O tema sobre a liberação, ou restrição, do acesso a armas de fogo para a população, é um daqueles em relação aos quais a manipulação das informações difundidas é escancarado, e enganoso.
São muitos aspectos envolvendo esta discussão. Porém, para simplificar e direcionar esta breve análise, neste texto será abordada apenas a questão referente ao tópico ARMAS DE FOGO x HOMICÍDIOS.
Como é sabido, o Brasil lamentavelmente vem experimentando taxas anuais absurdas de homicídios, típicas de países que estão em situação de conflitos armados.
De acordo com o denominado “Atlas da Violência 2018”, realizado em conjunto pelo IPEA e Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2016 (ano utilizado neste trabalho) foram 62.517 homicídios praticados no Brasil (disponível no em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/06/FBSP_Atlas_da_Violencia_2018_Relatorio.pdf). Números que já aumentaram nos anos de 2017 e 2018.
Ainda de acordo com “Atlas da Violência 2018”, “...atingimos um índice de mortes por armas de fogo de 71,1% em 2003, o mesmo índice observado ainda em 2016...” (p. 70/71). Ou seja, destes 62.517 homicídios, cerca de 70% teriam sido perpetrados com o uso de armas de fogo.
Este dado, porém, lançado desta forma, sem considerações mais criteriosas e explicativas, esconde fatos extremamente relevantes. No que se refere ao tema central sobre o acesso a armas de fogo.
No caso, são omitidos, por exemplo, os parâmetros de um importante estudo realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU), por meio de sua agência United Nations Office on Drugs and Crime - UNODC, intitulado “Global Study on Homicide” (versão de 2013 - a nova versão de 2018 será finalizada no primeiro semestre de 2019), disponível em: https://www.unodc.org/documents/gsh/pdfs/2014_GLOBAL_HOMICIDE_BOOK_web.pdf
Ao que consta, não há versão em português deste trabalho. Mas é difícil acreditar que a falta de uma versão oficial em português, seria impeditivo para sua utilização em estudos, e divulgação de notícias no Brasil.
Na página 09 deste estudo, as mortes violentas foram enquadradas em diferentes categorias. Para a finalidade deste texto, a aba que interessa é do que foi rotulado como HOMICÍDIO INTENCIONAL. Que, por sua vez, é subdividido em três situações, a saber: a) relacionado a outras atividades criminosas, ou seja, trata-se de homicídios praticados não porque se quer propriamente matar uma pessoa, mas sim porque a morte acaba sendo consequência de outra conduta criminosa, como o tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio; b) interpessoal, como crimes passionais ou entre pessoas que tenha rivalidades pessoais; c) político-social, decorrentes de divergências ideológicas.
Esta sutil diferenciação é absolutamente crucial, para se compreender a falácia envolvendo o discurso acerca da necessidade de proibição de flexibilização do acesso a armas de fogo. Talvez por isso mesmo, seja propositadamente sonegada dos debates e discursos desarmamentistas.
Explica-se. De acordo com os dados oficiais constantes do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias de junho de 2016 (nova versão está sendo elaborada) realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), em linhas gerais, o maior contingente de pessoas excarceradas está relacionado principalmente a crimes patrimoniais como roubo e latrocínio, e ao tráfico de drogas (p. 42/43), disponível em: http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorio_2016_22-11.pdf
Crimes estes, que desencadeiam uma série de outros crimes. Dentre eles, o homicídio intencional.
Noutras palavras, no Brasil, seguindo os critérios de enquadramento estipulados pelo estudo da ONU acima mencionado, os homicídios intencionais estão preponderantemente relacionados a outras atividades criminosas (a).
Obviamente também contabilizamos vários casos de crimes interpessoais, como os passionais (b), por exemplo, quando a ex-companheira é assassinada pelo ex-companheiro. E também ocorrem disputas políticas/ideológicas que por vezes resultam em mortes (c). Mas estas duas categorias “b” e “c”, são inexpressivas se comparadas com as mortes decorrentes de outras atividades criminosas da categoria “a”.
