Medidas de proteção à criança e ao adolescente: avanços e desafios à sua concretização.

11/01/2019 às 07:20
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Resumo: O presente artigo busca analisar as medidas de proteção destinadas à criança e adolescente, instituto que materializa a Doutrina da Proteção Integral prevista na Lei nº 8.069/1990, Estatuto da Criança e do Adolescente.

Sumário. I. Do Código Mello Matos ao Estatuto da Criança e do Adolescente: breves considerações. II. Princípios norteadores à aplicação das medidas de proteção. III. Avanços na promoção das medidas de proteção. IV. Desafios à adequada realização das medidas protetivas no Brasil. V. Conclusão. Bibliografia.

I. Do Código Mello Mattos ao Estatuto da Criança e do Adolescente: breves considerações.

Durante séculos, a criança e adolescente não eram vistos como sujeitos destinatários de normas protetivas, sendo disciplinados por normas gerais a todos impostas. A sociedade e o Estado ignoravam completamente qualquer condição especial dos mesmos, sobretudo sua situação de pessoa em desenvolvimento.

A trajetória de conquista formal dos direitos humanos infanto-juvenis não se deu de forma equiparada aos demais recortes sociais, ocorrendo em ritmo mais lento e com menor participação da sociedade civil brasileira.

Neste aspecto, é possível lembrar o advento do Código Mello Matos, publicado em 1927 como primeiro documento da América Latina voltado a disciplinar o destino de jovens em situação de abandono ou aos delinquentes, denominação expressamente utilizada neste diploma, como um retrato da visão social pertinente à época.

Contudo, muito embora este diploma tenha sido precursor no surgimento dos diplomas infanto-juvenis, ele não era voltado à proteção de todos estes indivíduos. O referido código revelou uma atuação voltada tão somente a indivíduos em situações que denominou de “irregular”.

Assim, ao optar por seguir a doutrina do menor irregular, as normas contidas no Código Mello Matos não foram destinadas ao amparo de toda e qualquer criança e adolescente, mas a uma parcela destes indivíduos previamente considerados pela sociedade como abandonados ou delinquentes, ou assim taxados quando fosse conveniente ao Estado proceder à aplicação da norma ao caso concreto.

Deste modo, observa-se uma carga normativa fortemente classista e segregadora em seu conteúdo normativo, o que se comprova através da leitura do art. 26, V, senão vejamos:

Art. 26 – Consideram-se abandonados os menores de 18 anos:
V – Que se encontrem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem.

 

Segundo a leitura do referido dispositivo, resta claro o cumprimento de uma função normativa repressora da condição social do indivíduo, visto como um delinquente ainda que não haja cometido qualquer delito material. Na vigência do Código Mello Matos, a repressão recairia no indivíduo em “estado de vadiagem”, e não pelo cometimento de uma conduta previamente tipificada em lei.

Ora, ao abranger no mesmo conceito o indivíduo abandonado do indivíduo delinquente, unindo situações que não necessariamente andam juntas, o Art. 69 deste diploma autorizava que os jovens fossem submetidos a nada menos que cinco anos de reformatório, promovendo seu afastamento do convívio social.

Em âmbito internacional, com o avanço da elaboração das convenções internacionais decorrentes da calamidade pós-guerra, iniciou-se a preocupação com os direitos humanos e um tratamento equivalente aos direitos infanto-juvenis.

Para tanto, em 1959 foi aprovada a Declaração Universal dos Direitos da Criança, cujo teor assemelha-se ao previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ao reconhecer à criança a condição especial de pessoa em desenvolvimento, o seu preâmbulo estabelece um novo olhar sob a conduta infanto-juvenil, orientando as nações à aplicação de sanções proporcionais a esta situação.

Dentre os dez princípios de proteção à criança, este diploma traz o princípio da igualdade, que determina que toda criança desfrutará dos direitos nele previstos sem distinção de raça, língua, religião, origem nacional ou social, ou qualquer outra condição, sua ou de sua família.

O princípio da prioridade absoluta proclama que a criança deverá ser a principal destinatária de socorro, bem como da prestação de serviços públicos. O princípio da proteção contra a exploração do trabalho infantil proclama que a criança gozará de proteção contra qualquer forma de exploração, determinando idade mínima para empregar-se e proibindo qualquer ocupação que prejudique seu desenvolvimento físico, mental e moral.

Neste contexto histórico, é interessante observar que o Brasil ainda tinha como diploma vigente o Código Mello Matos, mas a doutrina por ele adotada e sua carga valorativa já não se afinavam com os ditames da Declaração Universal dos Direitos da Criança, que tanto ampliou a proteção infanto-juvenil, alçando-os a sujeitos de direito.

