Resumo: O início da contagem do prazo decadencial nos vícios redibitórios é matéria controversa na doutrina civilista brasileira. A despeito de haver expressa previsão legal, o tema desperta questionamentos acerca do fato ensejador da quebra da inércia, aquele que dá início à marcha decadencial. As opiniões baseiam-se, de um lado, na segurança jurídica, a fim de resguardar a atividade econômica do protraimento indefinido do referido prazo, e de outro lado na proteção do consumidor, em decorrência da sistemática alegadamente paternalista do Código de Defesa do Consumidor. A solução para a questão dependerá, cada vez mais, da análise casuística que leve em consideração a própria dinâmica comercial contemporânea, em especial fatores como a transnacionalidade das partes dos produtos e mecanismos como a obsolescência programada e vendas online.
Palavras-chave: Vícios redibitórios. Prazo. Termo inicial. Bens móveis. Código Civil.
Introdução
As relações comerciais contemporâneas se complexificam no ritmo dos avanços tecnológicos e científicos. Como o Direito não acompanha em velocidade suficiente essa evolução, alguns institutos jurídicos tornam-se obsoletos ou inaplicáveis antes mesmo de sua consolidação nas relações de consumo.
Um desses casos é o da definição de prazo decadencial dos vícios redibitórios. Isso porque certos mecanismos mercantis esvaziam seu conteúdo pela própria dinâmica consumerista. O exemplo mais explícito é o da obsolescência programada, que em certos casos torna um modelo ultrapassado antes mesmo de seus exemplares apresentarem alguma falha, ou quando atualizações de software inviabilizam-no para as novas tarefas disponibilizadas antes da percepção de algum defeito no produto.
Como essas mini revoluções tecnológicas movem-se pela lógica do mercado e do lucro, seus ciclos tendem a encurtarem-se cada vez mais, desde que proporcionem maximização de faturamento.
Diante desse quadro, a definição de prazo decadencial para a aplicação do instituto da redibição deve ser adequado à realidade dos produtos objeto da relação contratual.
Entretanto, como o nosso Código Civil data de 2002, esses prazos foram definidos sem antever a atual dinâmica de comércio. Aliado a isso, há divergência de entendimento sobre o termo inicial de contagem dos referidos prazos, com uma corrente defendendo uma posição que levaria a uma quase eternização da relação produtor/consumidor.
Devido a isso, o presente artigo tentará trazer argumentos para que o termo inicial do prazo decadencial para a redibição seja entendido restritivamente, a fim de se garantir estabilidade regulatória em favor dos produtores para tentar, assim, evitar a transferência do ônus da insegurança jurídica aos consumidores.
Discussão
Os vícios redibitórios são considerados os defeitos ocultos nos objetos de negócios jurídicos que os tornam imprestáveis ou acarretam desvalorização excessiva do bem.
O instituto em questão está disciplinado na Seção V, Capítulo I do Título V do Código Civil - CC, que assim dispõe:
“Art. 441. A coisa recebida em virtude de contrato comutativo pode ser enjeitada por vícios ou defeitos ocultos, que a tornem imprópria ao uso a que é destinada, ou lhe diminuam o valor”.
O artigo colacionado acima determina alguns requisitos para a configuração do instituto, a saber, a relação contratual entre as partes, a existência de defeitos ocultos ou vícios, e que estes afetem a usabilidade ou o valor econômico do objeto da avença.
Entretanto, há uma limitação temporal para que o adquirente exerça seu direito “de rejeitar a coisa” (art. 442. do CC, que trata da ação redibitória, também chamada de ação edilícia), em razão da necessidade de estabilização das relações contratuais e da segurança jurídica. Esse prazo é disciplinado no Código Civil no seguintes termos2:
“Art. 445. O adquirente decai do direito de obter a redibição ou abatimento no preço no prazo de trinta dias se a coisa for móvel, e de um ano se for imóvel, contado da entrega efetiva; se já estava na posse, o prazo conta-se da alienação, reduzido à metade.
§ 1º Quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, o prazo contar-se-á do momento em que dele tiver ciência, até o prazo máximo de cento e oitenta dias, em se tratando de bens móveis; e de um ano, para os imóveis.
§ 2º Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais, aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a matéria.
Art. 446. Não correrão os prazos do artigo antecedente na constância de cláusula de garantia; mas o adquirente deve denunciar o defeito ao alienante nos trinta dias seguintes ao seu descobrimento, sob pena de decadência”.
Os dispositivos acima colacionados deixam claro que se trata de decaimento do direito do adquirente.
Entretanto, a despeito de a redação parecer bem clara quanto ao termo inicial do referido instituto, há discussão na doutrina se o prazo de 180 dias previsto no § 1º do art. 445. tem sua contagem iniciada quando da ciência do vício oculto pelo adquirente, ou se o referido prazo determina o limite para que o vício seja conhecido pelo adquirente, aplicando-se o prazo de 30 dias do caput a partir do conhecimento3.
A favor da primeira corrente manifestou-se a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, em apertada maioria, nos seguintes termos:
“Embargos de divergência no recurso especial. Admissibilidade. Compromisso de compra e venda. Possibilidade de rescisão fundada em vício redibitório. Prescrição. Termo inicial. Data do conhecimento do vício oculto. Se o vício, por sua natureza, não podia ser percebido no ato da tradição, o prazo , estabelecido no art. 178, § 5º, inc. IV, do CC de 1916, para ajuizar ação reclamando o defeito conta-se do momento que o adquirente do bem toma conhecimento de sua existência , prevalecendo o entendimento dominante na Terceira Turma (Resp 489.867/SP, de minha relatoria, pub. no DJ de 23.06.2003). Dado provimento aos embargos de divergência”
(EREsp 431.353/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/02/2005, DJ 01/07/2005, p. 363, grifei)4.
