Autor: Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia, Medicina Legal e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na pós – graduação do Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética e Direitos Fundamentais do Programa de Mestrado do Unisal.
O crime de estelionato é previsto no artigo 171, CP e consiste, em linhas gerais, na indução ou manutenção de alguém em erro, para o fim de obtenção de indevida vantagem patrimonial em prejuízo da vítima.
Há discussão doutrinária a respeito da chamada “fraude ou torpeza bilateral”. Isso ocorre quando a própria vítima do estelionato também atua com má fé. São os conhecidos casos do “bilhete premiado” e outros golpes que somente funcionam quando a pessoa visada pelo agente também obra de maneira torpe.
Rogério Greco apresenta e se filia à tradicional doutrina de Nelson Hungria, entendendo que “nesses casos, não seria possível a punição do agente pelo crime de estelionato”. Não obstante, o próprio autor reconhece que o entendimento majoritário é “pela existência do delito de estelionato, não importando a má fé do ofendido, ou seja, se sua finalidade também era torpe (ilegal, imoral etc.)”. [1] Andreucci afirma categoricamente que a “torpeza bilateral não descaracteriza o estelionato”. [2]
Mirabete e Fabbrini, com fulcro nas lições de Vincenzo Manzini, Edgard Magalhães Noronha, Heleno Fragoso e Bento de Faria, também destacam o predomínio doutrinário no sentido de “ocorrer estelionato na fraude bilateral”. O mesmo vale, conforme expõem os autores para a jurisprudência pátria dominante, a qual indica “que a torpeza simultânea não exclui o delito nem pode erigir-se em causa de isenção penal”. [3] No mesmo diapasão, Celso Delmanto indica a prevalência da jurisprudência no sentido de não desnaturação do estelionato pela torpeza bilateral, inclusive com decisão do Supremo Tribunal Federal. [4]
Na mesma senda se apresenta o escólio de Nucci para quem a “torpeza bilateral em tese não afasta o delito, pois o tipo penal não exige que a vítima tenha boas intenções”. [5] Não obstante, o mesmo autor afirma anteriormente que quando a vítima “se deixar envolver, por mera desatenção de sua parte”, é defensável o entendimento da não configuração do delito. [6]
Esse vislumbre do autor brasileiro, embora não chegue a mencionar a fonte, é coincidente com o que se tem atualmente visto defender na dogmática estrangeira a respeito da aplicação da chamada “vitimodogmática” e da consideração da possibilidade de “autoproteção” da vítima para formar a convicção sobre a ocorrência ou não de infração penal. Sabe-se que a vitimodogmática trata especialmente do comportamento da vítima como precipitador da conduta criminosa, bem como das consequências desse fato. Oliveira, com fulcro nos entendimentos de Manuel Cancio Meliá e Jesús María Silva Sánchez, aponta como central na discussão vitimodogmática o estudo do comportamento da vítima no seio da ciência penal e como em que medida esse comportamento pode influir na determinação da responsabilidade do autor do crime. [7]
Uma autora como Tatjana Hörnle trata da questão exatamente tendo como paradigma o crime de estelionato, indicando para a necessidade de verificar o comportamento da vítima e sua atuação efetiva ou não em autoproteção do próprio patrimônio para chegar a uma conclusão positiva sobre a configuração delitual:
“Aun cuando se este de acuerdo que en la Parte Especial del CP alemán es necesaria, por ejemplo, una prohibición penal bajo la rubrica de ‘estafa’, [8] queda por discutir si y en su caso cómo repercute un grave descuido de la autoprotección por parte de la víctima en casos concretos”. [9]
A vitimodogmática no bojo da literatura jurídico – penal alemã tem estudado a projeção da autoproteção com relação à solução de problemas de interpretação de certos tipos penais. Há grande destaque dessa discussão no que tange ao crime de estelionato ou outras fraudes patrimoniais, de forma que se tem considerado que a existência de uma séria dúvida quanto à presença de fraude contra si por parte da vítima e sua inércia em apurar devidamente a situação, a tornaria indigna de proteção penal. [10]
Assim sendo:
“Conforme a un modelo de sociedad contractual, el Estado únicamente tendrá reconocido el uso de la pena cuando tanto las otras posibilidades de intervención estatal como las posibilidades de protección independente de los bienes jurídicos alcancen sus limites. En primer lugar, según Schünemann, el próprio ciudadano debe mantener la disponibilidad sobre sus bienes jurídicos; así, solo necesita al Estado cuando fracasa su autoprotección. Sólo en esta medida el contrato social autoriza el uso de un poder penal”. [11]
Entretanto, não é totalmente pacífico, mesmo dentre os defensores da aplicação das considerações vitimodogmáticas acima expostas, qual seria a melhor construção de uma solução para a interpretação e aplicação dos tipos penais em situações de negligência vitimal em relação à autoproteção de bens jurídicos.