Prosseguindo-se à lenta criação de leis nacionais voltadas ao tratamento de crianças e adolescentes, em 1979 fora editado o Código de Menores, que ainda era voltado tão somente ao controle social de menores em situação “irregular”, sem tutelar de modo amplo crianças e adolescentes.

Ao adotar a doutrina da situação irregular, tal como o Código Mello Matos, o Código de Menores previa em seu art. 40 o instituto da internação, voltado a menores que se encontrassem em desvio de conduta ou em cometimento de infração penal.

Ocorre que, o instituto da internação foi utilizado de forma excessiva e arbitrária, promovendo a prisão em cela comum de indivíduos desamparados de um ideal de família, punindo pessoas pelo seu desamparo. O resultado foi um contingente de indivíduos que ao sair da internação, encontravam-se em verdadeira condição de delinquentes, por não receberem educação nem amparo familiar ao longo de sua adolescência.

A ausência de um tratamento diferenciado entre a conduta praticada pelos jovens àquela praticada por adultos foi uma marca do Código de Menores, culminando no aumento de um problema social longe de ser solucionado pelo advento das medidas de assistência e proteção previstas em seu art. 14, agravando a reincidência generalizada de infrações cometidas por jovens.

Num contexto de redemocratização, a CF/1988 inaugura uma nova era de garantia de direitos individuais, sociais e coletivos, dentre eles o direito à infância como um direito social pelo seu art. , destinando ao art. 227 a tutela da infância e juventude, agora vista como responsabilidade solidária pelo princípio da proteção integral, senão vejamos.

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

A Convenção Internacional dos Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1989, reforçou os ideais mundialmente proclamados pela Declaração dos Direitos da Criança, sobretudo a importância da cooperação internacional na melhoria das condições de vida das crianças por todos os países em desenvolvimento.

Destarte, sendo ratificado por 190 países à exceção dos Estados Unidos, o referido diploma não distingue a condição de criança para adolescente, estabelecendo como criança todo e qualquer indivíduo de até dezoito anos de idade incompletos. É o que se depreende do seu art. 1º, a seguir:

Art. 1º - Para efeitos da presente convenção considera-se como criança todo ser humano com menos de 18 anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a maioridade seja alcançada antes.

Esta convenção inaugura a proteção à criança refugiada em seu art. 22, ao determinar que os Estados-parte deveriam adotar medidas para que a criança consiga obter a condição de refugiada e recebesse assistência humanitária adequada à tal condição, usufruindo dos direitos previstos nesta convenção e em outros instrumentos internacionais.

A garantia formal de direitos foi ampliada com o advento desta convenção, que traz em seu art. 26 o direito de toda criança usufruir de previdência social, devendo ser adotadas todas as medidas necessárias à consecução desta determinação pelos Estados-partes, de acordo com suas legislações nacionais.

Impulsionado pelo contexto de redemocratização promovido pela CF/1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990 descortina uma nova etapa na garantia dos direitos infanto-juvenis. Surge um novo olhar sobre a conduta e as necessidades sociais dos jovens, agora vistos como indivíduos em situação peculiar de desenvolvimento.

Neste momento, órgãos, agentes e autoridades governamentais passam a se articular para exercer uma nova abordagem no tratamento de crianças e adolescentes, fundamentados na doutrina da proteção integral, abandonando a doutrina da situação irregular que até então orientava os códigos anteriores.

A doutrina da proteção integral que fundamenta o ECA/1990, foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pelo art. 227 da CF/88, determinando que a interpretação da norma infanto-juvenil deverá levar em consideração a máxima prioridade aos direitos dos quais estes sejam titulares.

Esse rompimento com a doutrina da situação irregular, conhecido como etapa tutelar, passando à etapa garantista, significa que a criança e o adolescente passam a ter o poder de exigir respeito aos próprios direitos tanto no seio familiar quanto por toda sociedade a partir de mecanismos legais e processuais para a sua exigência e o consequente cumprimento.

A diferença de tratamento do jovem infrator entre as etapas tutelar e garantista fica clara na lição de Sérgio Salomão Checaira, ao ensinar que

Vê-se, pois, o quanto se podem diferenciar as etapas tutelar e garantista, no que concerne aos direitos que foram assegurados quando se tem o cometimento de ato delituoso. Embora a intervenção punitiva seja ampla, alcançando aqueles que tenham mais de 12 anos, é de se reconhecer que a limitação do período máximo de internação a três anos constitui um respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.

