TRÁFICO DE DROGAS E A NÃO HEDIONDEZ DO DELITO EM SUA FORMA PRIVILEGIADA
“[...] a guerra às drogas fracassou. Desde a década de 70, sob a influência e liderança dos Estados Unidos, o mundo enfrentou este problema com polícia, exército e armamento pesado. A triste realidade é que depois de mais de 40 anos, bilhões de dólares, centenas de milhares de presos e milhares de mortos, a situação piorou. Ao menos em países como o Brasil.” (BARROSO, 2017, p. 2)
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
2 APRESENTAÇÃO DO CASO
3 TRÁFICO DE DROGAS E A NÃO HEDIONDEZ DO DELITO EM SUA FORMA PRIVILEGIADA
3.1 Decisões divergentes
3.2 Entendimento doutrinário
4 CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
1 INTRODUÇÃO
Na sessão de julgamento do Habeas Corpus (HC) 118.533, ocorrida no dia 23 de junho de 2016, por maioria de votos, entendeu o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) que o tráfico privilegiado, no qual a pena pode ser reduzida, conforme o art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006 (Lei de Drogas), não deve ser considerado crime de natureza hedionda (NOTÍCIAS STF, 2016).
A recente e polêmica jurisprudência criada pelo STF diverge de várias outras decisões já prolatadas sobre o mesmo tema e consolida uma nova maneira de lidar com o tráfico de drogas, pelo menos em sua forma privilegiada, por reconhecer, nesse caso, a ausência da hediondez do crime.
De acordo com a decisão prolatada pelo Plenário do STF (2016), “o tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016), notadamente porque conforme é apresentada a figura privilegiada do tráfico pela Lei de Drogas, deve o agente ser primário (não reincidente), possuir bons antecedentes, não se dedicar às atividades criminosas e nem integrar organização criminosa (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2006).
Haveria, ainda, no entendimento do Plenário, um evidente constrangimento ilegal em se estipular os rigores da Lei nº 8.072/90 (Lei dos Crimes Hediondos) ao tráfico de entorpecentes privilegiado.
A não hediondez do referido crime, cumulada com a possibilidade de diminuição da pena, culmina na possibilidade de o Réu iniciar o cumprimento da pena em regime menos gravoso (semiaberto ou até mesmo o aberto), ou podendo se beneficiar, inclusive, da substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos (haja vista a vedação à conversão em penas restritivas de direitos ter sido declarada inconstitucional pelo STF).
Desse modo, o presente trabalho pretende realizar um estudo analítico do acórdão prolatado no referido HC 118.533, verificando os fundamentos utilizados pelo Plenário do STF para dar sustentáculo à solução apresentada ao caso.
Serão analisados, ainda, os votos dos Ministros que se posicionaram de maneira divergente do referido posicionamento majoritário, de modo a contrastar os argumentos presentes no acórdão em estudo.
Mais adiante, a questão será verificada sob um aspecto doutrinário para, após feita essa análise acerca do tema, podermos chegar a uma conclusão que nos pareça a mais adequada acerca da hediondez e consequente forma de cumprimento da pena no crime de tráfico de drogas na sua forma privilegiada.
2 APRESENTAÇÃO DO CASO
O Habeas Corpus em análise foi impetrado pela Defensoria Pública da União tendo por objeto o Recurso Especial nº 1.297.936, que foi julgado pela Quinta Turma do STJ, com relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze.
Conforme consta do acórdão do referido HC, os Pacientes Ricardo Evangelista Vieira de Souza e Robinson Roberto Ortega foram condenados na Comarca de Nova Andradina/MS, na data de 15 de junho de 2010, pelo transporte de “55 embalagens de substância entorpecente conhecida como ‘Maconha’, totalizando a quantia de 772,0 kg” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016), como incursos no art. 33, caput e § 4º, da Lei de Drogas, à pena de sete anos e um mês de reclusão, em regime inicial fechado, e setecentos e dez dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo cada.
Uma vez que a sentença afastou a incidência do disposto na Lei dos Crimes Hediondos ao caso, o Ministério Público (MP) interpôs recurso de apelação pleiteando o reconhecimento da natureza hedionda do crime. Já o Paciente Robinson, por sua vez, também recorreu pleiteando a redução da pena. O Tribunal de Justiça do Mato Grosso do Sul, em 20 de junho de 2011, negou provimento a ambas as apelações, vejamos:
APELAÇÕES CRIMINAIS – RECURSO MINISTERIAL - ART. 33, § 4°, DA LEI N- 11.343/06 – RECONHECIMENTO DA HEDIONDEZ - RÉUS CONDENADOS POR TRÁFICO PRIVILEGIADO - INCOMPATIBILIDADE - APELO DEFENSIVO - REDUÇÃO DA PENA BASE E AMPLIAÇÃO DA FRAÇÃO REFERENTE A CAUSA DE DIMINUIÇÃO DO ART. 33, §4º, DA LEI DE DROGAS - INVIABILIDADE – GRANDE QUANTIDADE DE DROGAS - RECURSOS IMPROVIDOS.
