3. CLASSES DE DANOS
Ao contrário do que acontecia em tempos mais remotos, a análise estrutural dos danos não se cinge apenas àqueles de ordem material, eis que o direito vem evoluindo espantosamente no aperfeiçoamento das teorias referentes aos danos de natureza moral, assim como no que respeita a ambos em conjugação.
Tem-se modernamente a seguinte classificação dos danos reparáveis consagrados no ordenamento jurídico nacional:
3.1. DANOS PURAMENTE MATERIAIS
Consubstanciados em fatos produtores de lesões a interesses alheios juridicamente protegidos e que apresentam caráter exclusivamente patrimonial, afetando o patrimônio em seu sentido pecuniário e acarretando sobre o mesmo, de maneira perceptível, diminuição de valor e conteúdo monetário. A afronta atinge apenas direitos de conotação financeira do lesado, sem causar repercussões nefastas no âmbito psíquico-moral, que é elemento de nuanças eminentemente extrapatrimoniais se entendido o patrimônio como conjunto de bens e direitos de expressão econômica direta.
A lesão geradora de danos puramente materiais pode incidir tanto sobre bens corpóreos como atingir bens incorpóreos ou direitos propriamente ditos, desde que, consoante explanado, apresente limites traçados dentro do patrimônio do ofendido, sem ultrapassá-lo para incidir na esfera psíquica tutelada pelo direito. Assim, prima facie têm-se danos unicamente materiais na conduta daquele que toma emprestado um veículo e vem a chocar-se contra o muro, produzindo estragos na lataria. A partir do momento em que implementado o dano, teoricamente nasce o direito subjetivo de indenização do proprietário do automóvel contra o causador do episódio danoso.
Após a verificação dos danos como evento concretizado no mundo jurídico, passa-se à apuração da extensão dos mesmos e à análise da possibilidade de atribuí-los ao agente, pois situações há nas quais, apesar da presença do binômio autor (da lesão) versus fato lesivo, pode não se fazer viável a imputação do prejuízo ao condutor do automóvel emprestado, como, por exemplo, no caso de um defeito preexistente e creditável à descúria do dono na manutenção ter ensejado o desgoverno do carro e conseqüente acidente. Mas, repita-se, o exercício efetivo do direito de obter indenização e reposição das coisas ao estado anterior, bem como a forma de apurar a relação entre o agente e os danos são objetos de outra etapa do trabalho, a ser abordada adiante.
3.2. DANOS PURAMENTE MORAIS
Com o advento da Constituição de 1988, cessou a discussão que vicejara por longo período em torno da reparabilidade ou não dos danos à moralidade, pois ora os Tribunais decidiam pela aceitação da tese, ora rechaçavam-na, ou ainda condicionavam a admissibilidade da reparação exclusivamente quando os danos morais estivessem associados aos de natureza material, sob o pretexto de que por outra forma não haveria como provar a efetividade dos primeiros. A Constituição estabeleceu mais do que a simples previsão de resguardo aos danos morais, tendo-os situado inclusive no espaço destinado aos direitos e garantias fundamentais, fixando diretrizes básicas no artigo 5º, V e X. Cada vez com maior intensidade lapidam-se as teorias acerca da reparação dos danos de natureza extrapatrimonial, em especial os que atingem a moralidade do indivíduo, que se traduzem em fatos conducentes a lesões na reserva psíquica, sem ofensa ao plano material, cujos exemplos mais evidentes são os delitos contra a honra. Comprovada a ocorrência dessa espécie de danos, exsurge a possibilidade da busca de recomposição, que tem lugar através de meios pecuniários em procedimento que se denomina de reparatório.
O vocábulo reparação destaca-se como mais adequado do que o termo indenização quando se está a cuidar da reestruturação do componente psicológico afetado pelo agir ilídimo de outrem, eis que, contrariamente ao que se vislumbra na hipótese de danos materiais, a afronta ao plano psíquico é destituída de cunho econômico imediato, pela singela razão de se mostrar impraticável estimar financeiramente o valor dos atributos inerentes à personalidade. A honra, a boa fama e a imagem que os indivíduos têm de si próprios, ou o conceito que a sociedade deles guarda, bem como a vida do pai, da mãe, de um filho ou as diversas partes do corpo humano não podem ser convertidas em dinheiro, nem são coisas in commercium. E indenização traz esse contorno indesejado de retribuição, pagamento, troca da ofensa a um bem qualquer por dinheiro, quando na verdade o fundamento dos dispositivos pertinentes aos danos à moralidade não é o pretium doloris ou preço da dor, mas a reparação, a amenização do sofrimento indevidamente infligido à vítima através da busca de lenitivos que somente podem ser obtidos se houver condições financeiras para tanto. Ademais, inexistiria outra maneira de compensar as dores do espírito e concomitantemente punir o agressor, se tudo não pudesse ser transformado em pecúnia como meio de reestruturação da lacuna deixada pelos danos. E, aos que tentam combater a reparabilidade dos danos morais sob o argumento de que a sua aceitação equivale a reprimir uma conduta abjeta através de outra, resta dizer que é bem mais humano, justo e correto impingir ao lesante o dever de alcançar à vítima meios de obter alívio para os males experimentados do que simples e absurdamente premiar a iniqüidade, o agir contrário à ordem jurídica e natural, por intermédio da impunidade, incentivando sobremaneira os que ilicitamente atingem o plano psicológico dos semelhantes.