No intuito de materializar estes valores garantistas previstos no ECA/90 em relação ao tratamento de jovens infratores, surgiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo - SINASE, instituído pela Lei nº 12.594/12, que regulamenta a execução de medidas socio-educativas ao adolescente.

Diante da breve análise histórica nacional e internacional, observam-se as transformações ocorridas no tratamento infanto-juvenil, tanto na sua condição de abandono quanto na forma de encarar eventuais infrações cometidas.

Somente após o advento do ECA/90, ficou clara a distinção de tratamento que deve ser feita entre a condição de infrator e a de desamparo, com vistas a não punir a criança e adolescente tão somente pela sua condição social, prática recorrente e legitimada pelos diplomas nacionais anteriores.

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Este tratamento proporcional à conduta praticada é o grande legado deste diploma, tendo em vista que a condição de infrator enseja a aplicação de medidas socioeducativas, ao passo que a condição de abandono ou ameaça de lesão a direitos fundamentais implica na utilização de medidas de proteção à criança e ao adolescente, que será objeto de estudo a seguir.

II. Princípios norteadores à aplicação das medidas de proteção

As medidas de proteção previstas no Art. 101 do ECA/90 são destinadas tanto à criança quanto ao adolescente que dela necessite, em razão de ação ou omissão de seus pais ou responsáveis, do Estado ou da própria sociedade, na hipótese de lesão ou a simples ameaça de lesão a seus direitos.

Assim, no intuito de promover a mais ampla proteção infanto-juvenil, observa-se o caráter geral a que se destina a aplicação das referidas medidas, que podem ser aplicadas de forma isolada ou cumulativa entre si, bem como substituídas a qualquer tempo verificada sua necessidade, conforme prevê o Art. 99 do ECA/90.

Em relação às medidas de proteção à criança, é importante pontuar que o rol trazido pelo Art. 101 é meramente exemplificativo, sendo cabíveis outras medidas que nele não estejam previstas mas que se afigurem adequadas ao melhor interesse da criança ou do adolescente.

Assim, é possível pontuar como medidas de proteção, o encaminhamento aos pais ou responsável, como forma de fazer cessar a lesão a direitos da criança e quando esta medida não importar por si só em agravamento do risco à criança, conforme dispõe o Art. 101I, do ECA/90.

O acolhimento institucional também é medida de proteção cabível em casos de abusos a crianças e adolescente praticado por pais ou responsáveis, conforme dispõe o Art. 101VII, do ECA/90.

A inclusão em programa de acolhimento familiar é medida protetiva cabível quando se verifica inadequada a presença da criança no seio familiar de origem, tendo em vista a busca pelo melhor interesse da criança e para o seu desenvolvimento pleno e sadio. Este acolhimento familiar conforme cita o parágrafo primeiro, é medida de caráter transitório, utilizável como forma de transição para reintegração familiar.

A colocação em família substituta é medida de proteção de caráter definitivo, e assim, deve ser vista como ultima ratio, em casos de abusos ou violência contra a criança ou adolescente que torne assim insustentável seu vínculo familiar originário, conforme dispõe o Art. 101IX, do ECA/90.

Os princípios que regem a aplicação das medidas de proteção foram estabelecidos no Art. 100parágrafo único do ECA/90, sendo eles o da proteção integral; o do interesse superior da criança e do adolescente; o princípio da privacidade; o princípio da intervenção mínima; o princípio da prevalência da família, a seguir analisados.

O princípio da proteção integral, também previsto no Art. 227 da CF/88 e que tem como fundamento a responsabilidade solidária de toda sociedade em fiscalizar e garantir o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente, antes mesmo do surgimento de lesão a seus direitos individuais.

O princípio do interesse superior da criança determina a escolha de medidas protetivas adequadas à situação em que a mesma se encontre, considerando-se sua condição peculiar de indivíduo em formação. A possibilidade de a medida ser substituída a qualquer tempo também encontra fundamento no princípio em questão.

O princípio da privacidade proclama que a promoção dos direitos da criança deve ser feita com respeito à sua intimidade, reservando sua vida privada da opinião pública.

O princípio da intervenção mínima, visa estabelecer que a situação infanto-juvenil deve ser exercida exclusivamente por instituições cuja autoridade fora prevista em lei e seja indispensável à promoção dos direitos da criança e do adolescente.

O princípio da prevalência da família é de suma importância na busca pela preservação dos laços consaguíneos entre o jovem e seus genitores, caso este ato não implique por si só em agravamento do risco aos seus direitos e desenvolvimento sadio.

III. Avanços na promoção das medidas de proteção à criança e adolescente

Primeiramente, muito embora a simples alteração normativa não seja suficiente para a efetivação de direitos, é inegável que ao longo de vinte e oito anos de promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente houveram avanços na proteção de direitos fundamentais de crianças e adolescentes.

