Função Social da Posse

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Épreciso que o jurista considere uma pluralidade de elementos na aplicação da função social da posse, de modo a não tornar sua decisão eminentemente ideológica.

                                      FUNÇÃO SOCIAL DA POSSE

Existe uma Função Social da Posse?

Em uma série de conferências realizadas em maio de 1981 na Universidade de Brasília, o economista austríaco Friedrich Hayek, Prêmio Nobel de Economia de 1974, foi questionado sobre o problema da justiça social. Para Hayek, o termo social seria aquilo que os americanos chamam de weaselword (palavra doninha), sendo a doninha aqui referida como aquele animal que suga todo o conteúdo de um ovo sem que você perceba, ao final, que ele está oco, é apenas uma casca sem conteúdo algum. É neste sentido apontado que Hayek vê a palavra social, como um weaselword, pois esvazia totalmente o sentido da palavra a qual ela se liga.

Partindo deste pressuposto, quando convertemos a denominação de uma economia de mercado para uma economia social de mercado, ela já não significaria mais nada. Da mesma forma acontece com a justiça social, com um estado de direito social e, por fim, com a própria noção de função social da posse. Estas sutilezas não podem ser vistas como desimportantes, pois o modo como nominamos uma situação cotidiana pode afetar nossa reação sobre ela. A nossa percepção da realidade é também linguística e está diretamente vinculada às possibilidades de mudá-la. Resumindo com a famosa tese 5.6 do Tractatus Logico-philosophicus de Wittgenstein: “Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo”.

Argumentando em sentido contrário, alguns autores sustentam a existência e a validade da noção de função social da posse como uma dimensão possessória afastada da patrimonialidade. Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2014) a noção de função social da posse está expressa como uma sanção decorrente de conduta ilegítima do proprietário e também, ou ainda mais importante, como um instrumento de garantia dos direitos fundamentais. Ainda segundo os autores, o fato de apenas a função social da propriedade estar expressa no Código Civil (art. 1.228, § 1°) em nada impede a repercussão constitucional do instituto, em especial quando relacionado ao direito à moradia e à concretização de outros direitos fundamentais. Vale notarmos que, ao contrário do direito à moradia, a propriedade tem garantia constitucional, mas ela não se apresenta como um direito fundamental.

Em síntese, para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (2014) a função social da posse não é exclusividade do proprietário, atuando como um limitador contra o exercício abusivo – ilícito (art. 187 do CC) – do direito de propriedade. É neste contexto que entra em cena a visão do chamado Direito Civil-Constitucional e do processo civil, servindo este de instrumento para concretização dos direitos fundamentais. Aqui a lógica patrimonial cederia espaço a valores existenciais, passando a prestigiar o princípio da dignidade da pessoa humana. É reconhecendo este paradigma que o Conselho de Justiça Federal constrói o Enunciado n. 492: "A posse constitui direito autônomo em relação à propriedade e deve expressar o aproveitamento dos bens para o alcance de interesses existenciais, econômicos e sociais merecedores de tutela".

Existindo ou não a função social da posse, deve-se ressaltar: a existência de um tensionamento natural entre proprietários e não proprietários. Sob este prisma, cabe ao direito e às instituições estabelecerem os meios adequados para que o maior número de não proprietários possa, sem se privar a propriedade daqueles que a detém, tornem-se proprietários.

Quais os limites da Função Social da Posse?

Como visto anteriormente, alguns autores defendem a noção de função social da posse como mecanismo de concretização de direitos fundamentais, de modo que agora devemos nos voltar para a definição do seu alcance, delineando seus limites. Se da ponderação entre o direito de propriedade e a função social da posse seria possível privilegiar a segunda, quais os parâmetros para tornar essa escolha proporcional e razoável?

Da colisão entre os princípios da função social da propriedade e da função social da posse, deverá a fundamentação jurídica utilizar-se dos chamados testes de proporcionalidade, tornando os princípios aquilo que Robert Alexy denomina como “mandamentos de otimização”. Conjugada a essa perspectiva é que se deve ver o direito não apenas com norma, mas também como um conjunto de incentivos com reflexos sobre decisões pragmáticas. E para realizar essa análise é necessário um olhar menos recortado, menos estanque, privilegiando outros ramos do direito bem com outros campos do conhecimento, como a economia.

Para consideramos a função social da posse, é indispensável termos em conta as vantagens e desvantagens econômicas e sociais subjacentes, nos atentando para os sistemas de incentivos, expectativas legítimas e manutenção da segurança jurídica. A perspectiva da função social da posse deve ser encarada tendo em vista não apenas os resultados imediatos da decisão judicial. Ou seja, ela deve servir não apenas como solução a casos pretéritos, mas também levar em conta a forma como os agentes irão interpretar essa decisão e guiar seus comportamentos futuros. Neste sentido, a aplicação do instituto da função social da posse deve olhar não apenas para trás, mas também para frente; devendo antecipar os efeitos das decisões judiciais sobre o comportamento dos agentes.