Considerando que o crime de tráfico privilegiado não está elencado no, rol previsto na Lei n° 8.072/90, não é admitido o reconhecimento da hediondez.
Mantém-se a pena-base fixada na sentença, bem como a fração mínima da causa de diminuição prevista no art. 33, §4º, da Lei n° 11.343/06, quando se tratar da apreensão de grande quantidade de droga apreendida (772 kg de maconha). (MATO GROSSO DO SUL. Tribunal de Justiça. apud BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 118533/MS. Relatora: Cármen Lúcia)
Não concordando com o referido acórdão de segundo grau, o Ministério Público interpôs o Recurso Especial nº 1.297.936, que em 30 de abril de 2012, em decisão monocrática, o Ministro Relator deu provimento, reconhecendo a natureza hedionda do delito, conforme ementa abaixo:
PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ART. 33, §4º, DA LEI Nº 11.343/2006. HEDIONDEZ CARACTERIZADA.
1. A aplicação da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei n.º 11.343/2006, não desnatura o caráter hediondo do crime de tráfico de
entorpecentes.
2. Recurso especial provido. [...] (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.297.936/MS. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze)
O Paciente Robinson Roberto Ortega, inconformado com tal decisum, opôs embargos declaratórios. Por sua vez, a Defensoria Pública da União interpôs agravo regimental em benefício de ambos os Pacientes.
Em 18 de março de 2013, os embargos de declaração opostos foram rejeitados por ausência de obscuridade, contradição ou omissão, o que ocorreu também em decisão monocrática. O Paciente Robinson Roberto Ortega interpôs outro agravo regimental contra a rejeição dos embargos de declaração.
A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ negou seguimento a ambos os recursos na data de 18 de abril de 2013:
AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO E ADVOGADO CONSTITUÍDO. INTERPOSIÇÃO SIMULTÂNEA EM RELAÇÃO A UM DOS RÉUS. PRINCÍPIO DA UNIRRECORRIBILIDADE. PRECLUSÃO CONSUMATIVA. OFENSA AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ART. 33, §4º, DA LEI Nº 11.343/2006. HEDIONDEZ CARACTERIZADA.
1. Vige no ordenamento jurídico processual pátrio o princípio da unirrecorribilidade, razão pela qual não há como se conhecer do segundo recurso interposto por um dos réus contra a mesma decisão, haja vista ter ocorrido a preclusão consumativa da via recursal.
2. Não viola o princípio da colegialidade a apreciação unipessoal, pelo relator, do mérito do recurso especial, quando obedecidos todos os requisitos para a sua admissibilidade, bem como observada a jurisprudência dominante desta Corte Superior e do Supremo Tribunal Federal. Ademais, a reapreciação da matéria pelo órgão colegiado, no julgamento de agravo regimental, supera eventual violação ao princípio da colegialidade.
3. A aplicação da causa de diminuição do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, não desnatura o caráter hediondo do crime de tráfico de entorpecentes.
4. Agravo regimental conhecido em parte, apenas no tocante ao agravante Ricardo Evangelista Vieira de Souza, e, na parte conhecida, negado provimento. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental no Recurso Especial 1.297.936/MS. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze – Quinta Turma); e
AGRAVO REGIMENTAL NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. PENAL. TRÁFICO DE DROGAS. APLICAÇÃO DA CAUSA ESPECIAL DE DIMINUIÇÃO DE PENA DO ART. 33, § 4º, DA LEI Nº 11.343/2006. HEDIONDEZ CARACTERIZADA. RECURSO ESPECIAL REPRESENTATIVO DA CONTROVÉRSIA Nº 1.329.088/RS. QUESTÃO PACIFICADA PELA TERCEIRA SEÇÃO DO STJ. DECISÃO MANTIDA POR SEUS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS.
1. É firme a jurisprudência desta Corte Superior no sentido de que a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no § 4º do art. 33 da Lei n.º 11.343/2006 não implica no afastamento da equiparação existente entre o delito de tráfico ilícito de drogas e os crimes hediondos, dado que não há a constituição de novo tipo penal, distinto da figura descrita no caput do mesmo artigo, não sendo, portanto, o "tráfico privilegiado" tipo autônomo.
2. Agravo regimental a que se nega provimento. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo Regimental nos Embargos de Declaração no Recurso Especial 1.297.936/MS. Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze – Quinta Turma)
Houve então a impetração do presente HC, por meio do qual a Defensoria Pública da União, ora Impetrante, sustenta a ocorrência de maltrato à Constituição Federal pela interpretação segundo a qual deva incidir a Lei dos Crimes Hediondos sobre a figura privilegiada do crime de tráfico de drogas.