Isto porque, somente o advento deste diploma trouxe o princípio da prioridade absoluta no tratamento infanto-juvenil, que garante a sua primazia em receber socorro e ser destinatário de políticas sociais. É o que se observa do seu art. 4º, senão vejamos.

Art. 4º - É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo único. A garantia de prioridade compreende: a) primazia de receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias; b) precedência de atendimento nos serviços públicos ou de relevância pública; c) preferência na formulação e na execução das políticas sociais públicas; d) destinação privilegiada de recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e juventude.

Mas não é só. Além desta garantia normativa e na consequente mudança de olhar para a conduta infanto-juvenil por parte de alguns operadores do direito, houveram conquistas importantes para os mesmos.

A criação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos através da Lei nº 8.242/91, representa instância máxima na elaboração de políticas públicas infanto-juvenis e na definição de diretrizes para a criação e o funcionamento dos Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Além disso, o referido conselho é responsável por estimular, apoiar e promover a manutenção de bancos de dados com informações sobre a infância e a adolescência, assim como monitorar a política de atendimento à criança e ao adolescente e a realização de conferências nacionais para discussão sobre ameaças de lesão a direitos infanto-juvenis.

Em recente reunião realizada, a Conferência Nacional dos Direitos da Criança posicionou-se através de Nota Pública contra o projeto de lei Escola Sem Partido. Tal posicionamento é acertado, em razão de defender o direito à liberdade de pensamento como instrumento necessário à adequada educação infantil, garantindo a formação de indivíduos dotados de consciência crítica.

O CONANDA, vinculado à Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, também foi responsável pela criação da Resolução nº 116/2006, que estabelece parâmetros para a criação dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente em todo território nacional, que devem nortear-se pelo respeito ao melhor interesse da criança, conforme o art.  do ECA/90.

Ressalte-se que, cabe ao poder público em níveis municipal, estadual e federal, fornecer a devida estrutura para o funcionamento dos referidos Conselhos, conforme se depreende do art. 4º da Resolução nº 116/06, a seguir.

Art. 4º. Cabe à administração públicanos diversos níveis do Poder Executivo, fornecer recursos humanos e estrutura técnica, administrativa e institucional necessários ao adequado e ininterrupto funcionamento do Conselho dos Direitos da Criança e do Adolescente, devendo para tanto instituir dotação orçamentária específica que não onere o Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Assim, deve o poder público oferecer a devida estrutura técnica e administrativa necessária ao exercício das atribuições dos Conselhos, tais como o fornecimento de registro a entidades que exerçam atividades de acolhimento institucional de jovens ou desenvolvam programa de internação.

Esta política de atendimento mais próximo de situações envolvendo crianças e adolescentes, proporcionada pela criação dos Conselhos Estaduais e Municipais de Direitos, atende ao princípio da municipalização do atendimento, previsto no Art. 88I, do ECA/90.

Outro avanço que fortaleceu a promoção de medidas de proteção à criança foi o Programa de Proteção à Criança e Adolescente ameaçados de Morte - PPCAM, instituído pelo Decreto nº 6.231/07. Além disso, integra os avanços a normatização do trabalho do aprendiz, com garantias contra a sua exploração em trabalhos insalubres e perigosos ou em horários abusivos.

IV. Desafios à adequada realização das medidas protetivas no Brasil

Em que pese a observância de algumas mudanças de paradigma em relação à infância e juventude, com a construção de um novo olhar para a conduta infanto-juvenil ao longo destes vinte e oito anos, a efetivação das medidas de proteção à criança esbarra em alguns desafios estruturais e que dependem de esforços intersetoriais.

Para que a norma venha a ter maior aplicabilidade material, faz-se urgente a união de forças entre entidades governamentais e não governamentais, na medida de suas possibilidades, para que os Conselhos Tutelares tenham maior poder fiscalizatório, maior estrutura física e aparto funcional, necessários para fazer frente às situações que envolvam lesões e ameaças de lesões a crianças.

Além disso, é necessário que o Estado passe a ter um olhar preventivo em relação às potenciais ameaças de lesão infanto-juvenis, acompanhando os resultados das medidas de proteção impostas, ainda que por um prazo determinado.

Os desafios à concretização do referido estatuto são imensos, e passam por uma alteração de paradigma de grande parte dos aplicadores do direito que estejam envolvidos com a causa infanto-juvenil, buscando materializar o que proclama o art.  do ECA/90, que visa garantir uma melhor condição de vida à criança e ao adolescente, sem perder de vista o seu melhor interesse.