Em sentido oposto, a Quarta Turma da mesma Corte Superior, em julgado mais atual, apresenta um entendimento mais consentâneo com o esposado por este autor. Confira-se:
“RECURSO ESPECIAL. VÍCIO REDIBITÓRIO. BEM MÓVEL. PRAZO DECADENCIAL. ART. 445. DO CÓDIGO CIVIL. 1. O prazo decadencial para o exercício da pretensão redibitória ou de abatimento do preço de bem móvel é de 30 dias (art. 445. do CC). Caso o vício, por sua natureza, somente possa ser conhecido mais tarde , o § 1º do art. 445. estabelece , em se tratando de coisa móvel, o prazo máximo de 180 dias para que se revele, correndo o prazo decadencial de 30 dias a partir de sua ciência. 2. Recurso especial a que se nega provimento”
(REsp 1095882/SP, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 09/12/2014, DJe 19/12/2014, grifei).
O julgado acima transcrito deixa explícito que o CC definiu um prazo máximo para que o vício seja revelado, de 180 dias, e que a partir da sua ciência passa-se a contar o prazo decadencial.
No mesmo sentido foi aprovado enunciado na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, cujo teor transcrevo ipsis litteris:
“Enunciado n. 174 – Art. 445: Em se tratando de vício oculto, o adquirente tem os prazos do caput do art. 445. para obter redibição ou abatimento de preço, desde que os vícios se revelem nos prazos estabelecidos no parágrafo primeiro, fluindo, entretanto, a partir do conhecimento do defeito” 5.
Tem-se, portanto, que a posição dominante é a de que o prazo de 180 dias previsto no CC tem sua contagem iniciada quando da aquisição do bem móvel, servindo como limite para o conhecimento do vício.
Esse entendimento é, ao meu ver, o mais consentâneo com a realidade comercial contemporânea.
Como já citado anteriormente, os ciclos dos produtos tecnológicos estão cada vez mais estreitos, e.g. os aparelhos de telefonia celular, que são renovados a cada ano, ficando obsoletos os modelos anteriores.
Como exercício mental, suponhamos que se permitisse que o prazo de 180 dias previsto no art. 445, § 1º, do Código Civil, tivesse seu dies a quo fixado na data do conhecimento do vício. Nesse caso, se o adquirente só viesse a detectar a falha no produto após 186 dias, haveria a possibilidade de se exigir o abatimento de preço de um produto que já estaria ultrapassado pelo lançamento de um novo modelo, e isso implicaria em uma complicação na avaliação do seu valor em razão do novo lançamento.
Em outro caso provável, considerando a mesma lógica do exemplo anterior, uma falha que não se apresentaria nas condições comuns da data da aquisição do produto poderia exsurgir quando da atualização de algum software, o que ensejaria a possibilidade de uma ação edilícia contra o produtor após este estar em uma nova realidade comercial, com um produto novo na praça e sofrendo para solucionar problemas que, em tese, estariam “resolvidos” com o seu novo produto.
Conclusão
A segurança jurídica e regulatória devem ser buscadas para se propiciar um ambiente favorável aos negócios. Para tanto, o entendimento sobre certos institutos legais deve sempre buscar um maior grau de objetividade, a fim de se diminuir a possibilidade de que eventos fortuitos atinjam situações já estabilizadas.
Cabe, portanto, à legislação definir os critérios de forma mais clara e, aos operadores do direito, aplicar os institutos mais uniformemente, para evitar que o passado devore o futuro.
Bibliografia
LENZ, C. E. T. F. Considerações acerca do prazo decadencial nas ações edilícias. Revista do Tribunal Federal da 4ª Região, Porto Alegre, n. 45, p. 13-42, 2002. ISSN 0103-6599.
NETO, S. D. A.; JESUS, M. D.; MELO, M. I. D. Manual de Direito Civil. 5ª. ed. Salvador: Juspodivm, v. Único, 201
Notas
2 Tendo em vista que o presente texto discutirá o instituto dos vícios redibitórios aplicável em relação aos bens móveis, as disposições acerca da sistemática dos bens imóveis será doravante desconsiderada. Da mesma forma, não analisaremos o instituto à luz do Código de defesa do Consumidor.
3 “Importante anotar, a esse respeito, certo vacilo da doutrina quanto à natureza desse prazo, sendo, portanto, mais correta aquela que o considera como prazo para tomar ciência do feito” [CITATION Net 16 /p 987 /l 1046 ].
4 A despeito de o referido caso tratar de bem imóvel, e sob a égide do Código Civil de 1916, o entendimento adotado aplicar-se-ia aos bens móveis regidos peno novo Código Civil pela lógica hermenêutica aplicada.
5 No mesmo sentido: “Por conseguinte, o Código Civil de 2002, encerrando com a polêmica que persistiu na jurisprudência e na doutrina sob a égide da Lei Civil de 1916, estabeleceu que o prazo decadencial nas ações edilícias, quando o vício, por sua natureza, só puder ser conhecido mais tarde, contar-se-á a partir do instante em que dele teve conhecimento o adquirente, até o prazo máximo de 180 dias, em se tratando de bem móvel, e de um ano, se imóvel” [CITATION Car 02 /l 1046 ].