Salientou que:
[...] a incidência das agravantes da Lei dos Crimes Hediondos a toda condenação imposta pela Lei de Tóxico vem dando ensejo à desarrazoada situação de se tratar alguém que seja condenado a uma pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses (por ser primário, ter bons antecedentes, não integrar organização criminosa, etc) de maneira mais severa do que a outro que tenha sofrido uma condenação de 4 (quatro) ou 5 (cinco) anos de reclusão, pena imposta no patamar máximo, diante de suas péssimas condições judiciais e legais. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
Afirmou “a necessidade de afastar do tráfico privilegiado a pecha de hediondez” (Evento 1, fl. 5 apud DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016), impondo-se que se faça “uma analogia in bonam partem, a fim de se afirmar que o tráfico privilegiado possui a mesma justificativa do homicídio qualificado-privilegiado, qual seja, a necessidade de tratamento menos rigoroso para o agente delituoso que, por requisitos atenuantes, cometeu o crime” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016).
Concluiu apontando que “o tráfico privilegiado não pode ser equiparado ao crime hediondo e, consequentemente, deve ser concedida a possibilidade de início de cumprimento de pena nos regimes diversos do fechado, bem como seja autorizada a progressão de regime prisional após o cumprimento do requisito objetivo previsto no art. 112 da LEP, qual seja, 1/6 da pena imposta, tempo este já cumprido pelo recorrente” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016).
Abaixo, segue o teor dos pedidos:
Por todo o exposto, restando configurado o fumus boni iures, demonstrado no contexto da fundamentação jurídica do presente habeas corpus, em que a situação fática, de forma escorreita, subsumiu-se à orientação jurisprudencial deste Egrégio STF, bem como o periculum in mora, em vista do constrangimento ilegal imposto aos pacientes, vem requerer a Vossa Excelência que sejá concedida LIMINARMENTE a presente ORDEM DE HABEAS CORPUS em favor dos pacientes, determinando a suspensão dos efeitos do acórdão do Superior Tribunal de Justiça, para que os pacientes possam fazer jus aos benefícios do livramento condicional e a progressão de regime nos prazos dos crimes comuns e, no mérito, seja concedida a ordem para que seja reconhecida a inexistência da hediondez no crime de tráfico privilegiado, e, por conseqüência, o direito da paciente em ver lhe ver concedido o livramento condicional e a progressão de regime nos prazos dos crimes comuns, fazendo, finalmente, cessar o constrangimento ilegal, requerendo, ademais:
a) seja o presente habeas corpus distribuído a um dos eminentes Ministros deste Tribunal;
b) seja concedida a liminar conforme os termos expostos;
c) sejam colhidas as informações de estilo;
d) seja colhido o parecer do Ministério Público;
e) seja concedida a ordem no presente habeas corpus, nos termos solicitados. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
Na data de 02 de julho de 2017, o então Presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro Joaquim Barbosa, proferiu o seguinte despacho:
O caso não se enquadra na hipótese prevista no art. 13, VIII, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.
Encaminhe-se o feito ao ministro-relator.
Publique-se.” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
No dia 1º de agosto de 2013, a Ministra Cármen Lúcia, Relatora do presente Habeas Corpus, indeferiu a liminar, requisitou informações e determinou fosse dada vista dos autos à Procuradoria-Geral da República, que se manifestou no sentido de concessão da ordem, em 18 de fevereiro de 2014.
No dia 24 de abril de 2014, a Ministra Relatora determinou a afetação do HC ao Plenário do Supremo Tribunal Federal.
Esta é a síntese do que se reputa necessário.
3 O TRÁFICO DE DROGAS E A NÃO HEDIONDEZ DO DELITO EM SUA FORMA PRIVILEGIADA
Por 8 votos a 3, o Plenário do STF decidiu que o tráfico privilegiado, previsto no art. 33, §4º, da Lei 11.343/06, não deve ser tratado com o mesmo rigor do crime de tráfico de drogas, não podendo ser considerado crime de natureza hedionda.
Foram favoráveis a esse posicionamento a Relatora, Ministra Cármen Lúcia, que teve seu voto acompanhado pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Restaram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Luiz Fux e Marco Aurélio, que entenderam pela hediondez do tráfico privilegiado.
São quatro as principais mudanças para o réu condenado por tráfico privilegiado: i. Progressão de regime: antes era necessário cumprir 2/5 (dois quintos da pena), se primário e 3/5 (três quintos), se reincidente; agora, para ter direito à progressão do regime, basta que o réu cumpra 1/6 da pena.
Outra mudança diz respeito ao ii. Livramento condicional: era necessário cumprir mais de 2/3 (dois terços) da pena para ter direito a tal benefício, não sendo possível sua concessão em caso de reincidência específica; hoje, o réu deve cumprir 1/3 da pena se não for reincidente em crime doloso, ou mais de ½ (metade) da pena se for reincidente doloso.
A terceira mudança é em relação ao iii. Direito à concessão de graça, anistia, indulto e fiança, o que não era possível antes, quando tal crime era equiparado aos de natureza hedionda; e por fim, a última mudança diz respeito à iv. Não obrigatoriedade de cumprimento da pena inicialmente em regime fechado, o que é obrigatório quando se trata de crimes hediondos ou equiparados.