A isonomia na aplicação de medidas de proteção à criança é outro fator de extrema relevância nas decisões judiciais, uma vez que ainda se observa um viés segregatório e classista na escolha das medidas de proteção então aplicadas.

Por fim, o planejamento familiar se verifica como um desafio a ser resolvido a longo prazo, mas que deixará reflexos na imposição de medidas de proteção, tendo em vista a menor lesividade das medidas de proteção a serem impostas numa família que oferece maior organização econômica e psicológica à criança.

O planejamento familiar é de suma importância para que mais crianças não sejam vítimas da desídia de seus pais, que deveriam atentar para a séria decisão de ter filhos como uma social, uma vez que a sua conduta gera reflexos em níveis de desenvolvimento humano nacional.

Muito embora a Carta Magna resguarde à família a decisão sobre sua administração, cabendo tão somente a ela decidir sobre sua prole, faz-se necessário observar que o planejamento familiar é um poder-dever do cidadão, previsto no art. 226 da CF/88.

A ausência deste planejamento é um desafio à concretização sadia de medidas de proteção, tornando-a mais gravosa e mais invasiva no contexto familiar, com resultados que não se sustentam a longo prazo em razão de uma carência de estrutura psicológica e econômica no seio familiar.

O contexto familiar caótico no qual milhões de crianças encontram-se inseridos, favorece a sua exposição ao uso de drogas, à exploração sexual, e tantas outras situações de vulnerabilidade que as medidas de proteção visam coibir.

Dados do Instituto Marista de Assistência Social, através do Relatório Cadê Brasil, trazem um panorama sobre o número de homicídios praticados contra a população de 0 a 19 anos. Observa-se um aumento de 67% entre 1997 e 2014 contra a população infanto-juvenil. Em 1997, haviam 6.645 homicídios registrados, enquanto em 2014 este número saltou para 11.142 homicídios.

Observa-se, assim, a fragilidade dos programas supracitados como avanços, que carecem de maior instrumentalização administrativa e investimento estatal para sua eficácia contra estes ataques à vida e à dignidade infanto-juvenil.

Por sua vez, um ambiente familiar sadio, minimamente planejado possibilitaria que crianças e adolescentes desenvolvessem potenciais, habilidades e valores éticos, tornando-se adultos mais preparados às exigências sociais e menos vulneráveis a desvios de conduta penalmente tuteladas.

Esta forma preventiva de encarar a conduta infanto-juvenil é um dos maiores desafios presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, que visa coibir a geração de futuros infratores através da aplicação das medidas de proteção mencionadas, sendo de grande relevância a sua utilização adequada.

V. Conclusão

Diante do exposto, em comparação aos diplomas nacionais anteriores ao Estatuto da Criança e do Adolescente, verificam-se avanços inegáveis no tratamento infanto-juvenil, sobretudo pela saída de uma doutrina da situação irregular para a doutrina da proteção integral, que atrai para si um novo olhar sob a conduta infanto-juvenil, exigindo uma postura social e estatal garantista.

Houveram avanços no caminhar para a garantia dos direitos da criança e do adolescente, como a criação do Sistema Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente – SINASE em 2012, que regulamenta a execução de medidas socioeducativas, bem como a criação do CONANDA, responsável pela elaboração de políticas públicas infanto-juvenis e definição de diretrizes para o funcionamento dos Conselhos Estaduais, Distrital e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente.

Entretanto, é inegável que o caminho para a garantia de direitos infanto-juvenis ainda é repleto de desafios que acima foram pontuados, como a necessária articulação de setores governamentais e não-governamentais na união de forças para o enfrentamento de lesões a direitos destes indivíduos em situação peculiar de desenvolvimento.

A aplicação das medidas de proteção tem como fim a garantia de um ambiente familiar sadio à criança e adolescente, razão pela qual a ausência de planejamento familiar agrava a imposição destas medidas, tornando-a invasiva e ineficaz por resultados que não se sustentam a longo prazo, em razão de uma carência de estrutura psicológica e econômica familiar.

A responsabilidade dos pais sobre os filhos não reside no mero suprimento de suas necessidades materiais, como também na formação de um cidadão, devendo zelar pela construção de valores morais determinantes no fortalecimento de laços desta criança com a sociedade na qual encontra-se inserido, pela qual inegavelmente deverá submeter-se a padrões de conduta.

Por fim, a aplicação da medida de proteção sem acompanhamento dos resultados poderá acarretar a imposição posterior de medidas socioeducativas, que são uma segunda tentativa estatal de recuperar e controlar socialmente este indivíduo em formação antes de ser exposto a sanções penais de natureza claramente punitivas.

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