Assim, quando se diz que cerca de 70% dos homicídios intencionais (dolosos) praticados no Brasil, são consumados por meio do emprego de armas de fogo, está se deixando de esclarecer que a quase totalidade destes 70% homicídios, são decorrentes da prática destes crimes relacionados (majoritariamente patrimoniais e relacionados a tráfico de drogas), executados por agentes que já estão no mundo do crime.
Em linguagem mais clara: as mortes violentas, na sua maioria esmagadora, são derivadas da execução de condutas que por si só já são criminosas. E as mortes, neste contexto, são meras consequências de atos criminosos por parte daqueles que já estão engajados na vida delituosa. Ilustrativamente, a disputa de território entre traficantes, que gera verdadeiras guerras urbanas. Ou os altos índices de roubo seguido de morte (latrocínio).
Isto implica em que, quando se impõe proibições a posse/porte de armas de fogo pelas pessoas comuns, em praticamente nada se está contribuindo para a redução dos assustadores números de homicídios. Pois retirar do cidadão correto o acesso a estas armas, em nada auxiliará no combate a criminalidade realmente homicida. Pois estes meliantes, por razões óbvias, continuarão obtendo estas armas por caminhos ilegais.
Tanto que o próprio Fórum Brasileiro de Segurança Pública (que ajudou na elaboração do “Atlas da Violência 2018”), no seu INFOGRÁFICO de 2018, atesta, com todas as letras, que: “...94,9% das armas apreendidas no ano não foram cadastradas no sistema da Polícia Federal (SINARM)...” Vale dizer, dos 100% de armas apreendidas no ano de 2017 (119.484), cerca de 95% estavam na ilegalidade (disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/08/FBSP_Anuario_Brasileiro_Seguranca_Publica_Infogr%C3%A1fico_2018.pdf).
Revelando (ainda que não tenha sido dado destaque a este fato), que o grande problema são as armas ilegais que circulam no território nacional. E não aquelas que estão regularmente registradas, sob o rígido controle estatal.
Esta, inclusive, pode ser uma das explicações dos motivos pelos quais mesmo estando em vigor desde 2003, impondo severos controles, o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826) não apresentou resultados mínimos de contenção da elevação das mortes por meio de armas de fogo.
Para finalizar, também é importante ressaltar outro ponto, que se refere ao baixo índice de elucidação dos homicídios intencionais. A este respeito, transcreve-se a constatação feita pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), no seu “Diagnóstico da investigação de homicídios no Brasil”, nos seguintes termos (p. 22):
“...O índice de elucidação dos crimes de homicídio é baixíssimo no Brasil. Estima-se, em pesquisas realizadas, inclusive a realizada pela Associação Brasileira de Criminalística, 2011, que varie entre 5% e 8%. Este percentual é de 65% nos Estados Unidos, no Reino Unido é de 90% e na França é de 80%...” (disponível em: http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Enasp/relatorio_enasp_FINAL.pdf)
Como somente 5% a 8% de homicídios são solucionados, por certo que dentre estes que foram elucidados, estão exatamente aqueles de mais fácil resolução, no qual se disponha de maiores evidências, e farta prova testemunhal. Tais quais, por exemplo, os homicídios interpessoais (ex: crimes passionais, mortes em brigas de bar entre pessoas embriagadas), seguindo a categoria do estudo do ONU.
Portanto, quando alguma matéria ou debate, alegar que os Tribunais do Júri (responsáveis pelo julgamento dos crimes de homicídio intencional) estão lotados de casos de mortes envolvendo o uso de armas de fogo, saiba-se que a maior parte destes casos estão abrangidos nestes casos de mais fácil elucidação. Sendo que, os mais de 90% de mortes decorrentes de outras atividades criminosas (voltando a classificação do estudo da ONU), sequer serão levados a julgamento. Porque na sua grande maioria (em torno de 90%) não serão nem mesmo esclarecidos, ou identificados os seus autores.
Sob este ângulo, tem-se que as restrições impostas para se ter a posse/porte de armas de fogo, com base no argumento de que são utilizadas em cerca de 70% dos homicídios intencionais, não se sustenta, se analisada no contexto acima delineado. Posto que estas estatísticas precisam ser criteriosamente examinadas, para se evitar equívocos, ou retóricas do engano que, lastreadas em convicções ideológicas suspeitas, procuram acobertar a realidade dos fatos.