Do Estado de Direito ao Estado de Segurança

01/01/2019 às 10:03
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O presente texto é uma tradução do artigo em francês de autoria do filósofo italiano Giorgio Agamben, no qual são tracejadas reflexões acerca do Estado de Segurança e Estado de Direito.

Não é possível entender o que realmente se joga no prolongamento do estado de emergência na França, se não for colocado no contexto de uma transformação do modelo de Estado que nos é familiar. É crucial, em primeiro lugar, desmentir o propósito de mulheres e homens políticos irresponsáveis, segundo os quais o estado de emergência seria um escudo para a democracia.

Os historiadores sabem perfeitamente bem que é verdadeiramente o oposto. O estado de emergência é precisamente o dispositivo através do qual as potências totalitárias foram instaladas na Europa. Assim, nos anos que antecederam a tomada do poder por Hitler, os governos socialdemocratas de Weimar tinha usado tantas vezes o estado de emergência (estado de exceção, como é chamado em alemão) que se dizia que a Alemanha tinha deixado de ser, antes de 1933, uma democracia parlamentar.

Agora, a primeira ação de Hitler, após sua nomeação, era proclamar um estado de emergência, que nunca foi revogado. Quando as pessoas se surpreendem dos crimes que foram cometidos com impunidade na Alemanha pelos nazistas, se esquecem que estas ações eram perfeitamente legais, porque o país estava sob um estado de emergência e as liberdades individuais foram suspensas.

Não vemos por que tal cenário não poderia se repetir na França: imaginamos sem dificuldade um governo de extrema direita que se serve para seus propósitos de um estado de emergência ao qual os governos socialistas já acostumaram os cidadãos. Em um país que vive em um estado de emergência prolongado, e no qual as operações policiais progressivamente substituem o judiciário, podemos esperar uma rápida e irreversível degradação das instituições públicas.

Isto é ainda mais verdade que o estado de emergência se inscreve hoje no processo que está a fazer evoluir as democracias ocidentais na direção de algo que se pode chamar, agora mesmo, de Estado de Segurança ("Security State”, como dizem os cientistas políticos americanos).

A palavra "segurança" entrou tanto no discurso político que se pode dizer, sem medo de estar errado, que "razões de segurança" tomaram o lugar do que já foi chamado de "razão de Estado". É necessário, no entanto, uma análise desta nova forma de governo. Como o Estado de Segurança não diz respeito ao Estado de Direito ou ao que Michel Foucault chamou de "sociedades disciplinares", é apropriado lançar algumas referências aqui com vistas a uma possível definição.

No modelo de britânico Thomas Hobbes, que tem influenciado tão profundamente a nossa filosofia política, o contrato de transferência de poderes ao soberano pressupõe o medo recíproco e da guerra de todos contra todos: o Estado é o que vem precisamente para acabar com o medo. No Estado de Segurança, esse esquema é invertido: o Estado é fundado permanentemente no medo e deve, a todo custo, mantê-lo, já que retira dele sua função essencial e sua legitimidade.

E Foucault tinha demonstrado que, quando a palavra "segurança" apareceu pela primeira vez na França no discurso político com os governos fisiocratas antes da Revolução, não se tratava da prevenção de desastres e fomes, mas deixar que ocorressem para poder na sequencia governá-las e direcioná-las para uma direção que se considerada benéfica.

Da mesma forma, a segurança que está em questão hoje não visa impedir atos de terrorismo (que, de outra forma, seria extremamente difícil, se não impossível, porque as medidas de segurança só são efetivas após o golpe e o terrorismo é, por definição, uma série de primeiros golpes), mas para estabelecer uma nova relação com os homens, que é um controle generalizado e sem limites - daí a ênfase particular em dispositivos que permitem o controle completo de dados de computador e comunicação dos cidadãos, incluindo a retenção integral de conteúdo dos computadores.

O risco, o primeiro que levantamos, é a deriva para a criação de uma relação sistêmica entre o terrorismo e Estado de Segurança: se o Estado necessita do medo para se legitimar, é então necessário, em última instância, produzir terror, ou pelo menos, não impedir que ocorra. Vê-se, assim, os países buscarem uma política externa que alimenta o terrorismo que deve ser combatido no interior e manter relações cordiais e até vender armas para Estados que são conhecidos por financiar organizações terroristas.

Um segundo ponto, que é importante compreender, é a mudança no status político dos cidadãos e do povo, que se supunha serem os titulares da soberania. No Estado de Segurança, vemos uma tendência irreprimível em direção ao que deveria ser chamado de despolitização progressiva dos cidadãos, cuja participação na vida política é reduzida a pesquisas eleitorais. Essa tendência é tanto mais preocupante quanto teorizaram os juristas nazistas, que definem o povo como um elemento essencialmente apolítico, cuja proteção e crescimento devem ser garantidos pelo Estado.