A Constituição da República (1988) estabelece, em seu art. 5º, inc. XLIII, que:
a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.
Estabelece o art. 2º da Lei 8.072/1990:
Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de:
I - anistia, graça e indulto;
II – fiança.
§ 1o A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado.
§ 2o A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente. [...]
Vejamos o teor do art. 33 da Lei 11.343/2006:
Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:
Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.
§ 1o Nas mesmas penas incorre quem:
I - importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;
II - semeia, cultiva ou faz a colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para a preparação de drogas;
III - utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.
§ 2o Induzir, instigar ou auxiliar alguém ao uso indevido de droga: (Vide ADI nº 4.274)
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa de 100 (cem) a 300 (trezentos) dias-multa.
§ 3o Oferecer droga, eventualmente e sem objetivo de lucro, a pessoa de seu relacionamento, para juntos a consumirem:
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano, e pagamento de 700 (setecentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa, sem prejuízo das penas previstas no art. 28.
§ 4o Nos delitos definidos no caput e no § 1o deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa. (Vide Resolução nº 5, de 2012)
Art. 44. Os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1o, e 34 a 37 desta Lei são inafiançáveis e insuscetíveis de sursis, graça, indulto, anistia e liberdade provisória, vedada a conversão de suas penas em restritivas de direitos.
Parágrafo único. Nos crimes previstos no caput deste artigo, dar-se-á o livramento condicional após o cumprimento de dois terços da pena, vedada sua concessão ao reincidente específico. (DIÁRIO OFICIAL DA UNIÃO, 2006)
Em seu voto, a Ministra Cármen Lúcia enfatizou que a jurisprudência predominante do STF, até aquele momento, firmava-se no sentido da hediondez do tráfico privilegiado. Reafirmou, porém, o dever da Relatoria de reanalisar a matéria e decidir segundo o seu convencimento, formado a partir de análise legislativa, dos dados dos próprios autos do HC em estudo, bem como de recentes posicionamentos doutrinários e jurídicos.
Enfatizou a Relatora que pelo teor das normas legais pertinentes, apenas as modalidades de tráfico definidas no art. 33, caput, e § 1º da Lei de Drogas seriam equiparadas aos crimes hediondos. Assim, no caso do HC 118.533, os Pacientes foram condenados como incursos no § 4º do art. 33 da Lei 11.343/2006 (tráfico privilegiado), tendo a sentença expressamente afastado a incidência do disposto na Lei nº. 8.072/1990.
Asseverou que o tráfico privilegiado não se harmoniza com aqueles definidos no art. 33, caput, e §1º da Lei de Drogas. Segundo a Ministra, “o tratamento penal dirigido ao delito cometido sob o manto do privilégio apresenta contornos mais benignos, menos gravosos”. Ora, na figura privilegiada do tráfico é aplicada a réus primários, de bons antecedentes, que não se dedicam a atividades criminosas nem integram organização criminosa.
Ressalta a Ministra Relatora que:
A própria etiologia do crime privilegiado é incompatível com a natureza hedionda, pois não se pode ter por repulsivo, ignóbil, pavoroso, sórdido e provocador de uma grande indignação moral um delito derivado, brando e menor, cujo cuidado penal visa beneficiar o réu e atender à política pública sobre drogas vigente. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
Antes de concluir seu voto no sentido de concessão da ordem, informou que em seu entendimento “há evidente constrangimento ilegal ao se estipular ao tráfico de entorpecentes privilegiado os rigores legais destinados ao tráfico de entorpecentes equiparado ao crime hediondo” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016). Citou, por fim, a conclusão do parecer ministerial, também no sentido de concessão da ordem:
[...] 5. Assiste razão à impetrante.
6. A questão da hediondez do ‘tráfico privilegiado’ está afetada ao Plenário (HC nº. 110.884/MS), aguardando julgamento. É certo que nos crimes de tráfico de drogas é necessário que o réu cumpra 2/5 da pena para obter a progressão de regime (art. 2º, § 2º, da Lei nº. 8.072/9) e 2/3 da pena para fins de livramento condicional (art. 44, parágrafo único, da Lei 11.343/2006, e art. 83, V, do Código Penal). Contudo esses prazos maiores se aplicam apenas aos crimes previstos nos arts. 33, caput, e 34 a 37 da Lei 11.343/2006, sem abranger as condutas punidas pelo § 4º do art. 33, que têm menor grau de reprovabilidade e, portanto, não podem ser qualificadas pela hediondez. Donde, condenados os pacientes por tráfico privilegiado, deve ser aplicada a regra geral, ou seja, o resgate de 1/6 e 1/3 da pena, para a progressão de regime e livramento condicional, a teor dos artigos 112 da Lei de Execução Penal e art. 83, inciso I, do Código Penal, respectivamente [...]. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
O Ministro Luís Roberto Barroso trouxe à baila a discussão relacionada ao fracasso da guerra às drogas e o hiperencarceramento decorrente do crime de tráfico de drogas. Informou que se aplicada a minorante máxima, a pena do tráfico privilegiado cai para um ano e oito meses, e se o ordenamento jurídico apena esta conduta com pena tal, não está tratando essa conduta como de reprovabilidade equiparada à de um crime hediondo.
