamentos, foi mantida em nosso código processual, inclusive com incidência nas decisões interlocutórias que solucionam os pedidos das partes. Isso, todavia, não afasta a necessidade de que, doravante, as controvérsias sobre o tema sejam interpretadas de forma sintonizada com os princípios revigorados pelo novo diploma processual, com ênfase à duração razoável do processo, primazia do mérito e eficiência na prestação jurisdicional. Em outras palavras, o instituto em tela subsiste, mas sua incidência deve se dar de maneira limitada ao rol exauriente da lei. Ademais, deve ser afastada ou dispensada a remessa necessária quando ofender a unicidade do sistema.

Sobre o autor
Luiz Fernando Valladão Nogueira

Advogado, procurador do Município de Belo Horizonte; diretor do IAMG (Instituto dos Advogados de Minas Gerais); professor de Direito Civil e Processo Civil na Faculdade de Direito da FEAD; professor de Pós- Graduação na Faculdade de Direito Arnaldo Janssen; autor de diversas obras jurídicas, dentre elas "Recursos em Processo Civil" e "Recurso Especial" (ed. Del Rey); membro do Conselho Editorial da Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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