Agora, de acordo com esses juristas, há apenas uma maneira de tornar político esse elemento apolítico: por meio da igualdade de ancestralidade e raça, que o distinguirá do estrangeiro e do inimigo. Não se trata aqui de confundir o Estado nazista e o Estado de Segurança contemporâneo: o que se precisa entender é que, se despolitizados os cidadãos, eles não podem sair de sua passividade, mas podem ser mobilizados pelo medo de um inimigo que não é apenas externo (eram os judeus na Alemanha, e são os muçulmanos na França hoje).

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É neste contexto que devemos considerar o projeto sinistro de deterioração de nacionalidade para cidadãos binacionais, que relembram a lei fascista de 1929 sobre a desnacionalização dos "cidadãos indignos da cidadania italiana" e as leis nazistas na desnacionalização os judeus.

Um terceiro ponto, cuja importância não deve ser subestimada, é a transformação radical dos critérios que estabelecem a verdade e a certeza na esfera pública. O que impressiona em primeiro lugar a um observador atento às denúncias de crimes terroristas é a completa rejeição ao estabelecimento da certeza judicial.

Enquanto em um Estado de Direito é entendido que um crime só pode ser certificado com uma investigação judicial, sob o paradigma securitário se deve contentar com o que lhe diz a polícia e os meios de comunicação que dela dependem - isto é, duas instâncias que sempre foram considerados pouco confiáveis.

Daí a incrível imprecisão e as contradições óbvias nas reconstruções apressadas dos acontecimentos, que iludem deliberadamente qualquer possibilidade de verificação e falsificação e que parecem mais fofocas do que investigações. Isso significa que o Estado de Segurança está interessado no fato de que os cidadãos - cuja proteção deve garantir - permanecem na incerteza sobre o que os ameaça, porque a incerteza e o terror andam de mãos dadas.

É a mesma incerteza encontrada no texto da lei de 20 de Novembro sobre o estado de emergência, ao registrar que "todo aquele a quem houver sérias razões para pensar que o seu comportamento constitui uma ameaça para a ordem pública e a segurança”. É evidente que a frase "sérias razões para pensar" não tem nenhum significado jurídico e, como referindo-se a arbitrariedade daquele que "pensa" pode ser aplicada a qualquer momento contra qualquer pessoa. Agora, no Estado de Segurança, essas fórmulas indeterminadas, que sempre foram consideradas pelos juristas como contrárias ao princípio da certeza do direito, tornam-se a norma.

A mesma imprecisão e os mesmos mal-entendidos estão ressurgindo nas declarações de mulheres e homens políticos, segundo os quais a França estaria em guerra contra o terrorismo. Uma guerra contra o terrorismo é uma contradição em termos, já que o estado de guerra é precisamente definido pela possibilidade de identificar com precisão o inimigo que deve ser combatido. Do ponto de vista securitário, o inimigo deve - pelo contrário - permanecer no vago, de modo que qualquer pessoa - dentro, mas também fora - possa ser identificada como tal.

A manutenção de um estado de medo generalizado, a despolitização dos cidadãos e a renúncia a toda e qualquer certeza do direito: estas são as três características do Estado de Segurança, que são o suficiente para perturbar a mente. Isso significa, em primeiro lugar, que o Estado de Segurança em que estamos deslizando faz o oposto do que promete, porque se a segurança significa a ausência de cuidados (sine cura) - mantém, no entanto, o medo e o terror. O Estado de Segurança é, por outro lado, um Estado policial, já que o eclipse do poder judiciário generaliza o critério da polícia, que em um estado de emergência normalmente atua cada vez mais como soberana.

Através despolitização progressiva do cidadão, que se tornou em um sentido um terrorista potencial, o Estado de Segurança sai ao final do domínio conhecido da política para avançar para uma área incerta onde público e privado se confundem, e cujas fronteiras provocam problemas para defini-las.

Tradução de «De l’Etat de droit à l’Etat de sécurité» (https://www.lemonde.fr/idees/article/2015/12/23/de-l-etat-de-droit-a-l-etat-de-securite_4836816_3232.html), publicado em Le Monde em 23 de Dezembro de 2015.

Sobre o autor
Bernard Pereira Almeida

Graduado em Direito, especializou-se em Direito Processual e Material do Trabalho, bem como em Direito Previdenciário. Também é especialista em Docência do Ensino Superior. Mestre em Direito, Doutor em Educação e Pós-Doutorando em Direito. É membro do Instituto Brasileiro de Direito Previdenciário - IBDP e da Associação Brasileira de Advogados - ABA. No campo profissional, é advogado militante, sócio-proprietário do escritório De Paula & Almeida Advogados, atuando na seara Trabalhista e Previdenciária, em todo o Estado do Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Concomitantemente, labora como professor universitário. Autor de diversos artigos jurídicos e conta com dois livros publicados.

Informações sobre o texto

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