Ressaltou que o presente caso é muito ruim, visto que a imputação era de mais de 700 kg de maconha, restando difícil considerar alguém que trafique tal quantidade não integrando algum tipo de organização criminosa. “Logo, o caso é péssimo.” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016), e continua: “[...] embora o caso concreto não nos seja indiferente como juízes que somos, o grande papel do Supremo não é decidir uma situação concreta; o grande papel do Supremo é fixar as teses que orientarão a jurisprudência.” Mais adiante, observou o Ministro:
Estamos tentando pensar numa melhor resolução.
Esse critério conceitual equipararia um menino de dezoito anos que esteja com cem gramas de maconha a um grande traficante internacional que esteja transportando internacionalmente mais de uma tonelada. Portanto, dizer que é hediondo, equipara essas duas situações, o que me parece, com todo o respeito, uma injustiça patente. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
O Ministro Gilmar Mendes asseverou, em seu voto, que apesar de o constituinte escolher tratar o crime de tráfico ilícito de entorpecentes com mais rigor, o legislador tem, sim, uma “margem de conformação, podendo prever figuras que envolvam transação ilícita com drogas, mas que não configurem crime equiparado a hediondo. Isso porque o mandado de criminalização não exclui a necessidade de adotar uma reação estatal proporcional ao injusto” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016).
De acordo com o Ministro, a expressão constitucional “tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins” possui um espectro denotativo demasiadamente amplo, que se interpretado ao pé da letra culmina no status da hediondez a toda e qualquer transação ilícita envolvendo drogas, o que não produziria resultados razoáveis.
Por sua vez, o Ministro Edson Fachin, que pediu vista dos autos e posteriormente modificou seu voto, alegou que, no seu entendimento, o legislador não teve intenção de equiparar o tráfico privilegiado aos crimes hediondos, pois acaso fosse essa a intenção, teria feito de forma precisa e expressa.
O Ministro se referiu ao princípio da proporcionalidade, afirmando que “é possível que referido princípio funcione como instrumento interpretativo dirigido a desvelar o real alcance da norma infraconstitucional”. Nesse sentido, violaria o princípio da proporcionalidade a aplicação da hediondez à figura privilegiada do tráfico de drogas.
Ressaltou a lição de Claus Roxin que, na mesma direção, ensina que “ao estruturar o injusto e a responsabilidade, deve-se buscar um equilíbrio entre a necessidade interventiva estatal e a liberdade individual.” (Estudos de direito penal, 2ª ed; tradução de Luís Grecco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 70 apud DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016). E continua: “Desvela-se, portanto, que a quantidade da pena cominada atua como indicativo da intensidade do juízo político implementado pelo legislador quanto à gravidade do crime e à extensão da retribuição penal [...]”(DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016).
Após o pedido de vista e reajuste de voto do Ministro Edson Fachin, também reajustaram os votos os Ministros Teori Zavascki e Rosa Weber.
Ao votar no mesmo sentido, o ministro Celso de Mello ressaltou que o tráfico privilegiado tem alcançado as mulheres de modo grave, e que a população carcerária feminina no Brasil está crescendo de modo alarmante. Segundo o ministro, grande parte dessas mulheres estão presas por delitos de drogas praticados principalmente nas regiões de fronteiras do país. (NOTÍCIAS STF, 2016)
O Presidente do STF à época, Ministro Ricardo Lewandowski, observou que a maioria das mulheres encarceradas está nessa situação por crimes relacionados ao tráfico ilícito de entorpecentes, sendo que grande parte delas sofreram sanções desproporcionais às ações praticadas, sobremaneira se levada em consideração sua participação de menor relevância.
O Ministro ainda apresentou dados estatísticos do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, mostrando que:
[...] das 622.202 pessoas em situação de privação de liberdade (homens e mulheres), 28% (174.216 presos) estão presas por força de condenações decorrentes da aplicação da Lei de Drogas. “Esse porcentual, se analisado sob a perspectiva do recorte de gênero, revela uma realidade ainda mais brutal: 68% das mulheres em situação de privação de liberdade estão envolvidas com os tipos penais de tráfico de entorpecentes ou associação para o tráfico”, afirmou o ministro, ressaltando que hoje o Brasil tem a quinta maior população carcerária do mundo, levando em conta o número de mulheres presas. (NOTÍCIAS STF, 2016a)
Segundo ele, estima-se que, entre a população de condenados pelo delito de tráfico ou associação para o tráfico, cerca de 45% – algo em torno de 80 mil pessoas, em sua maioria mulheres – tenham recebido sentença explicitamente reconhecendo o privilégio. Afirmou que “são pessoas que não apresentam um perfil delinquencial típico, nem tampouco desempenham nas organizações criminosas um papel relevante [...].” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016).