Não bastasse, há que se discorrer brevemente sobre a dúplice finalidade da reparação dos danos morais: compensar ao lesado e punir o lesante. Ao primeiro oportunizar-se-á a amenização ou supressão dos males através da aplicação do montante condenatório em utilidades que possam aplacar a dor, a angústia, o menosprezo, a aflição e todas as facetas das afrontas psíquicas, seja empreendendo viagens, consultando especialistas em recomposição emocional ou como melhor aprouver ao interessado. Ao segundo, em contrapartida, atribui-se o dever de reparar, fazendo com que oferte ao ofendido a medida econômica necessária para todo o processo de reequilíbrio do lesado, a fim de que se promova o retorno ao status quo ante. Se a vítima efetivamente obtém a recuperação através da aplicação dos valores auferidos é detalhe que não desperta maiores perquirições jurídicas, de vez que a prestação jurisdicional encerra-se no instante em que o lesante entrega ao credor o valor determinado, caindo na esfera da discricionariedade pura do interessado a prudente utilização dos recursos.
De outra banda, acrescente-se, por relevante, que a condenação do autor da agressão moral também se presta para reprimir, punir a atitude antijurídica, e prevenir contra a reiteração de comportamentos semelhantes. Por fim, como resíduo não menos importante ainda se constata que a condenação produz efeitos pedagógicos de monta no meio social em que se deram os episódios danosos, de modo que se percebem reflexos imediatos na sociedade em geral, com diminuição acentuada de fatos parecidos com os que levaram ao reconhecimento do dever de reparar. Como mostra prática da veracidade do que se disse, basta analisar o decréscimo no número de estabelecimentos comerciais que levam o nome de seus clientes indevidamente ao Serviço de Proteção ao Crédito, ou a queda nos índices de estabelecimentos bancários que inscrevem ilicitamente correntistas em entidades coletoras de dados sobre devedores inadimplentes. Afora isso, percebe-se considerável aumento na preocupação de todos visando à prevenção de acontecimentos que possam lesar a moralidade alheia, fator que vem a comprovar todo o acerto na adoção, pelo legislador, da teoria da reparabilidade dos danos morais.
Embora já se tenha feito referência à configuração dos danos morais, cumpre ainda aprofundar o tema, a fim de estabelecer precisamente alguns dos aspectos mais destacados. Os danos à moralidade podem resumir-se no sentimento interno do atingido (dor, vergonha, menoscabo etc.), sem que a sociedade modifique de qualquer modo, no plano fático, a imagem que faz deste. Noutras oportunidades, porém, o meio social circundante acaba por apresentar reflexos negativos sobre o conceito que faz do lesado, tamanha a intensidade da repercussão dos fatos ensejados pelo lesante. Em razão dessa diversidade de repercussões é que convém separar os danos morais em duas ramificações, ambas por igualmente conducentes à possibilidade de reparação, servindo as dimensões da afronta unicamente como basiladoras do estabelecimento do quantum condenatório:
a) – danos morais de efeitos internos: quando os efeitos atingem o ofendido em sua parte subjetiva, isto é, recebe consectários nocivos que se aglutinam no espírito, com defecção no sentimento de auto-estima e diminuição da satisfação pessoal estratificada no conceito que mantinha de si mesmo anteriormente ao evento maléfico. É oportuno dizer que a própria natureza dos danos morais exige, para a sua perfeita configuração, a presença, por mínima que seja, de repercussões negativas do episódio sobre o plano psíquico do indivíduo, pois a essência das afrontas à moralidade reside na invasão indevida da seara subjetiva do ofendido, ainda que sem reflexos exteriores. Não menos verdade é que frequentemente tais elementos encontram-se incrustados nas características mesmas dos fatos apontados como nocivos, como, por exemplo, quando verificada a morte de um filho, donde decorre automaticamente – e sem nenhuma necessidade de comprovação – o suplício interno, o sofrimento íntimo dos pais, salvo prova extremamente robusta e insuperável que faça cair por terra essa presunção;
b) – danos morais de efeitos externos: quando objetivamente é atingida a posição do indivíduo na sociedade de que participa, causando-lhe transtornos por força de suspeitas que porventura comecem a ser levantadas, gracejos ou humilhações fundados nos fatos tornados públicos pelo lesante etc. Nesse caso, além do padecimento interno inerente a todo dano de ordem moral, ainda se impinge à vítima um plus negativo oriundo dos reflexos produzidos pelos fatos indicados como agressivos do campo moral do ofendido. É a hipótese de alguém que venha a ser injustamente acusado de furto de mercadorias do interior de uma loja, sendo revistado em público sob olhares de repúdios partidos dos que presenciam a cena e fazem prejulgamento sem ponderar as circunstâncias e sem acompanhar o desenrolar dos fatos. Afora o sentimento natural de revolta que assola o injustiçado (efeito interno), como agravante sobrevém a publicidade do episódio, fator de multiplicação da ofensa em razão das conhecidas consequências, sobre o conceito social, advindas desse tipo de acontecimento.