Dando concretude a essa perspectiva, invoca-se aquilo que no Brasil se chama Direito e Economia, Análise Econômica do Direito ou simplesmente AED. Em The Problemof social CostRonald Coase vê o governo como uma espécie sui generis de firma, ou superfirma. Ao ser capaz de influenciar a utilização dos fatores de produçãomediante duas decisões, o governo não se sujeita ao controle de operações como as firmas comuns. Não há que se falar em uma concorrência com outras firmas capazes de desenvolver a mesma atividade a um custo menor. Além dessa ausência de controle competitivo há também uma forte influência de fatores políticos, de modo que podemos afirmar que a regulação governamental não necessariamente irá produzir resultados mais satisfatórios do que aqueles obtidos pela via do mercado.

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Ao chamar a atenção para as consequências econômicas das decisões dos tribunais, Coase não vê razão para acreditarmos na necessidade de regulamentação governamental sempre que o problema a ser solucionado não encontra respostas perfeitas no âmbito do mercado ou da firma. Lidar com esses problemas não é apenas buscar meios de punição dos responsáveis, é preciso considerar se o ganho obtido ao se punir ou impedir determinado dano supera a perda que seria sofrida por terceiros.

Tratar de uma função social da posse é estar atento para o fato de vivermos num mundo de recursos escassos. A finitude é a característica essencial de qualquer bem. Deste modo é que podemos encontrar no mercado o melhor mecanismo para elevar o nível de acesso dos não proprietários, reduzindo o tensionamento que estes estabelecem com os proprietários. Cabe aqui resgatarmos a análise microeconômica de Garrett Hardin (1968) no seu artigo seminal The tragedyofthecom

ra melhor entendermos a função social da propriedade e podemos fazer uma consideração adequada sobre a aplicação da função social da posse, devemos levar em conta o instrumental microeconômico trazido por Hardin. Segundo o autor, diante dos bens comuns a escolha racional do ponto de vista do indivíduo seria a superexploração. O custo seria diluído entre todos os usuários de um bem comum, mas aquele que superexplora se apropriaria isoladamente de maior parcela dos benefícios. Quando todos os usuários do bem comum atuam de modo predatório, o bem comum se exaure e as escolhas passam a ser irracionais do ponto de vista do grupo. Aqui se encontra a importância da propriedade como um instrumento de proteção ao recurso escasso. Na privatização os agentes possuem incentivos para preservarem os bens e promoverem inovações na medida em que serão diretamente beneficiados. Já a solução estatizante não conta com esse conjunto de incentivos, de modo que não há espaço para a destruição criativa shumpeterina (SCHUMPETER, 1911), pois o benefício adicional por melhor gerenciamento do bem não é diretamente apropriado pelo agente público.

Por fim, é preciso que o jurista considere uma pluralidade de elementos na aplicação da função social da posse, de modo a não tornar sua decisão eminentemente ideológica. Aqui, a decisão ideologicamente fundamentada é vista como um sistema mental de simplificação de um mundo hipercomplexo, um mecanismo de economia informacional (SALAMA, 2014), mas que também pode descambar para absurdos econômicos e sociais, afastando-se de suas intenções prévias.

Referências

ALEXY, Robert. Theorie der Grundrechte (1985), trad. port. de Virgílio Afonso da Silva, Teoria dos Direitos Fundamentais, São Paulo, Malheiros Editores, 2008.

COASE, Ronald. The Problem of social Cost. The Journal of Law and Economics 3, p. 1-44, Oct. 1960.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Civil, Volume 4, 3ªedição. São Paulo: Saraiva, 2010. Capítulo 42, p. 26 – 69.

FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil: direitosreais. Bahia, EditoraJuspodivm, 2014.

HARDIN, G. The tragedy of the commons: the population problem has no technical solution; It requires a fundamental extension in morality. Science, v. 162, n. 3859, p. 1243-1247, Dec. 1968.

HEYEK, Friedrich August von. Hayek na UnB: conferências, comentários e debates de um simpósio internacional realizado de 11 a 12 de maio de 1981. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1981.

PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de direito civil – Vol. IV. 25 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

SALAMA, Bruno Meyerhof. O Fim da Responsabilidade Limitada no Brasil: história, direito e economia. São Paulo, Malheiros, 2014.

SCHUMPETER, Joseph Alois (1911). Teoria do desenvolvimento econômico. São Paulo: Abril Cultural, 1982 (Os economistas).

TARTUCE, Flávio. Direito Civil, v. 4: Direito das Coisas. 10 ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-philosophicus. Trad. Luiz H. Lopes dos Santos, São Paulo, Edusp: 1993.

Sobre os autores
Daniel Barbosa Nunes

Estudante de Direito da Universidade de Brasilia-UnB

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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