3.1 Decisões divergentes
No mesmo HC em estudo, o Ministro Luiz Fux prolatou seu voto contrário à tese majoritária. Asseverou que uso é uso; tráfico é tráfico, tendo sido este eleito uma figura penal mais grave, “tendo em vista os seus efeitos deletérios ao meio social” (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016). Aduziu que “também é um direito do Estado impor a sua ordem penal [...]. E pelo princípio da supremacia constitucional, não vejo nenhuma irregularidade nessa opção do constituinte originário.”.
Informou o Ministro que a natureza jurídica do privilégio é uma causa de diminuição da pena, o que não descaracterizaria o tráfico como crime hediondo. Ressaltou mais uma vez que tráfico é tráfico e que o tráfico privilegiado é uma figura que não existe na lei penal, de modo que por se tratar de uma causa de diminuição de pena, não poderia, por isso, implicar no afastamento da equiparação entre o tráfico de drogas com os crimes hediondos.
Para enfatizar seu posicionamento, citou um trecho do HC nº 114.452, julgado pela primeira turma:
"A minorante do art. 33, § 4º, da Lei nº 11.343/2006, não retirou o caráter hediondo do crime de tráfico de entorpecentes, limitando-se, por critérios de razoabilidade e proporcionalidade, a abrandar a pena do pequeno e eventual
traficante, em contrapartida com o grande e contumaz traficante, ao qual a Lei de Drogas conferiu punição mais rigorosa que a prevista na lei anterior. "
O Ministro Dias Toffoli manifestou preocupação no sentido de que uma vez afastanda a hediondez do tráfico privilegiado, poderia isso culminar na ação das organizações criminosas no sentido de cada vez mais atraírem pessoas com bons antecedentes para se iniciarem na prática do ilícito sob a promessa de ganhos razoáveis.
Antes de indeferir a ordem, o Ministro Marco Aurélio assim apresentou seu voto:
Recuso-me a considerar que um delito pode ser privilegiado. Trata-se de apelido dado pela jurisprudência. Não existe crime privilegiado. No caso do tráfico ilícito de entorpecentes, há causa de diminuição da pena prevista no § 4º do artigo 33 da Lei de Drogas.
Houve opção normativa, pelos legisladores, pelo Congresso Nacional, partindo da premissa de que o tráfico é crime causador de muitos delitos. Chegou-se a rigor maior quanto ao tráfico de entorpecentes. [...]
Não tenho como sair desses parâmetros normativos e dar um passo que não dei no tocante à inconstitucionalidade, declarada pelo Supremo, da cláusula da Lei de Drogas relativa à liberdade provisória. Votei também no sentido da constitucionalidade, como o fiz no que se refere à cláusula vedadora da substituição da pena privativa de liberdade pela privativa de direitos. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
Ademais, cabe destacar que não somente no STF havia divergência em relação a este assunto. Da mesma maneira, também o STJ seguia o entendimento anterior do STF, ou seja, considerava que a figura do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 devia ser equiparada a crime hediondo, chegando até a editar uma súmula sobre o assunto:
Súmula 512 - A aplicação da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da Lei n. 11.343/2006 não afasta a hediondez do crime de tráfico de drogas. (Súmula 512, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 11/06/2014, DJe 16/06/2014)
Tal súmula, porém, foi cancelada no mesmo ano do julgamento do HC 118.533 por determinação da Terceira Seção, na sessão de 23 de novembro de 2016.
3.2 Entendimento doutrinário
Assim como ocorre na jurisprudência, também a doutrina diverge sobre o tema ora em estudo.
Cezar Bitencourt trata das circunstâncias que privilegiam e que qualificam o crime fazendo nova cominação de penas, inferior ou superior à do tipo base, respectivamente. As causas de diminuição e aumento definem um percentual sobre a pena cominada no tipo base. Vejamos:
Alguns doutrinadores não fazem distinção entre as majorantes e minorantes e as qualificadoras. No entanto, as qualificadoras constituem verdadeiros tipos penais – tipos derivados – com novos limites, mínimo e máximo, enquanto as majorantes e minorantes, como simples causas modificadoras da pena, somente estabelecem sua variação [...]. (BITENCOURT, 2012, p. 762)
Desse modo, é certo que não se trata de um tipo penal novo ou derivado em relação ao tráfico de drogas, o que ocorre é a incidência de uma causa de diminuição de pena sobre o tipo penal básico, que pode reduzir a pena aquém do patamar mínimo previsto no tipo. (DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016) Ainda assim, há de se averiguar que se fosse a intenção do legislador equiparar a figura privilegiada do tráfico como hediondo, a Lei 11.343/2006 teria mencionado de forma expressa em seu art. 44 não somente o art. 33, caput, e § 1º, mas também o § 4º do mesmo artigo.