Os danos morais, sejam de efeitos exclusivamente internos como de repercussões externas, autorizam a vítima a demandar por reparação, haja vista a similitude de potencialidade lesiva ínsita em ambas as hipóteses. E, consoante referido anteriormente, os caracteres intrínsecos dos fatos maléficos prestar-se-ão para a determinação do montante condenatório. Portanto, a reparabilidade existe em abstrato nos dois casos, até porque o fundamento jurídico da mesma é a agressão à moralidade, funcionando a exacerbação das consequências apenas como elemento qualificador do pleito judicial, permitindo ao julgador a fixação de valor condenatório mais expressivo e que seja capaz de cumprir os objetivos predeterminados pelo legislador.
3.3. DANOS MATERIAIS E MORAIS (MISTOS)
Nessa classe de danos tem-se a congregação das duas anteriores, como resultado de fatos provocadores de lesões a interesses alheios patrimoniais e extrapatrimoniais juridicamente tutelados. A afronta assume natureza dúplice, atingindo não apenas o plano material do lesado, como também a esfera psicológica, embora nem sempre coincidam as lesões em extensão e profundidade, o que de forma alguma desvirtua a qualidade mista dos danos provocados. O que atribui aos danos o caráter misto é a existência, em um só episódio, de ofensas físicas e psíquicas, cada qual a ensejar reestruturação que obedece a procedimentos específicos segundo as características efetivas da ocorrência.
Frequentemente esboçam-se iniciativas no sentido de fazer incluir dentre os itens patrimoniais todos os aspectos concernentes à moralidade do indivíduo. Todavia, no atual estágio do estudo da ciência jurídica é impraticável tal pretensão, de vez que o patrimônio constitui-se de bens e direitos de conteúdo economicamente apreciável, enquanto que aos atributos morais não se pode conferir avaliação pecuniária imediata. Não obstante, nada impede que em razão de uma ofensa à seara moral seja pleiteada reparação que, esta sim, apresente teor pecuniário, o que, entrementes, não faz da qualidade moral em si mesma um item patrimonial, pois apenas o produto da agressão à moralidade é que assume contornos financeiros passíveis de enquadramento como componente do patrimônio.
Haveria danos mistos, por exemplo, no caso de acidente de trânsito do qual resultassem, afora os prejuízos por amassamento dos veículos, defeito físico irremediável em um dos ocupantes. O desfalque patrimonial representado pela colisão configura danos de ordem material, podendo ser solucionado através de demanda indenizatória com fulcro em orçamentos que esclareçam a extensão pecuniária dos prejuízos. Em contrapartida, a deficiência física originada do choque dos automóveis consubstancia dano moral, por causar no ofendido um sentimento de depreciação psíquica, dor, angústia, aflição, podendo haver surgimento de preconceitos sociais e repercussões negativas significativas no plano do espírito, males reparáveis pelo Direito mediante a atribuição de um dever jurídico ao agente causador, de modo que terá de alcançar ao lesado recursos financeiros hábeis a proporcionar a melhora do quadro nefasto.
Na prática não há grandes dificuldades na classificação dos danos como sendo materiais ou morais, porque naqueles sempre há um componente econômico mediato ou imediato, o que inocorre em se tratando destes, que nem mesmo têm significado pecuniário. A opção do legislador pela reparabilidade dos danos à moralidade em moeda corrente deve-se à circunstância de que até o momento não há métodos mais eficientes para reprimir a conduta lesiva e, concomitantemente, compensar os males suportados pelo ofendido.
Desde logo cumpre salientar que a existência de danos materiais acoplados a danos morais não interfere em nada, para mais ou menos, na reestruturação buscada pelo lesado. Noutras palavras, reclamar pela indenização dos danos materiais conjuntamente com a reparação dos danos morais faz com que o julgador avalie em separado uns e outros, decidindo pela procedência ou não de cada um isoladamente, pois conexão nenhuma há, necessariamente, entre o destino dos pedidos formulados. A procedência do pleito tendente à obtenção de reparação de danos à moralidade não impõe decisão igual nesse sentido no que tange aos prejuízos patrimoniais, e vice-versa. Assim como as responsabilidades civil, penal e administrativa habitam espaços diversos e sem vinculação obrigatória (exceto quando prevista em lei), também as lesões materiais e morais trilham sendas próprias e independentes, embora possam estar circunstancialmente reunidas para análise em um só processo judicial.