Há objeções quanto a uma suposta divisão do injusto entre o autor e a vítima, de tal forma que, mesmo havendo o cometimento do ilícito, não reste reprimenda a aplicar ao seu autor. Nesse passo, se o autor infringiu um tipo penal existente, restaria inevitavelmente o “desvalor da conduta de desrespeito da norma”. E se o tipo penal existe com a função de proteção dos bens jurídicos das vítimas, havendo sua infração, não seria admissível uma suposta “compensação” com a desatenção vitimal ante as possibilidades de autoproteção. Disso resultaria que o fato de a vítima renunciar ou negligenciar à sua autoproteção, pode conduzir a uma redução do injusto, mas jamais à sua supressão. Ocorre que, mesmo diante dessas objeções, não se descarta de forma geral e peremptória, uma possível “renúncia ao castigo”. Tal renúncia ainda seria possível sempre que o “desvalor do resultado” da conduta fosse insignificante, diante da diminuição do injusto ocasionada pela omissão de autoproteção por parte da vítima. [12]
Parece bastante claro que, de acordo com esse pensamento, uma negligência vitimal tal que chega ao ponto de haver, por parte da vítima, uma atuação de má fé (torpeza ou fraude bilateral no estelionato), sem a qual o ilícito jamais se consumaria, levaria certamente a um afastamento da configuração do tipo penal ou, no mínimo, a uma redução tal do injusto, apta a impedir a aplicação de pena ao autor. Como afirma Hörnle, seria o caso de permitir a renúncia à pena ou, ao menos, sua diminuição considerável sempre que o vitimado , apesar de conhecer o risco atual a que estava se submetendo, acaba omitindo o cuidado possível e razoável apto a evitar danos. [13]
Conclui-se que, apesar de praticamente assentado, de forma quase unânime, na doutrina e jurisprudência brasileiras que a fraude ou torpeza bilateral não desnatura o estelionato, esse pensamento é passível de reavaliação crítica diante de argumentos dogmáticos encontráveis dentre autores alemães, bem como, também, na doutrina brasileira, a exemplo da clássica lição de Nelson Hungria, abraçada por Rogério Greco e da intuição de Nucci ao destacar a importância da “absoluta desatenção da vítima” como elemento capaz de desconfigurar o estelionato.
REFERÊNCIAS
ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.
BERTACHINI, Núria. Espanhol Jurídico. Disponível em www.migalhas.com.br, acesso em 17.07.2018.
DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1991.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 11ª. ed. Niterói: Impetus, 2017.
HIRSCH, Andrew Von, SEELMAN, Kurt, WOHLERS, Wolfgang, PLANAS, Ricardo Robles. Límites al Derecho Penal. Trad. Ricaro Robles Planas. Barcelona: Atelier, 2012.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 30ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2008.
OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: RT, 1999.
[1] GRECO, Rogério. Código Penal Comentado. 11ª. ed. Niterói: Impetus, 2017, p. 677.
[2] ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Código Penal Anotado. 4ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 453.
[3] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 30ª. ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 289 – 290.
[4] DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1991, p. 305.
[5] NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 9ª. ed. São Paulo: RT, 2008, p. 787.
[6] Op. cit., p. 786.
[7] OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A Vítima e o Direito Penal: uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: RT, 1999, p. 133.
[8] Esclareça-se que, conforme Bertachini, “Estafa é como se denomina, em espanhol, o delito de enganar alguém para causar prejuízo patrimonial, com ânimo de lucro”, ou seja, o correspondente ao nosso estelionato. Cf. BERTACHINI, Núria. Espanhol Jurídico. Disponível em www.migalhas.com.br, acesso em 17.07.2018.
[9] HÖRNLE, Tatjana. Subsidiariedad como principio limitador. Autoprotección. In: HIRSCH, Andrew Von, SEELMAN, Kurt, WOHLERS, Wolfgang, PLANAS, Ricardo Robles. Límites al Derecho Penal. Trad. Ricardo Robles Planas. Barcelona: Atelier, 2012, p. 89.
[10] Op. cit., p. 90. A autora cita como aderentes a esta posição estudiosos como Amelung, Hassemer e Schünemann.
[11] Op. cit., p. 91.
[12] Op. Cit., p. 95.
[13] Op. Cit., p. 97 – 98.