Em sua análise da questão, Eugênio Pacceli assim elucida:
[...] Outra importante questão que vem sendo absolutamente ignorada na legislação penal brasileira diz respeito ao modelo de cominação e de aplicação de penas, via do qual não se faz qualquer distinção entre a natureza do crime e a quantidade (total) e qualidade (detenção, reclusão e seus regimes – aberto, fechado e semi-aberto) de pena cominada nos tipos. É dizer: todo o tratamento de escolha da sanção cabível está centralizado no mínimo e máximo de pena cominada.
Pensamos que para alguns delitos e para alguns de seus autores, ainda que enquadrados em tipos mais gravemente apenados, deveriam ser reservadas algumas alternativas aos critérios gerais de punição. A legislação do delito de tráfico de drogas, por exemplo, apesar de excessivamente apenado quanto ao mínimo da sanção cominada – 5 anos (art. 33, Lei 11.343/06) – prevê a possibilidade de redução da pena, de um sexto a dois terços, até para abaixo do mínimo, desde que o agente seja primário e de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas e nem integre organização criminosa (art. 33, §4º, Lei 11.343/06).
Com efeito, é preciso não perder de vista que todo delito tem sua singularidade em relação aos demais, quando nada pelas circunstâncias pessoais do agente e sua inserção no meio em que praticado o crime. Assim, o aludido dispositivo legal já permite maior flexibilidade na gestão da política de drogas, dado que autoriza o juiz a avançar sobre a realidade pessoal de cada autor.
E não é só.
Trata-se, em verdade, de levar-se a sério a inegável importância das decisões de política criminal, não só para a compreensão da legislação positiva, mas também – e, talvez, sobretudo! – para a aplicação do Direito. Por isso, o funcionalismo penal tem angariado tanta simpatia mundo afora: trata-se de modelo ou de sistema em que as decisões de política criminal devem ser necessariamente consideradas na construção da dogmática do direito penal.
No caso do chamado tráfico privilegiado, o que se decidiu, via legislativa e por decisão de política criminal, é que tais pessoas devem receber tratamento distinto daqueles sobre os quais recai o alto juízo de censura e de punição pelo tráfico de drogas. As circunstâncias legais do privilégio demonstram claramente o menor juízo de reprovação e, em consequência, de punição de tais pessoas. Não se pode, então, chancelar-se a tais condutas a nódoa da hediondez, por exemplo.
Eis, então, um caminho: a imposição de pena não deveria estar sempre tão atrelada ao grau de censura constante da cominação abstrata dos tipos penais. O ideal é que se dê ao juiz a possibilidade de exame quanto à adequação da sanção imposta e respectivo regime de cumprimento, a partir do exame das características específicas na execução de determinados fatos, cujo contexto em que praticados apresente variantes relevantes (socialmente) em relação ao juízo abstrato de censura cominada na regra geral (pena mínima e máxima). (PACELLI apud DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016, grifo nosso)
Renato Brasileiro, por sua vez, analisa de forma diversa o tráfico privilegiado, tendo por embasamento uma jurisprudência do STJ que seguia o posicionamento do STF à época, bem como se alinhava à sua própria e sumulada (Súmula 512, STJ) intelecção:
[...] Todo esse raciocínio acaba sendo corroborado a partir da leitura do art. 44, caput, da Lei de drogas, que, à semelhança das restrições previstas na Lei n° 8.072/90 para os crimes hediondos e equiparados, estabelece uma série de vedações para os crimes previstos nos arts. 33, caput e § 1°, e 34 a 37 da Lei 11.343/06 (v.g., insuscetibilidade de graça, indulto, anistia, etc.), a significar, portanto, que tais delitos seriam equiparados a hediondos, ou seja, ao tráfico de drogas (CF, art. 5°, XLIII).
Em outras palavras, se a tais delitos foi estabelecida uma série de restrições, algumas delas próprias dos crimes hediondos e equiparados, somos levados a acreditar que, à exceção do art. 35 (associação para fins de tráfico), que jamais foi considerado equiparado a hediondo na vigência da Lei anterior (art. 14 da Lei n° 6.368/76), os delitos citados no art. 44, caput, da Lei n° 1 I .343/06 (art. 33, caput, e § 1°, art. 34, art. 36 e art. 3 7) são tidos como "tráfico de drogas".
Aliás, a simples incidência de uma causa de diminuição de pena em relação a tais delitos, como ocorre, por exemplo, com o chamado tráfico privilegiado, previsto no art. 33, § 4°, não tem o condão de afastar sua natureza hedionda. Nesse sentido, como já se pronunciou o STJ, "a aplicação da causa de diminuição de pena prevista no § 4°, do art. 33, da Lei n° 11.343/2006 não tem o condão de afastar a equiparação constitucionalmente estabelecida entre o delito de tráfico ilícito de drogas e os crimes hediondos. Consequentemente, deve a execução da reprimenda, nesses casos, pautar-se pela Lei n° 8.072/90".
Interpretando-se a contrario sensu o art. 44 da Lei n° 11.343/06, não podem ser rotulados como "tráfico de drogas" e, portanto, equiparados a hediondos, os crimes previstos nos arts. 28 (porte ou cultivo de drogas para consumo próprio), 33, § 2° (auxílio ao uso), 33, § 3° (uso compartilhado), 38 (prescrição ou ministração culposa) e 39 (condução de embarcação ou aeronave após o uso de drogas). Por mais que a Lei n° 11.343/06 não defina expressamente quais seriam os crimes de tráfico de drogas, não se pode perder de vista que a palavra tráfico está vinculada à ideia de comércio, mercancia, trato mercantil, negócio fraudulento, etc. Assim, não se pode querer atribuir a natureza de tráfico de drogas à conduta daquele que divide com outrem um cigarro de maconha (Lei n° 11.343/06, art. 33, § 3°), sob pena de rotularmos como equiparado a hediondo um crime cuja pena cominada é de detenção, de 6 (seis) meses a 1 (um) ano. (BRASILEIRO, 2016, p. 59, grifo nosso)
Alinhando-se a esse último entendimento, escreveu Guilherme de Souza Nucci:
[...]Figuras de tráfico ilícito de drogas equiparadas a hediondos: são as previstas nos arts. 33, caput, e § 1º, e 34 a 37, a teor do dispositivo 44, que proíbe liberdade provisória com ou sem fiança, suspensão condicional da pena, graça, indulto, anistia […], bem como reitera que o livramento condicional somente dar-se-á após o cumprimento de dois terços da pena, vedada a sua concessão ao reincidente específico. Lembremos de alertar que a causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, apenas abranda a punição do traficante, mas o delito pelo agente cometido continua a ser equiparado a hediondo, pois a conduta é tipificada no art. 33, caput, e no § 1º, que são assim considerados. Os que escapam à denominação de equiparados a hediondos são as figuras do art. 33, §§ 2º e 3º [...]. (NUCCI apud DIÁRIO DE JUSTIÇA ELETRÔNICO, 2016)
Conforme foi possível observar, ainda na doutrina reinava certa divergência a respeito do tema. Em que pese muitos doutrinadores ainda discordarem do novo caminho jurisprudencial tomado pelo STF em relação ao tráfico privilegiado, cada vez mais autores (assim como julgadores) têm escolhido alinhar seus posicionamentos na mesma direção traçada pelo Supremo.
4 CONCLUSÃO
Após toda a discussão aqui apresentada, considerando todo o arcabouço legal, jurisprudencial e doutrinário trazido ao presente estudo, a conclusão a que chegamos é favorável à mudança de entendimento do STF que afastou a figura da hediondez na forma privilegiada do tráfico ilícito de entorpecentes.
Por um ponto de vista legal, conforme já dito, o art. 44 da Lei de Drogas especifica expressamente os delitos dos artigos 33, caput e § 1º, e 34 e 37 da mesma lei para serem equiparados aos hediondos, o que motiva a interpretação de que se o legislador não incluiu o § 4º, que trata do tráfico privilegiado, naquele rol, é porque não houve intenção de enquadrá-lo como um delito de natureza hedionda.
O privilégio é uma causa de diminuição de pena capaz de reduzir a pena do delito de tráfico ao patamar de um ano e oito meses, se aplicado em seu patamar máximo de dois terços. Desse modo, não seria coerente considerar que o tráfico privilegiado, crime que, repita-se, pode ter sua pena aplicada no patamar de um ano e oito meses, possa ser considerado um crime hediondo. Como visto, se assim fosse haveria patente violação do princípio da proporcionalidade.
Cabe ressaltar que o agente condenado por tráfico privilegiado necessariamente deve ser primário, possuir bons antecedentes, não se dedicar à atividades criminosas ou integrar organização criminosa. A maioria dos agentes que se enquadram nesses padrões não representa grande risco à sociedade, servindo apenas como “aviõezinhos” ou “mulas” para o tráfico, sendo certo que, se pegos traficando uma segunda vez, não possuiriam o benefício do privilégio. Desse modo, a essas pessoas não se faz necessário o início do cumprimento da pena em regime fechado, como obrigatoriamente ocorre com os condenados por crimes hediondos e equiparados.
Ademais, analisando o atual cenário de hiperencarceramento, considerando os dados do Infopen, que mostram que quase um terço da população carcerária está presa em decorrência da aplicação da Lei de Drogas, sendo que, estima-se, 45% dessas pessoas tenham recebido sentença reconhecendo explicitamente o privilégio, não restam dúvidas de que essa mudança de posicionamento do STF vem em benefício da atual crise carcerária instaurada no Brasil.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado, 1988.
BRASIL. Lei nº 8.072 de 25 de julho de 1990. Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 26 jul. 1990.
BRASIL. Lei nº 11.343 de 23 de agosto de 2006. Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 24 ago. 2006.
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